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Entrevista completa com Toninho Mendes, um dos maiores editores gráficos do Brasil ao melhor estilo “Gibis, drogas e Rock’n’Roll”

Ele fala de um jeito desbocado e eletrizante, uma metralhadora verborrágica. É editor gráfico. Passou pelos jornais Versus e Movimento e pela revista IstoÉ, na época da redação “the best”, ao lado de Mino Carta. Seu trabalho como artista na estética do jornalismo era conciliado com suas paixões por quadrinhos. Sua vida era cercada de amigos, humor, tiras, desenhos. Toninho Mendes era um aficionado por quadrinhos na infância, tendo trabalhado em uma banca quando garoto para poder ganhar gibis de graça. Atuou no meio editorial, tornando-se o editor responsável por lançar uma turma talentosíssima que incluía Angeli, Luiz Gê, Glauco e os cartunistas que fizeram a Chiclete com Banana. Tudo por intermédio da Circo Editorial. A intensidade com que sempre tocou seus projetos – e a própria vida – talvez seja explicada pela imersão nas drogas, sobre a qual fala com tranquilidade. “A Circo nasceu em uma noite de cheiração de pó na minha casa”, revela. Mendes é rascante, sem meio-termos. Política cultural, ele crê, começa pela boca: onde não se come, não se contam histórias… Toninho, como você começou? Como empresário, poeta e editor? Nasci em Itapeva, no interior paulista, e mudei para São Paulo em 1959, quando eu tinha cinco anos. Um detalhe que digo para as pessoas é que me mudei para a Casa Verde. Porque São Paulo são muitas cidades. Se eu tivesse mudado para a Mooca ou Lapa, eu viraria outro ser humano. Mas mudei para a Casa Verde, nas margens do Rio Tietê, um bairro de delinquentes (risos). E eu sou delinquente por natureza. Nasci assim. Eu não durmo, por exemplo. Desde quatro, cinco anos de idade, durmo cinco horas por noite. É o meu limite. Passou disso, eu fico louco. Meu pai tinha um bar em São Paulo. Fui criado dentro de um bar, a minha casa era interligada com o boteco. A minha história de ser editor tem muito a ver com a infância, porque eu era um colecionador obsessivo de gibis. De certa forma, uma das coisas que eu gostava de fazer era desenhar. Comecei a ler gibi muito cedo: O Fantasma, O Cavaleiro Negro, Batman. Antes de entrar para a escola, eu já sabia ler e escrever, por influência da minha avó, que lia a Bíblia para mim. Começa cedo a minha relação tanto com o desenho quanto com a escrita. Na escola, sempre fui um aluno mediano. Eu era de família classe média para baixo. Nessa época, eu não tinha recurso para comprar a quantidade de gibi que satisfaria a minha vontade, não podia comprar. O universo em torno do gibi é uma coisa que as pessoas não entendem hoje. Você encontrava uma pessoa que tinha o número 12 de O Fantasma e trocava pelo número 8 do Capitão Marvel, mas se você arrumasse um Tio Patinhas poderia trocar por um Almanaque do Fantasma. Assim, fiquei amigo do Manelão, dono de uma banca na Rua Jaguaretê. Ele já tinha uns cinquenta e poucos anos na época, e comecei a trabalhar com ele. Eu chegava na banca às 6h da manhã e, depois, entrava na escola às 7h30. Eu o ajudava a tirar as coisas do caixote e a colocar em cima da bancada. Quando eu saía da escola ao meio-dia, ia ajudar a desmontar a banca. A gente acabou criando uma relação comercial amigável, ele me dava uma ou duas revistas de presente. Aí começa minha relação atávica com gibis. Até cinco anos atrás eu tinha três mil gibis, hoje ainda tenho uns 200. Fui me desfazendo por falta de paciência para guardar, porque eu não virei um colecionador profissional. Não me adaptei à escola. Larguei na quarta série. Comecei a trabalhar três dias depois de completar 14 anos. Eu precisava trabalhar. Era office boy no antigo Banco de Investimentos do Brasil. Eu não quis continuar fazendo a escola porque, por vias tortas, eu tinha lido muito. O seu Carlos, um farmacêutico que eu conhecia, tinha a coleção inteira da editora Saraiva. Ele tinha um carinho com os livros e dizia: “Serão seus quando eu morrer”. E deixou para mim a coleção inteira da Saraiva. Acabei lendo o que eu queria e o que eu não queria. Tive um conhecimento bem desbaratado que me afastou mais ainda da escola. Estou falando de 1968, quando tem um monte de coisa acontecendo no mundo. Uma das coisas que me pegou, e pegou minha geração, foi a música. A outra, as drogas. Comecei a fumar maconha muito novo. Com 10 anos eu sabia o que era maconha, pervitin… cocaína ainda não existia, crack também não e heroína era uma coisa rara. Bebida, maconha e pervitin tinha a rodo. Eu morava do lado do Parque Peruche, ali na Casa Verde, um lugar clássico de banditismo, vagabundagem. Toninho, como você chegou nas artes gráficas e no jornal Versus? Antes do Versus, tem a Escola Protec [centro de tecnologia fundado em 1958], eu vou chegar lá. Quando eu tinha 15 anos, eu frequentava a igreja. E tinha um semipastor gay que tentou explicar a um bando de moleques que, se sugerisse a um cara que ele ia virar viado, o cara virava homossexual. Adivinha quem os caras acharam que podia virar viado? (risos). Eu passei algumas dificuldades, porque eu morava em um bairro de delinquentes. Por princípio, eu era um cara delicado de rosto, aquela época dos Beatles, cabelo comprido, não tinha barba, magrinho. Deu muito trabalho administrar isso. Eu fui, dei, fiz tudo que eu tinha direito e disse: “Não gosto de homem, de pinto, do cheiro, da pele, do desenho do caralho, não é o meu negócio”. Então, eu me afastei do bairro. Decidi curtir a coisa do desenho, a influência que veio também do Pasquim. Já era amigo do Angeli desde os 13 anos. Tivemos uma  afinidade imediata. Quando vi o Pasquim eu já gostava muito de desenho, en tão decidi que queria ser desenhista. Fui para a escola Protec, só que eu não    podia estudar à noite, porque minha

Entrevista completa com Nelson Motta, para o Produção Cultural no Brasil

Jornalista, compositor, roteirista, letrista, produtor musical, escritor. Mais difícil do que listar as tantas atividades que desenvolve é saber em qual delas ele se sai melhor. Paulistano radicado no Rio de Janeiro, Nelson Motta comeu e respirou música ao longo de toda a vida. Paixão tão contagiante que foi convidado a se tornar produtor musical sem nunca ter feito produção antes. Topou. Aprendeu o ofício com sua sensibilidade. “Como passar para os músicos o que você quer, sem impor, sem ser tirano, mas sendo firme?”, recorda, sobre a encruzilhada que precisava resolver para ser bem-sucedido. Construiu tamanha reputação que, em um certo momento da carreira, pode lançar uma jovem cantora quebrando paradigmas do mainstream fonográfico. Era Marisa Monte. Se é um “dinossauro” do meio, Motta passa longe de ser um conservador. Ao contrário, é um entusiasta ferrenho das novas tecnologias para a visibilidade das artes. Ele lembra que, até há pouco tempo, só as gravadoras dispunham de estúdio de gravação. “Hoje você faz um no banheiro de sua casa.” Mas faz a ressalva: “Tecnologia é que nem droga: não dá talento a quem não tem.” Nelson, que caminhos sonoros te fizeram um produtor musical? Sempre gostei muito de música. Mas me apaixonei mesmo com João Gilberto. Aí eu quis aprender a tocar violão. Mas é uma paixão não correspondida: a música não se apaixonou por mim. Não tenho talento musical. Tudo que eu conseguia com música era com muito esforço. Aprendi bastante com Roberto Menescal, quando eu tinha essa ideia fixa de música, isso no começo dos anos 60, uma insanidade. Fui fazer design na Escola Superior de Desenho Industrial. Sempre ligado à música, mas decidido a ser designer. No terceiro ano, eu tinha um professor de português que ensinava os designers a escrever, a redigir seus projetos. As aulas eram maravilhosas. Ele falava de literatura, de novo jornalismo, fiquei louco com tudo aquilo. Esse professor era o Zuenir Ventura. E no último ano da faculdade de design, fui trabalhar em jornal, um estágio no Jornal do Brasil, e acabei largando a faculdade. Então, como um jornalista iniciante, um estagiário, eu tinha um grande background de música. Além disso, eu conhecia pessoalmente todos aqueles artistas. Rapidamente fui para o caderno de cultura. Depois passei a crítico de música. Tinha 21 anos, por aí – e tinha também uma coluna de notícias. E, em 1968, nesse ano fatídico, minha vida pessoal também foi uma revolução. O André Midani – que era amigo dos meus pais – voltou do México, onde tinha trabalhado em gravadora, e me chamou para ser produtor de discos. Eu nunca tinha produzido disco na minha vida. Meu conhecimento era o de um músico precário e a minha vivência da música ali em volta. Aí eu larguei o jornalismo para produzir discos. Houve uma mudança muito grande. Eu tinha só uma visão, a visão do crítico. Eu queria o melhor e o meu padrão sempre foi de muita exigência, porque eu sou “filho” de João Gilberto. Então, essa geração do grande jazz americano, do João Gilberto, do Tom Jobim, da bossa nova, não era música para criança. Quando você entra no estúdio e tem que produzir o disco, tem que encarar vários outros fatores.  Primeiro, o relacionamento humano com os músicos no estúdio. Eu falei, apavorado: “Meu Deus! O que é que eu vou fazer aqui?” O primeiro disco que eu produzi foi da Joyce, ela estava começando. Vamos chamar quem? Wilson das Neves, na bateria, o Luizão, no baixo. Daí eu estou lá no estúdio com aqueles músicos todos. Como saber o que você quer, e como passar para os músicos o que você quer, sem impor, sem ser tirano, mas sendo firme? Você não pode ser enrolado. Os caras dão um nó no teu rabo ali, se fazem duas, três perguntas e você não responde direito. Então, essa parte é fundamental. E eu acabei me dando bem nessa parte, mais do que um dom musical, eu tenho um talento inato de relacionamento pessoal. Nesse sentido, sou muito habilidoso. Fui desenvolvendo um jeito, um estilo de lidar com as coisas, e aprendi muito com isso, porque o que interessa é o resultado. Se eu estiver no estúdio, e tiver que pedir desculpas para que a coisa saia como eu quero, vale. Se tiver que soltar os cachorros, também vale. Mas acho que o segredo da história é você primeiro ter claro o que você quer, depois saber pedir, fazer um clima, como um técnico de futebol. Ali você exerce um papel parecido, na dinâmica da gravação. Isso depois de cinco, seis, oito horas de gravação, e, às vezes, a mesma música. Aprendi também que você não fala na frente de todo mundo. Você chama o cara: “Ó, você é maravilhoso, é o músico da minha vida, mas esse pedaço aqui não foi legal”. O cara reconhece sempre, em uma boa: “Certo, desculpe. Vamos lá”. Se você chega no meio de três pessoas e fala: “Pô, cara, você errou a letra”, o outro vai dizer: “Eu não, não errei. Você está ouvindo errado”. Aí começa. O pessoal não gosta de testemunhas dos seus eventuais erros. Vou usar todas as táticas para conseguir o resultado que eu quero daquilo, que eu estou sendo pago para aquilo. Passei a ver que a música era um dos elementos do disco, que várias outras coisas entravam. A imagem é fundamental, além de outros fatores. Entender que aquela música é um produto, para ser vendido para um público. Então, ali eu passei a ter uma visão por outros ângulos, foi uma experiência muito enriquecedora. A minha formação de produtor de disco tem essa base teórica, de um aprendizado musical, da crítica, e depois a prática de estúdio, em condições ultraprecárias. A gente gravava em estúdio de quatro canais. Hoje, na minha casa, tenho muito mais recursos do que no estúdio que eu gravava com Elis Regina, em 1969. Meu laptop tem muito mais do que aquilo. Levando em conta o estúdio, o

Entrevista completa com Ruy Cezar, fundador da Casa Via Magia

  No final dos anos 70, a capa de uma edição do semanário IstoÉ o rotulava como “profeta do desbunde”. Pudera: depois de protagonizar uma engajada militância política, com direito a prisões e tortura na condição de presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE), Ruy Cezar decidiu mudar de vida, mirando seu interesse nas artes, mais precisamente no teatro. E começando já de forma radical: na pele de um travesti, de bolsinha e peruca. “Um escândalo na época”, recorda. A partir de então, a trajetória desse baiano nascido em 1956 foi dedicada à montagem de uma rede internacional de intercâmbio cultural com o objetivo de descobrir e divulgar manifestações artísticas pouco conhecidas, sobretudo no cenário latino-americano. “Nunca programamos ninguém que já estivesse com inserção na mídia ou no circuito comercial”, ele diz, citando alguns dos nomes revelados naquelas iniciativas, como Mônica Salmaso, Ná Ozzetti e a mexicana Lila Downs. Para Cezar, a diversidade cultural brasileira não é devidamente caracterizada e divulgada, o que compromete as possibilidades econômicas do turismo. “É sempre a mesma imagem da família na praia ou de uma pessoa sambando”, ironiza. Ele postula que está justamente na periferia a maior fonte para o desenvolvimento de novas possibilidades. “A inteligência não está nos centros: o centro está congestionado e gasto. As soluções estão nas periferias.” Sua história está ligada à militância política na época da ditadura. Como foi este processo de militante a produtor e agitador cultural? Essa questão da política começou no interior da Bahia, porque eu nasci na região rural. Estudei em um colégio agrícola muito repressor. Sou técnico em agropecuária. Nesse colégio, comecei com teatro, jornal. E o jornal foi apreendido, a peça foi proibida. Era um colégio ligado a Ceplac, que era o Plano de Recuperação da Lavoura Cacaueira, e ligado direto ao governo federal. Então, era um colégio com muita repressão. Jovem, eu senti essa necessidade de expressão. Não tinha contato com nenhum movimento político. Mas logo depois, eu fui para Salvador estudar jornalismo e encontrei a universidade invadida pelo Exército. Isso foi em meados da década de 70 e, novamente, fomos fazer um jornal, chamado Faca Amolada, e o jornal foi apreendido e eu, preso. Os policiais dispersavam qualquer grupo de mais de três, dentro da universidade, e, logo, a gente se viu nas reuniões buscando válvulas de escape. O teatro era sempre a válvula escolhida e preferida por mim. Fiz teatro desde jovem, atuei muito e faço teatro até hoje. Então,nós fizemos muita passagem em sala, manifestações de rua, interpretando cenas de Bertold Brecht. Isso me levou ao movimento estudantil. Em 1978, tentamos reabrir a UNE em São Paulo e tiveram os casos das bombas na PUC, quando os estudantes saíram queimados, uma situação dura. Em 1979, a gente conseguiu fazer na Bahia e isso coincidiu com o crescimento do movimento aqui em São Paulo, o movimento sindical, e também do movimento pela anistia. Foi um momento muito rico, quando eu tive a oportunidade de militar junto com líderes sindicais. Convivi com o Lula, então presidente do sindicato dos metalúrgicos. Visitei-o no DOPS, quando ele foi preso. Quando toda a diretoria do sindicato estava presa, fui uns dos coordenadores da assembleia em São Bernardo, com mais de 100 mil operários. Percorri o Brasil inteiro, enfrentei situações de crise, em Belém, no Pará, quando um policial deixou uma arma cair e matou um estudante sentado na frente – o policial era estudante também. Teve um caso dificílimo, em Florianópolis, quando alguns estudantes vaiaram o Figueiredo – ou relincharam. Porque o Figueiredo deu uma declaração de que preferia “o cheiro dos cavalos ao cheiro do povo”, não é? Então, os estudantes foram presos e gerou uma situação de conflito de rua imensa. As organizações estudantis não estavam ainda estruturadas e não tinha quem organizasse essas manifestações espontâneas. Tudo ainda era meio clandestino; o próprio processo da UNE era todo clandestino. A UNE foi reaberta, mas, oficialmente, não era reconhecida. Então, nós ficávamos escondidos e aparecíamos no meio dessas assembleias, subindo em caminhões, organizando essa retomada. No congresso de reconstrução da UNE, em 1979, em Salvador, estava o Teatro Oficina, com o Zé Celso Martinez Corrêa, o José Serra participou… Então, havia os operários se reorganizando, os exilados querendo voltar, o movimento da anistia se articulando. Fui eleito primeiro presidente, nessa época da reconstrução. Tive confrontos com a polícia, algumas prisões breves – de três, quatro dias. Nunca fiquei preso por longo tempo. E saí do movimento estudantil, sabendo que eu não ia fazer política partidária, que aquilo não era o que eu ia escolher. E como foi seu envolvimento com a cultura? Quando eu fazia militância nos grupos de teatro e me apresentava nas assembleias, na Universidade Federal da Bahia, passava em salas de aula fazendo cenas, fazendo teatro invisível, dentro dos ônibus. Nós nos apresentamos muito na periferia com o teatro, discutindo a violência contra a mulher. Era sempre um teatro político. Isso me levou à presidência do Diretório Central dos Estudantes, da Universidade Federal da Bahia. Fui candidato, em função do teatro, e um acaso me levou à presidência da UNE. O acaso foi que o congresso, que eu coordenei, foi em Salvador, e foi muito difícil. Foram lançadas bombas, tiveram várias situações de risco, que eu tive que intervir. As luzes se apagaram, eu organizei um coro… Em que ano foi isso? Em 1979, dia 29 de maio. Lá, a polícia cercou as estradas e nós alojamos os estudantes em casas de pessoas, uma situação complicada. Avisei que dirigiria o congresso e iria embora. Quando terminou o congresso, havia um apelo generalizado para que eu assumisse a presidência da UNE, mas eu já assumi prometendo que sairia, que eu não ficaria na política, embora a sedução fosse muita. Havia pesquisas sendo feitas no Rio, na Bahia, em São Paulo, de que eu seria um candidato a deputado eleito por votação recorde, porque havia uma cobertura da mídia das ações da UNE. Eu tinha sido capa de revistas, estava sempre

Entrevista completa de Aroldo Pedrosa, para o Produção Cultural no Brasil

A cultura do Amapá é apresentada por Aroldo Pedrosa com diversidade imensa, guardada por ribeirinhos, quilombolas, poetas e músicos. Produtor cultural, poeta, compositor e escritor, Pedrosa nasceu em 1958. Embalado pelas canções de Caetano Veloso e de Gilberto Gil, considera-se um herdeiro da tropicália. “Sinto a presença dessa intrépida trupe”, diz a respeito de sua própria obra. Pedrosa critica o crescimento do tecnobrega e a negação da música de vangarda da região. Conta sobre a tradição cultural de raiz do Amapá: o batuque, o marabaixo, o boi-bumbá, o samba. “Temos uma cultura muito própria.” Aroldo Pedrosa foi assessor de comunicação da prefeitura de Macapá entre 1995 e 2002, e do governo do Amapá na gestão de João Capiberibe. Trabalhou como agente cultural do projeto Navegar Amazônico, que desenvolve atividades de identificação, divulgação e documentação da cultura ribeirinha da Amazônia. Acabou por se tornar um vetor dos Pontos de Cultura no estado. Você se considera filho do tropicalismo. Como começou a atuar na área cultural? Acho que desde menino. Sou amapaense. Nasci no meio da floresta, mas sou filho de nordestinos. Meu pai era paraibano e minha mãe, cearense de Juazeiro do Norte. Era para meu pai ter ido para Salvador e mudou de caminho, vindo para a Amazônia. Fui o primeiro filho nascido no Amapá. Trabalhei em uma loja de discos em Macapá e essa loja de discos virou um ponto de encontro. Eu era garoto, tinha 12 anos, e nessa época, o tropicalismo tinha surgido. Eu me lembro dos discos da tropicália, o Transa, do Caetano Veloso [1972, Polygram], que estava exilado. Aqueles discos faziam uma verdadeira revolução na minha cabeça. Fui embalado por estas canções. Um de seus poemas tem o título de Uma Odisséia nos Trópicos e cita o Jorge Mautner. É uma verdadeira viagem. É a coisa mais bonita que já escrevi. Considero o meu Estatutos do Homem [poema do amazonense Thiago de Mello], vamos dizer assim. Macapá é uma cidade por onde passa a linha do Equador, e quando Caetano fez Um Índio, tem um verso em que ele diz que o índio vai descer em uma floresta, em um ponto equidistante entre o Atlântico e o Pacífico. É uma grande coincidência com um poema que escrevi muito tempo atrás, em 1978, antes do disco Bicho, do Caetano. Eu estudava em Belém e, na sala de aula, a professora deu o tema: “Quem sou eu?”. Era para escrever em prosa, mas veio esse poema. “Pedrosa, graça que na pia batismal me foi imposta. Pedra mais rosa, flor tropical, flor do bem, pedra do mal. Nasci em um ponto equidistante entre o trópico de Capricórnio e o trópico de Câncer – Macapá/Amapá –, sob um sol de quase 40 graus…”. Na época, a TV Globo fez uma minissérie chamada Ciranda Cirandinha, que foi muito perseguida pela ditadura. Aquele programa também fez a minha cabeça e teve a ver com esse poema. As pessoas que faziam o programa eram incríveis. Os atores eram Fábio Junior, Denise Bandeira, Lucélia Santos e Jorge Fernando. Muito depois é que eu escrevi Uma Odisséia nos Trópicos… Lembra a poesia tropicalista, a poesia marginal … É uma coisa que eu sinto no meu trabalho. O próprio Jorge Mautner ouviu Uma Odisséia nos Trópicos. Tem um verso que digo assim: “Chico Science, ao som dos maracatus, segura no céu o porta-estandarte. / Jorge Mautner, de guarda-chuva, lendo Nietzsche, dança o zouk-love. / Chega de saudade! Você me dá sorte!”. Sou compositor e tenho canções em que sinto que há um diálogo com o tropicalismo. Sinto a presença dessa intrépida trupe da tropicália. Qual foi seu primeiro trabalho de produção cultural? Meu pai era garimpeiro e, do Amapá, ele se mudou para o oeste do Pará, um lugar chamado Itaituba, uma cidade violentíssima que era o centro dos garimpos. E eu morei em garimpo. A gente lia Hamlet, de Shakespeare, para os garimpeiros à luz de lamparina. Lá eu comecei a me movimentar na música. Era estudante e lançamos na nossa escola um jornalzinho chamado A Rosa. Eu e meu irmão fomos expulsos da escola porque o jornal questionava. Eles não nos deixavam usar cabelo grande e a gente já tinha vindo de Macapá com essa história da tropicália. Era o ginásio em uma escola de irmãs. Nos artigos de A Rosa, a gente questionava o que achava extremamente careta. O jornal foi o meu primeiro trabalho junto a alguns poemas que publiquei. Fiz eventos em Itaituba. Foram o Baile da Romaria e o Baile da Tropicália. Aconteceram durante cinco anos. O Baile da Romaria, que acontecia no dia da padroeira Nossa Senhora de Santana. Levei o Renato Teixeira de São Paulo para Itaituba por causa da música Romaria. E o Baile da Tropicália, que acontecia em setembro, tinha esse nome por causa da minha paixão pelo movimento. Fale um pouco sobre o panorama cultural do Amapá. O Amapá é um estado novo. A cultura é aquela cultura de raiz, que existe desde o começo do mundo (risos). Falo isso porque viajei por aqueles rios. Aqueles rios são minhas ruas. “Esse rio é minha rua” é um verso do falecido poeta paraense Rui Barata. Trabalhei como assessor de comunicação no governo Capiberibe, que conseguiu criar uma auto-estima no povo do Amapá. As pessoas cujos pais vendiam açaí nas chamadas amassadeiras tinham vergonha de dizer isso. No Iratapurú, os coletores de produtos da floresta, de castanha, eram semi-escravos. Eles viraram empresários depois, foram instaladas fábricas lá. A França fez parceria com o Amapá para extrair o azeite da castanha e houve uma movimentação cultural. O Amapá é um estado que tem tradição do samba. O próprio Joãozinho Trinta, quando foi lá, ficou impressionado. Foi construído um sambódromo e é impressionante como o carnaval de lá se multiplicou. Mais de 70% da população é negra. Nós temos o marabaixo  [dança cantada dos caboclos do Norte] e o batuque, que são ritmos tradicionais. Temos também a Festa de São Tiago, em Mazagão, em que se conta

Entrevista com Ana Toni, para o Produção Cultural no Brasil

Como representante da Fundação Ford – uma das principais instituições de financiamento de entidades e projetos sócio-culturais –, Ana Toni trabalha com políticas de incentivo a quem promove o debate contemporâneo no Brasil, sejam eles movimentos sociais, universidades ou organizações não-governamentais. “O mundo global me fascina: pensar local e agir global, pensar global e agir local.” Formada em economia, Ana Toni já trabalhou para o Greenpeace International e ActionAid International. Está na Fundação Ford desde 2003. Em quase 50 anos de atuação da fundação no Brasil, gosta de lembrar que a Ford também acompanhou os novos desafios do país. “(Com o fim da ditadura) a fundação começou a expandir os seus horizontes.” Foi a Fundação Ford quem investiu durante décadas em pesquisas e projetos sobre negros e afrodescendentes. “Trabalhamos com a questão racial no Brasil há mais de 30 anos – e só agora, nos últimos 10 anos, é um grande tema.” Com o mesmo perfil, agora incentivam o protagonismo indígena. Ana Toni ainda é entusiasta da cultura digital e do acesso on-line a dados públicos. Aponta avanços nas políticas federais e sugere caminhos: “A transparência tem que chegar aos níveis municipal e estadual.” Como surgiu a Fundação Ford e de que maneira ela funciona? A Fundação Ford nasceu por uma iniciativa do Henry Ford, que deu algumas ações da companhia automobilística Ford para um grupo de pessoas independentes, a fim de que trabalhassem pela paz e pelo bem social nos Estados Unidos e no mundo. Esse grupo vendeu as ações e criou um endowment, isto é, um fundo patrimonial com ações de outras companhias. E esse fundo foi crescendo. No final dos anos 90, começo dos anos 2000, chegou a ter mais de US$ 15 bilhões nesse fundo. Hoje são US$ 10 bilhões. Nossa organização se mantém com uma parte desse lucro. Em média, a fundação gasta de US$ 400 milhões a US$ 500 milhões no mundo inteiro. Temos 13 escritórios: três na América Latina, quatro na África, quatro na Ásia, e, logicamente, os escritórios nos Estados Unidos. Qual a história da Fundação Ford no Brasil? A Fundação está no Brasil há quase 50 anos. Entrou no país em 1962, dando alguns apoios, mas abriu escritório próprio em 1964. Logo que a fundação chegou, começou a ditadura militar. Acho importantíssimo o papel que a fundação teve naquela época, de mandar para fora do Brasil pessoas que estavamsendo ameaçadas, principalmente acadêmicos, como o Fernando Henrique Cardoso, o pessoal do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), que migrou para os Estados Unidos, para o Chile ou para a França, com a ajuda da Fundação Ford. E os que ficaram tiveram apoio da fundação na forma de bolsas individuais. Essa foi nossa atuação até o fim dos anos 70. Já no processo de redemocratização, a fundação mudou um pouco o seu papel e começou a oferecer apoio institucional para grupos constituídos com base na sociedade civil. A fundação começou a financiar novas vozes do processo democrático: mulheres, indígenas, afro-brasileiros. Acredito que todos tínhamos um objetivo único, que era o processo da democratização brasileira, a criação de uma nova Constituição. Depois da democracia ter sido estabelecida, a fundação começou a expandir os seus horizontes para os novos desafios do Brasil. Você trabalhou em outras organizações internacionais, antes de ingressar na Fundação Ford. Como foram essas experiências? O mundo global me fascina: pensar local e agir global, pensar global e agir local. E sempre tive privilégio de atuar nessa área. Trabalhei para a TV Globo em Londres, depois fui para a ActionAid International, para o Greenpeace Internacional, e agora estou na Ford. A Fundação Ford, apesar de ser uma marca muito mais norte-americana do que as outras, continua sendo uma organização global na sua maneira de pensar. A partir do seu olhar privilegiado na Fundação Ford, como pensar a economia criativa do BRIC [Brasil, Rússia, China e Índia]? Há cinco anos propusemos para Fundação Ford criar – a partir dos escritórios de Brasil, África do Sul e Índia – um pool de dinheiro para financiar a troca entre esses países. Durante quatro anos financiamos diversos projetos nesse sentido. Um desses projetos foi o da ONG Conectas, de São Paulo. Esse grupo de direitos humanos estudou a Justiça de cada um dos países envolvidos [Justiciabilidade dos Direitos Humanos – uma análise comparativa: África do Sul, Brasil e Índia, 2010]. A Índia acabava de se desligar de um império, tornando-se independente e com uma nova constituição; a África do Sul saía do apartheid e o Brasil, da ditadura militar. Foi um estudo muito interessante comparar os direitos dos cidadãos, a partir dessas diversas perspectivas, e perceber o quanto podemos aprender um com o outro. Tem muito o que explorar, mas é uma área que é pouco valorizada, mesmo dentro da Fundação Ford. Infelizmente, tivemos que acabar com o programa. Porém, não tenho a menor dúvida que explorar a relação do BRIC é o futuro. O estranho é que, nesses países, os autores traduzidos e publicados são os mesmos. Ainda existe um centralismo na cultura que passa pelo hemisfério norte. Não se pode tirar os intermediários, agora que vivemos em rede? As fundações podem ajudar? Concordo absolutamente. Porém, é muito mais fácil financiar projetos que tenham um intermediário do norte, do que financiar um projeto horizontal entre países do sul. Por exemplo, quando a gente financia um projeto no Brasil para fazer pontes com a África do Sul e com a Índia, não se consegue pagar nada nestes países porque o sistema bancário brasileiro não ajuda. Então, é muito mais fácil para uma fundação, que está nos Estados Unidos, dar dinheiro para Harvard, ou para Yale, e pedir para contratar um brasileiro, um indiano ou um sul-africano, e fazer essa intermediação. Sou totalmente contra isso. Temos que investir nessas sementes e fazer com que fique tão fácil para nós quanto é para eles. Temos capacidade e material para se trabalhar, mas nos falta a experiência. No Brasil, não existe a tradição de empresas doarem dinheiro

Entrevista completa com GOG, para o Produção Cultural no Brasil

Genival Oliveira Gonçalves foi alfabetizado aos cinco anos de idade pela mãe, professora, que o iniciara nas crônicas de Cecília Meirelles. Era um fenômeno em concursos de ditado e sabia de cor as capitais do mundo. Respirava cultura muito antes de conhecer o significado do termo. Não sabia que aquilo de que mais gostava – o hip hop – era também uma “cultura”. É desta cultura que Genival – apelidado GOG – é porta-voz dos mais notórios. GOG faz rap há muito. Nasceu no entorno de Brasília e lá continua a fazer sua arte. Para o rapper, o Distrito Federal está na origem do próprio movimento junto com São Paulo. O futuro, aponta, é o hip hop deixar de ser gueto. “O mundo tem que ser o gueto.” Nos anos 90, GOG abriu a própria gravadora, cansado do alheamento da indústria cultural ao hip hop. “Ninguém queria gravar GOG, Câmbio Negro, DJ Jamaika”. Hoje, disponibiliza sua obra para download gratuito – ou com o consumidor pagando o que quiser. Alguns chegam a imprimir um boleto e pagam R$ 1 por música. GOG fica satisfeitíssimo. “A pessoa que baixa minha música não compra o CD, mas chega nos amigos e diz: ‘Irmão, você já ouviu GOG?’ ” Como você começou a trabalhar com cultura e produção? A culpada disso tudo foi dona Sebastiana, minha mãe. Ela é professora, lecionou por 30 anos. Mesmo nascendo na periferia de Brasília, sendo fruto dessa afro-diáspora, passando pelo Nordeste, esse ponto da educação foi fundamental. Minha mãe, mesmo com dificuldade, me alfabetizou aos cinco anos com livros de Cecília Meirelles, com crônicas dela. Meu pai reforçou isso. Ainda menino, eu sabia as capitais de todo o mundo e ele me levava à feira livre para fazer apresentação. Também tinham as competições de ditados. Meu pai me colocava com meninos de 12, 13, 14 anos, para escrevermos: “Necessário”, “necessidade”, palavras mais difíceis com dois “s”, com “ç”. Isso estruturou a minha caminhada. E mesmo estudando em escola pública, aos 17 anos, ingressei na faculdade de ciências econômicas. Só que o meu habitat natural, a periferia, me fazia ser de uma geração James Brown. A gente costuma dizer que são duas gerações musicais: Beatles e James Brown. Eu pertenço à esta última. Meus primos usavam saltos plataforma, cabelão black, ouviam Cassiano, Tim Maia, Hyldon, mas também Paulo Sérgio e Evaldo Braga. Tudo já estava ali colocado, mas eu ainda não conseguia perceber que já era cultura. Os anos 70 foram uma das épocas mais frutíferas da cultura e da música nacional. Aos 12 anos, comecei a dançar. Passei pelo soul, pelo funk, pelo break no início dos anos 80. Só depois que a gente descobriu que o break era um dos elementos de um movimento chamado hip hop. Eu vivia a cultura, mas não sabia que era. A palavra “cultura” passou a fazer parte do meu dia-a-dia. Essa palavra era como se fosse uma entidade, uma coisa institucionalizada, engessada. Aos poucos, descobri que o hip hop era uma cultura, que abrangia outros elementos: o break, o DJ, o grafite e o MC, que é o rapper, o cantor de rap. A etimologia de “rap” vem das palavras “ritmo e poesia”. Isso quer dizer que ritmo e poesia estão ali brigando, lado-a-lado. O rap, principalmente o dos anos 80, trouxe o cunho social, político, a verborragia. Para escrever, você tem que ter argumento e toda uma estrutura para escrever e montar – assunto, delimitação do assunto, desenvolvimento e um final. Eu trouxe isso para minha música, é um conhecimento praticamente científico. A ciência nasce da observação, assim como a música. É nesse ponto que eu provoco, falo do termo da propriedade intelectual da música. Sou a favor da flexibilização dos direitos autorais. É claro que é uma colcha de vários retalhos, mas, no caso do hip hop, da minha música, percebo que eu não teria nada escrito se não fosse a observação do que está fora. A partir do momento que está fora, será que era meu? A quem pertencia? De repente, um olhar aqui me inspira a escrever uma música, fazer um texto, e eu vou vender muito com isso. E aí? A discussão da propriedade intelectual, principalmente da música, precisa ter essa percepção. Que existe diálogo entre as obras e que o direito pressupõe troca também? A discussão do direito autoral precisa ser um diálogo maduro. Não pode ser permeado apenas de uma visão, não pode ser só a visão do empresário, porque ele, a princípio, não é autor. Ele gerencia, trabalha e assessora o autor. Essa parceria tinha tudo para dar certo se fosse mais planificada, se os contratos não fossem tão exigentes. Aliás, acho que essa parceria entre empresário e autor dá certo, ela tem longevidade se as duas partes estiverem abertas. Inclusive para as novas tecnologias, abertas a perceberem essa mobilidade, do espaço humano, de tudo que acontece no planeta. Você teve uma gravadora, certo? Você esteve nos dois lados do balcão: do empresário e do artista. Como você pensa essa relação? A Só Balanço existe ainda. Lancei vários artistas de hip hop pela Só Balanço. No hip hop e na rua, mais do que contrato, o que vale é a palavra. Compromisso é a palavra. A gente faz sempre uma conversa bem feita para firmar os pontos principais. Só está na Só Balanço enquanto estiver satisfeito. Não tem multa contratual: se você quiser embora, você vai amanhã ou agora. Mas você vai ter o respeito. Tento desconstruir a relação do patrão e do empregado. Lá dentro, o artista contratado é responsável pela gravadora, pelo bom nome, pelo zelo, tem que estar tranquilo, satisfeito. Se ele precisar de alguma coisa que a gravadora não possa dar naquele momento, a gente explica, conversa, dialoga. E como surgiu a Só Balanço? Ninguém queria gravar a gente, ninguém queria gravar o GOG, o Câmbio Negro, DJ Jamaika, no início do hip hop. Só passaram a querer gravar depois que a indústria fonográfica descobriu o hip hop, quando o mundo todo começou a cantar, contar e cantar. Mas as periferias de Brasília, São Paulo, as brasileiras, todas já estavam com essa efervescência. Faltou percepção nas gravadoras. Uma coisa que toda gravadora tem

Entrevista de GOG ao Produção Cultural Brasil

Genival Oliveira Gonçalves foi alfabetizado aos cinco anos de idade pela mãe, professora, que o iniciara nas crônicas de Cecília Meirelles. Era um fenômeno em concursos de ditado e sabia de cor as capitais do mundo. Respirava cultura muito antes de conhecer o significado do termo. Não sabia que aquilo de que mais gostava – o hip hop – era também uma “cultura”. É desta cultura que Genival – apelidado GOG – é porta-voz dos mais notórios. GOG faz rap há muito. Nasceu no entorno de Brasília e lá continua a fazer sua arte. Para o rapper, o Distrito Federal está na origem do próprio movimento junto com São Paulo. O futuro, aponta, é o hip hop deixar de ser gueto. “O mundo tem que ser o gueto.” Nos anos 90, GOG abriu a própria gravadora, cansado do alheamento da indústria cultural ao hip hop. “Ninguém queria gravar GOG, Câmbio Negro, DJ Jamaika”. Hoje, disponibiliza sua obra para download gratuito – ou com o consumidor pagando o que quiser. Alguns chegam a imprimir um boleto e pagam R$ 1 por música. GOG fica satisfeitíssimo. “A pessoa que baixa minha música não compra o CD, mas chega nos amigos e diz: ‘Irmão, você já ouviu GOG?’” Como você começou a trabalhar com cultura e produção? A culpada disso tudo foi dona Sebastiana, minha mãe. Ela é professora, lecionou por 30 anos. Mesmo nascendo na periferia de Brasília, sendo fruto dessa afro-diáspora, passando pelo Nordeste, esse ponto da educação foi fundamental. Minha mãe, mesmo com dificuldade, me alfabetizou aos cinco anos com livros de Cecília Meirelles, com crônicas dela. Meu pai reforçou isso. Ainda menino, eu sabia as capitais de todo o mundo e ele me levava à feira livre para fazer apresentação. Também tinham as competições de ditados. Meu pai me colocava com meninos de 12, 13, 14 anos, para escrevermos: “Necessário”, “necessidade”, palavras mais difíceis com dois “s”, com “ç”. Isso estruturou a minha caminhada. E mesmo estudando em escola pública, aos 17 anos, ingressei na faculdade de ciências econômicas. Só que o meu habitat natural, a periferia, me fazia ser de uma geração James Brown. A gente costuma dizer que são duas gerações musicais: Beatles e James Brown. Eu pertenço à esta última. Meus primos usavam saltos plataforma, cabelão black, ouviam Cassiano, Tim Maia, Hyldon, mas também Paulo Sérgio e Evaldo Braga. Tudo já estava ali colocado, mas eu ainda não conseguia perceber que já era cultura. Os anos 70 foram uma das épocas mais frutíferas da cultura e da música nacional. Aos 12 anos, comecei a dançar. Passei pelo soul, pelo funk, pelo break no início dos anos 80. Só depois que a gente descobriu que o break era um dos elementos de um movimento chamado hip hop. Eu vivia a cultura, mas não sabia que era.  A palavra “cultura” passou a fazer parte do meu dia-a-dia. Essa palavra era como se fosse uma entidade, uma coisa institucionalizada, engessada. Aos poucos, descobri que o hip hop era uma cultura, que abrangia outros elementos: o break, o DJ, o grafite e o MC, que é o rapper, o cantor de rap. A etimologia de “rap” vem das palavras “ritmo e poesia”. Isso quer dizer que ritmo e poesia estão ali brigando, lado-a-lado. O rap, principalmente o dos anos 80, trouxe o cunho social, político, a verborragia. Para escrever, você tem que ter argumento e toda uma estrutura para escrever e montar – assunto, delimitação do assunto, desenvolvimento e um final. Eu trouxe isso para minha música, é um conhecimento praticamente científico. A ciência nasce da observação, assim como a música. É nesse ponto que eu provoco, falo do termo da propriedade intelectual da música. Sou a favor da flexibilização dos direitos autorais. É claro que é uma colcha de vários retalhos, mas, no caso do hip hop, da minha música, percebo que eu não teria nada escrito se não fosse a observação do que está fora. A partir do momento que está fora, será que era meu? A quem pertencia? De repente, um olhar aqui me inspira a escrever uma música, fazer um texto, e eu vou vender muito com isso. E aí? A discussão da propriedade intelectual, principalmente da música, precisa ter essa percepção. Que existe diálogo entre as obras e que o direito pressupõe troca também? A discussão do direito autoral precisa ser um diálogo maduro. Não pode ser permeado apenas de uma visão, não pode ser só a visão do empresário, porque ele, a princípio, não é autor. Ele gerencia, trabalha e assessora o autor. Essa parceria tinha tudo para dar certo se fosse mais planificada, se os contratos não fossem tão exigentes. Aliás, acho que essa parceria entre empresário e autor dá certo, ela tem longevidade se as duas partes estiverem abertas. Inclusive para as novas tecnologias, abertas a perceberem essa mobilidade, do espaço humano, de tudo que acontece no planeta. Você teve uma gravadora, certo? Você esteve nos dois lados do balcão: do empresário e do artista. Como você pensa essa relação? A Só Balanço existe ainda. Lancei vários artistas de hip hop pela Só Balanço. No hip hop e na rua, mais do que contrato, o que vale é a palavra. Compromisso é a palavra. A gente faz sempre uma conversa bem feita para firmar os pontos principais. Só está na Só Balanço enquanto estiver satisfeito. Não tem multa contratual: se você quiser embora, você vai amanhã ou agora. Mas você vai ter o respeito. Tento desconstruir a relação do patrão e do empregado. Lá dentro, o artista contratado é responsável pela gravadora, pelo bom nome, pelo zelo, tem que estar tranquilo, satisfeito. Se ele precisar de alguma coisa que a gravadora não possa dar naquele momento, a gente explica, conversa, dialoga. E como surgiu a Só Balanço? Ninguém queria gravar a gente, ninguém queria gravar o GOG, o Câmbio Negro, DJ Jamaika, no início do hip hop. Só passaram a querer gravar depois que a indústria fonográfica descobriu o hip hop, quando o mundo todo começou a cantar, contar e cantar. Mas as periferias de

Entrevista completa com MC Leonardo, para o Produção Cultural no Brasil

  Criado na Rocinha, o cantor e compositor MC Leonardo é hoje um dos mais articulados porta-vozes do funk carioca. Filho do forrozeiro Chico Mota, que gravou com Jackson do Pandeiro, conheceu cedo o coco e a embolada. Mas sua carreira coincide com a origem e evolução do funk no Rio de Janeiro. É autor de Rap das Armas, hit nacional do filme Tropa de Elite. Leonardo sintetiza seu mundo cultural: “Dê ouvido ao funk, que voz a gente tem.”   Ele preside a Associação dos Profissionais e Amigos do Funk (Apafunk). “Falam que as favelas do Rio têm facção. Quem tem facção é o crime organizado, não as favelas. A favela sorri, chora, fica tensa. É todo mundo junto”. Sua mobilização conseguiu pressionar os parlamentares fluminenses a reconhecer o funk como manifestação cultural e também a derrubar uma lei usada pela polícia para reprimir os bailes. “Foi a saída do funk da segurança pública para chegar à cultura”.   MC Leonardo postula que, na verdade, a onda do funk poderia ter sido aproveitada de forma positiva pelas autoridades. “O governo devia ter se aproximado, ver o que poderia fazer para a cidade poder lucrar com aquele acontecimento. E não fez.” Ele garante não se chatear com quem diz que o funk é uma cultura feia ou pobre, porque “gosto não se discute”. Mas critica quando falam que o gênero não é cultura. “O funk colocou as favelas dentro do mapa do Rio de Janeiro.” Leonardo, conta como um filho de repentista se aproxima do funk                                                                                                                                                                   Meu pai, Chico Mota, gravou com Jackson do Pandeiro. Fui criado no meio do coco, do xaxado, do baião. Até os 10 anos, minha trilha sonora era essa: forró, coco, embolada. Em 1985, com a explosão do samba do bloco Cacique de Ramos, no Rio, começo a encontrar novos tambores, novas batidas com o pagode, quando muitos foram revelados com a ajuda da madrinha Beth Carvalho. Era o que eu ouvia além do forró. Aí surgiu o Funk Brasil [Polydor, 1989], do DJ Marlboro, um disco que tinha a famosa “melô”, em que as pessoas inventavam um refrão brasileiro para músicas estrangeiras. Em 1992, entrei pela primeira vez em um baile funk para curtir. Na segunda, já para cantar. Se a Bahia deu régua e compasso para o Gilberto Gil, para mim deu a papelaria toda. Com a batida do funk, vi que eu tinha condições de colocar tudo para fora, as minhas melodias de infância. Assim, entramos eu e meu irmão na música. MCs Junior e Leonardo. Já tenho 18 anos de carreira e não tem uma capital do país que eu não conheça. Tudo que tenho devo ao funk. E tenho lutado esse tempo todo por um olhar diferenciado da política sobre nossa música. No Rio de Janeiro, ela sempre esteve nas mãos da Secretaria de Segurança Pública. E no dia 1o de setembro de 2009, dia histórico para o funk, a gente conseguiu fazer aprovar dois projetos de lei por unanimidade na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj). Era o reconhecimento do funk como manifestação cultural e também o fim da Lei 5.265/08, usada pela polícia para reprimir o funk. Era a saída do funk da segurança pública para chegar à cultura. O Estado reconheceu o funk como cultura carioca, em caráter musical e pedagógico. Quando começaram os bailes funk? O primeiro baile funk registrado foi em 1969. Então, já são mais de 40 anos. Eram os chamados “bailes black”. As equipes de som no Rio de Janeiro tinham uma dificuldade grande de trabalhar, por conta do peso dos equipamentos. Cada área no Rio de Janeiro tinha uma equipe de som: o Morro do Cantagalo tinha a Curtisom Rio; em Niterói, a Duda’s e a Pipo’s; a Furacão 2000 era da zona norte da cidade, da Baixada Fluminense; e assim ficou. O DJ Marlboro, por não ter equipe e ser uma pessoa altamente visionária, com um feeling muito bom para a música, começou a fazer produção no final dos anos 80 e conseguiu colocar o funk no clube Scala e em outros lugares. Em 1995, a gente chegou ao Brasil todo com o primeiro disco de uma dupla de MCs por uma multinacional. Era o “De Baile em Baile” [Sony]. Gravamos o primeiro videoclipe de funk, o Rap das Armas, na TvZero, em que o Roberto Berliner, cujo trabalho admiro muito, estava começando. Foi importante para a gente esse lado profissional do funk. A gente começou a ser chamado de artista e passou a ter um tratamento de artista. Mas o funk é da maneira que é por ser espontâneo, democrático, por ter se colocado à disposição da favela. O funk cabe no bolso do favelado. No tradicional baile funk do Rio de Janeiro, a entrada custa R$ 6, mulher até meia-noite não paga nada. Depois disso, paga R$ 3. Então, essa cultura nunca vai acabar se continuar dessa maneira. É igual ao sol: onde tem espaço, o funk entra! Por conta da proibição [nos anos 90, os bailes foram proibidos pelas autoridades com a negação de alvarás sob a alegação de que promoviam a violência], o funk foi acusado e condenado. O funk nunca foi julgado. Em um julgamento, a pessoa pode se defender. E nunca abriram espaço para nossa defesa. Colocaram muitas coisas na conta do funk do Rio de Janeiro, o que acabou inviabilizando os bailes de continuarem em alguns lugares. Em 1992, os bailes funks só perdiam para as praias no número de frequência, e mesmo assim no verão! Ganhava e ainda ganha do futebol. O governo devia ter se aproximado desse movimento, ver o que poderia fazer para a cidade poder lucrar com isso, mas não fez. Talvez por ser um ritmo jovem, negro e pobre. O funk ainda procura seu reconhecimento? A gente tem feito uns trabalhos dentro das cadeias, das universidades, dos colégios, dos espaços públicos de rua, principalmente dentro das favelas, para mostrar às pessoas que o funk tem que continuar.

Entrevista de Fernando Faro, o Baixo, para o Produção Cultural no Brasil

  Seu apelido entre os grandes músicos é “Baixo”. É o maior responsável pela preservação da memória televisiva brasileira. Questionado sobre o rótulo, não se faz de rogado: “Sim, eu me acho!”. Ele é Fernando Faro, jornalista, produtor musical e diretor do programa Ensaio, criado em 1969 na finada TV Tupi, depois reposicionado na grade da TV Cultura, onde perdura até hoje. O Ensaio – um mix de entrevista com performances musicais – se tornou mítico por seu formato inovador, que valorizava o tom informal, às vezes errante, das conversas com os músicos. Daí o nome do programa. “Comecei a achar o erro bom, bonito”, diz Faro sobre a ideia de explorar situações como a apresentação desafinada de um cantor, por exemplo, que no mainstream televisivo seriam naturalmente escondidas na edição. Grande parte desta produção musical já foi digitalizada e relançada em CD, DVD e livro. Até por essa característica, Fernando Faro ficou marcado pela grande intimidade que estabelecia com seus entrevistados, a despeito das frequentesdificuldades de borderô – ou falta dele – na produção. Certa vez, tentou convencer Caetano Veloso a aceitar R$ 1 mil por uma participação. Em outra, ainda na TV Tupi, pagou do próprio bolso o táxi para que Théo de Barros pudesse voltar para casa. Paulinho da Viola, por sua vez, nunca aceitou um centavo. Mas Faro pagava-lhe o almoço. Quem é “Baixo”? Nasci em Aracaju, em Sergipe, naquela Praça Fausto Cardoso, antiga Praça do Palácio, que eu só conheci depois. Fui pequeno para Laranjeiras, mesmo estado, onde morava minha família. Rua Direita, número 8. E acho, afinal, que eu sou um metido (risos). Se eu tivesse que escolher um país para nascer, escolheria o Brasil. E sobre Laranjeiras, local da minha infância, é como o Mário de Andrade falou de São Paulo: “Comoção da minha vida”. Como foi seu começo? Foi no jornalismo, certo? Fui trabalhar em jornal. Comecei em um jornal comunista aqui de São Paulo. Depois, fui para o jornal A Noite e Jornal de São Paulo. Lá me deram a coluna de cinema, teatro. Comecei a me interessar pela representação, pelos atores. Fui depois para a Rádio Cultura, que não tinha nada a ver com o governo do Estado. E, de lá, fui parar na televisão. Uma noite, fui em uma churrascaria e quem estava lá era o Demerval Costa Lima, o dono das comunicações de São Paulo e um pouquinho do Brasil. E ele chamava todos de “figura”. Aí ele chegou na minha mesa: “Ô, figura! Você não quer trabalhar comigo, não?”. Ele, naquele tempo, era o dono da TV Paulista, da Rádio Nacional. E eu disse: “Pô, Costinha, com o maior prazer”. No dia seguinte, fui à direção artística da TV.  O Costinha chegou e disse que eu ia começar no jornal e depois me passaria para a área artística. Fui. Era o grande jornal da TV Paulista, presidido pelo jornalista Carlos Rizzini. Também trabalhava lá o Evaldo de Almeida Pinto. Sete ou oito meses depois, o Costinha perguntou se eu iria permanecer no jornal. O Rizzini não queria me liberar, mas um dia o Costa Lima chegou e disse: “Figura, eu quero que você quebre um galho para mim. Tenho um ‘musicalzinho’ de tarde na TV. Queria que você fizesse”. Adivinha com quem era o musical? Hebe Camargo e a irmã. Depois disso, fiz coisas assim inesquecíveis. Por exemplo, a cobertura da caçada por Promessinha e Jorginho, dois bandidos famosos na época. Quando terminava o trabalho no jornal, eu pegava o cinegrafista, cupincha meu, e ia com ele atrás dessa história. Pouco depois, o Promessinha foi preso. Aliás, tem uma foto do Nelson Gatto, repórter policial de A Última Hora, segurando o Promessinha com uma gravata. E ele disse assim: “Deixa comigo que eu dou o Jorginho para você”. Uma noite cheguei no jornal e me disseram que tinham prendido o Jorginho. Arrastei um comigo e fomos para a delegacia. Cheguei lá na polícia, mas não podia entrar com gravador na cela. Dei o microfone para o Jorge e fiquei com o equipamento de gravação do lado de fora. Perguntei: “Você matou o japonês? Passou com o carro em cima dele?”. E ele: “É, mas ele já estava morto. E quase que eu peguei você também”. Aí lembrei que na noite anterior eu tinha ido na Favela do Vergueiro atrás do Jorge, porque tinha a  possibilidade de encontrá-lo. Lá me mostraram o barraco dele. A luz na frente estava acesa, atrás também. Bati, bati, chamei por ele. Ninguém respondeu. Mas ele estava lá. Muita coragem… É, foi assim. Eu entrevistei o Jorge na delegacia e só tinha microfone para ele. Eu não tinha. Então, eu fazia a pergunta e ele respondia. Peguei o material e levei para a TV Paulista. Ouvi a gravação que só pegou as respostas dele e pensei: “Porra, isso dá para usar legal”. Assim começou aquele negócio de fazer a pergunta sem ninguém ouvir e conseguir as respostas. O início doEnsaio. Como é que foi essa transição? Do jornalismo para um programa musical? Do jornal da TV Paulista, depois de dois anos, cheguei para o Rizzini e disse que precisava sair, que não aguentava mais aquele caminho. Ele disse assim: “Vou te dar uma carta. Você leva para o Cassiano Gabus Mendes”. Peguei a carta e fui na Tupi, que ficava ali no bairro do Sumaré. Encontrei o Cassiano e entreguei a carta. Ele falou que não precisava daquilo, disse que o Dionísio Azevedo, Demerval Costa Lima, José Castellar, o pessoal todo não se cansava de falar de mim. Então, sugeriu que eu fizesse uma edição do TV de Vanguarda [programa semanal de adaptações literárias]. Concordei. Era uma segunda-feira e ele queria para o fim de semana. Lembrei do livro O Tempo e o Vento, do Érico Veríssimo, que tem vários romances. Peguei um deles e fiz uma adaptação, que foi ao ar. Dois meses depois, veio um comunicado do Cassiano pedindo para renovar meu contrato por dois anos. Eu tinha um contrato

Fragmentos de uma viagem com o Fora do Eixo no Ônibus Hacker

por Rodrigo Savazoni I Casa Fora do Eixo São Paulo. Sexta-feira, 20 de abril de 2012. Por volta de meio dia e meia. Sou recebido por Cláudio Prado e vários parceiros do Centro Multimídia do FdE, que registram cada movimento dos tripulantes que irão cair na estrada no Ônibus Infinito, uma aliança entre o Circuito Fora do Eixo, a Casa da Cultura Digital e o Ônibus Hacker. Nosso destino é Belo Horizonte. Vamos participar do lançamento da Casa Fora do Eixo Minas, em BH, que se soma à de São Paulo como bunker de articulação do movimento social da cultura. A previsão é que subam para o rolê várias “personalidades” que atuam na produção, defesa e difusão da cultura livre. II Na madrugada do dia anterior o Ônibus Hacker, um ônibus antigo que foi comprado e adaptado com recursos obtidos por meio de uma campanha de doações feita no site de financiamento coletivo Catarse, quebrou em seu retorno de Brasília. Estava em Araguari, triângulo mineiro. Seria consertado e iria direto para BH. Nos encontraria lá. Para substituí-lo, o Fora do Eixo fretou um novo ônibus. Naquele dia, o Ônibus Hacker se duplicou, afinal, ele é um conceito e existe como plataforma nômade para juntar ativistas e articuladores da cultura livre em viagens de autoformação e compartilhamento de conhecimento. III Já são três da tarde. Os tripulantes se juntam em frente ao novo Ônibus Hacker, para fazer a “foto oficial”. Reina a alegria. Para participar dessa viagem, vesti uma camiseta rosa do Che Guevara que comprei em Havana. Eu quero ter uma coleção de camisas rosas do Che Guevara. Sem perder a ternura. Fazendo da guerrilha cotidiana por uma vida menos ordinária um grande ato de amor. Sem abdicar de começarmos a transformação por nossas condutas, gestos e atos. Raquear é agir, de forma diferente, para fazer do mundo, com as próprias mãos, um lugar melhor. É isso que buscamos nessa aliança do Fora do Eixo com a Casa da Cultura Digital. IV Por volta das cinco, depois de feitas as apresentações, evocamos Alex Antunes, que é responsável por uma das traduções de Neuromancer, o romance de William Gibson que cunha o termo Ciberespaço, para nos contar sobre seu trabalho. É a primeira conferência da nossa universidade sobre rodas. Alex, jornalista, crítico musical, romancista, figuraça do bem, conta como foi versionar para o português as aventuras do anti-herói Case, um hacker. Pouca gente que estava no Ônibus conhecia Case. A palestra, que foi buscar as origens da ficção científica e sua relação com a literatura policial, foi feita utilizando o sistema de som do ônibus fretado. V Ciberespaço. Uma alucinação consensual. Lembrei-me, mas não falei nada na hora – digo agora – do Cyberpunk de Chinelos do Felipe Fonseca. “O tipo de pensamento que deu substância ao movimento do software livre possibilitou que os propósitos dos fabricantes de diferentes dispositivos fossem desviados”, escreve EfeEfe. Um ônibus hacker é um dispositivo desviado. O mundo é cyberpunk. E um pouco cyberhippie também. O mundo é do jeito que é. Está cada vez está mais divertido, com tanta gente aderindo a formas desviantes de viver. Ok, vão dizer: isso ainda é para poucos, a desigualdade é enorme! É verdade, mas não dá mais para esperar pelo futuro. Tem de ser agora. É a vida, afinal, que está em jogo. VI Quase meia noite. A trupe chega a Belo Horizonte. Uma festa nos espera. A Casa Fora do Eixo Minas, em seus primeiros dias de vida, já demonstra-se mágica, como a de São Paulo é, como muitos dos festivais independentes do Brasil são. Sobre o telhado, em uma caixa d’água inclinada mais ou menos 30 graus, Vitor Guerra montou uma traquitana: um pedestal de microfone sustenta nas pontas uma caixa que abriga um projetor, o qual exibe, em uma empena cega do prédio vizinho, a logomarca do Fora do Eixo, com imagens sobrepostas, que fragmentam a logo, decompondo-a. Seriam nuvens? Gambiarra da melhor espécie. A traquitana do Vítor, integrante do Centro Multimídia do Fora do Eixo que a cada dia produz mais e melhores conteúdos, é a metáfora que eu buscava. Somos o país do mutirão, que se adapta, que se modifica, com velocidade estonteante, para dar conta desse mundo fluido em que estamos inseridos. Um ônibus quebra? Vira dois. O sistema de som do ônibus? É um auditório. Uma casa? É um laboratório. Um pedestal? É uma traquitana que exibe imagens na parede que fazem a noite ficar ainda mais bonita. VII Durante todo o fim de semana, a Pós-TV transmitiu debates sobre as questões contemporâneas da sociedade, da cultura e da política. Sobreposição de vozes em streaming contínuo. No multiplex do precariado, ao lado da piscina, localizado no quintal dos fundos da casa, videoartistas exibiram seus trabalhos para um público seleto e qualificado. Na soleira do casarão, o Ônibus Hacker se estacionou, Belasco e Lívia Ascava abriram o gazebo e fomentaram imaginações brincantes de circuitos eletro-eletrônicos. Encontros ocorreram. Amores apareceram. Tudo gravado, filmado, e compartilhado nas malhas da rede. Para aquela casa, bonita, do bairro de São Lucas, em BH, confluiu o fluxo histórico de lutas, desejos e sonhos brasileiros e internacionalistas, que movem o crescente movimento social da cultura, que já ganhou as estradas, infinitamente.

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