Entrevista completa com GOG, para o Produção Cultural no Brasil

Genival Oliveira Gonçalves foi alfabetizado aos cinco anos de idade pela mãe, professora, que o iniciara nas crônicas de Cecília Meirelles. Era um fenômeno em concursos de ditado e sabia de cor as capitais do mundo. Respirava cultura muito antes de conhecer o significado do termo. Não sabia que aquilo de que mais gostava – o hip hop – era também uma “cultura”.

É desta cultura que Genival – apelidado GOG – é porta-voz dos mais notórios. GOG faz rap há muito. Nasceu no entorno de Brasília e lá continua a fazer sua arte. Para o rapper, o Distrito Federal está na origem do próprio movimento junto com São Paulo. O futuro, aponta, é o hip hop deixar de ser gueto. “O mundo tem que ser o gueto.”

Nos anos 90, GOG abriu a própria gravadora, cansado do alheamento da indústria cultural ao hip hop. “Ninguém queria gravar GOG, Câmbio Negro, DJ Jamaika”. Hoje, disponibiliza sua obra para download gratuito – ou com o consumidor pagando o que quiser. Alguns chegam a imprimir um boleto e pagam R$ 1 por música. GOG fica satisfeitíssimo. “A pessoa que baixa minha música não compra o CD, mas chega nos amigos e diz: ‘Irmão, você já ouviu GOG?’ ”

Como você começou a trabalhar com cultura e produção?
A culpada disso tudo foi dona Sebastiana, minha mãe. Ela é professora, lecionou por 30 anos. Mesmo nascendo na periferia de Brasília, sendo fruto dessa afro-diáspora, passando pelo Nordeste, esse ponto da educação foi fundamental. Minha mãe, mesmo com dificuldade, me alfabetizou aos cinco anos com livros de Cecília Meirelles, com crônicas dela. Meu pai reforçou isso. Ainda menino, eu sabia as capitais de todo o mundo e ele me levava à feira livre para fazer apresentação. Também tinham as competições de ditados. Meu pai me colocava com meninos de 12, 13, 14 anos, para escrevermos: “Necessário”, “necessidade”, palavras mais difíceis com dois “s”, com “ç”. Isso estruturou a minha caminhada. E mesmo estudando em escola pública, aos 17 anos, ingressei na faculdade de ciências econômicas. Só que o meu habitat natural, a periferia, me fazia ser de uma geração James Brown. A gente costuma dizer que são duas gerações musicais: Beatles e James Brown. Eu pertenço à esta última. Meus primos usavam saltos plataforma, cabelão black, ouviam Cassiano, Tim Maia, Hyldon, mas também Paulo Sérgio e Evaldo Braga. Tudo já estava ali colocado, mas eu ainda não conseguia perceber que já era cultura. Os anos 70 foram uma das épocas mais frutíferas da cultura e da música nacional. Aos 12 anos, comecei a dançar. Passei pelo soul, pelo funk, pelo break no início dos anos 80. Só depois que a gente descobriu que o break era um dos elementos de um movimento chamado hip hop. Eu vivia a cultura, mas não sabia que era.

A palavra “cultura” passou a fazer parte do meu dia-a-dia. Essa palavra era como se fosse uma entidade, uma coisa institucionalizada, engessada. Aos poucos, descobri que o hip hop era uma cultura, que abrangia outros elementos: o break, o DJ, o grafite e o MC, que é o rapper, o cantor de rap. A etimologia de “rap” vem das palavras “ritmo e poesia”. Isso quer dizer que ritmo e poesia estão ali brigando, lado-a-lado. O rap, principalmente o dos anos 80, trouxe o cunho social, político, a verborragia. Para escrever, você tem que ter argumento e toda uma estrutura para escrever e montar – assunto, delimitação do assunto, desenvolvimento e um final. Eu trouxe isso para minha música, é um conhecimento praticamente científico. A ciência nasce da observação, assim como a música. É nesse ponto que eu provoco, falo do termo da propriedade intelectual da música. Sou a favor da flexibilização dos direitos autorais. É claro que é uma colcha de vários retalhos, mas, no caso do hip hop, da minha música, percebo que eu não teria nada escrito se não fosse a observação do que está fora. A partir do momento que está fora, será que era meu? A quem pertencia? De repente, um olhar aqui me inspira a escrever uma música, fazer um texto, e eu vou vender muito com isso. E aí? A discussão da propriedade intelectual, principalmente da música, precisa ter essa percepção.

Que existe diálogo entre as obras e que o direito pressupõe troca também?
A discussão do direito autoral precisa ser um diálogo maduro. Não pode ser permeado apenas de uma visão, não pode ser só a visão do empresário, porque ele, a princípio, não é autor. Ele gerencia, trabalha e assessora o autor. Essa parceria tinha tudo para dar certo se fosse mais planificada, se os contratos não fossem tão exigentes. Aliás, acho que essa parceria entre empresário e autor dá certo, ela tem longevidade se as duas partes estiverem abertas. Inclusive para as novas tecnologias, abertas a perceberem essa mobilidade, do espaço humano, de tudo que acontece no planeta.

Você teve uma gravadora, certo? Você esteve nos dois lados do balcão: do empresário e do artista. Como você pensa essa relação?
A Só Balanço existe ainda. Lancei vários artistas de hip hop pela Só Balanço. No hip hop e na rua, mais do que contrato, o que vale é a palavra. Compromisso é a palavra. A gente faz sempre uma conversa bem feita para firmar os pontos principais. Só está na Só Balanço enquanto estiver satisfeito. Não tem multa contratual: se você quiser embora, você vai amanhã ou agora. Mas você vai ter o respeito. Tento desconstruir a relação do patrão e do empregado. Lá dentro, o artista contratado é responsável pela gravadora, pelo bom nome, pelo zelo, tem que estar tranquilo, satisfeito. Se ele precisar de alguma coisa que a gravadora não possa dar naquele momento, a gente explica, conversa, dialoga. E como surgiu a Só Balanço? Ninguém queria gravar a gente, ninguém queria gravar o GOG, o Câmbio Negro, DJ Jamaika, no início do hip hop. Só passaram a querer gravar depois que a indústria fonográfica descobriu o hip hop, quando o mundo todo começou a cantar, contar e cantar. Mas as periferias de Brasília, São Paulo, as brasileiras, todas já estavam com essa efervescência. Faltou percepção nas gravadoras. Uma coisa que toda gravadora tem que ter são os seus olheiros. E o que acontece? Os olhos das gravadoras estavam muito voltados, naquele momento, para algo raso. Eles não atingiam a profundidade do oceano cultural. O hip hop estava mais embaixo. Porque enquanto a indústria cultural estava falando que Brasília era a capital do rock, o hip hop nas periferias já estava mais forte e a gente já levava até mais gente do que as bandas de rock levavam ao Plano Piloto.

O que é o hip hop no Brasil?
É uma boa nova. As periferias jamais serão as mesmas depois da chegada do movimento hip hop. É, principalmente, uma didática da autoestima. Pelo atual censo demográfico, 51% da nossa população se declara negra. Temos uma parcela hegemônica da população. E onde estão os negros? Se você fizer o recorte social, temos uma parcela ainda maior de pessoas que moram nas periferias. E faltava um dialeto para a periferia, faltava colocar o dia-a-dia da periferia em prática. Eu logo percebi que periferia é periferia em qualquer lugar. Para todo grande centro, tem uma periferia grande também trabalhando, é uma lógica capitalista. Descobri isso, exatamente, nas aulas dos cursos de economia. O capitalismo vive disso. Só que a gente tem que saber que o capitalismo é o gigante com pés de barro. Isso está no rap: não adianta você reclamar de tal empresa, de tal postura do sistema, se você patrocina o sistema. Não adianta pedir democratização dos meios de comunicação. Certas emissoras não trabalham a questão do negro, a questão das cotas, a questão da saúde da população negra.

Conta um pouco da história do movimento no Brasil…
Um dos grandes mitos que se tem é que o movimento hip hop brasileiro nasceu só em São Paulo, que é uma inverdade. Na realidade, ele pipocou em vários estados. A prova é Brasília. Começamos um movimento forte em Brasília a partir de 1981. Em 1989 e 1990 foi a primeira vez que Thaíde e DJ Hum foram à Brasília. Nós já tínhamos discos gravados, já tínhamos o movimento, com os elementos interagindo, e foi uma surpresa quando descobrimos que existia hip hop em São Paulo. E a maioria das literaturas que contam a história do movimento tem essa versão paulista. Agora, é claro que São Paulo é o pulmão do hip hop. Mas Brasília é um pouco do coração do hip hop, o cérebro… Em Brasília e entorno, tivemos uma escola importante, a primeira geração. Temos produtores de primeiro escalão, como DJ Raffa – filho do maestro Cláudio Santoro, um dos maiores maestros que o Brasil já viu –, e o DJ Leandronic também. Na técnica do hip hop, nós trabalhamos em samplers, ou seja: você pega uma música, edita e trabalha. Se hoje eu pegar um Roberto Carlos, por exemplo, para “samplear” da forma que a gente faz, você não vai nem perceber que é o Roberto. É isso a que eu me referia sobre os direitos autorais da música. A música não pode ser uma propriedade nesse ponto, porque a música tem que pairar. Ainda mais quando a gente fala em relação à musica e ao hip hop no Brasil. Isso passa por um cunho cultural e social, está salvando vidas. A pessoa pergunta: “GOG, o hip hop é religião?”. “Não”, eu respondo. Mas ele salva no momento que dá oportunidade. Então, política pública para cultura é importante, porque dá oportunidade, pode salvar. Como membro do Conselho Nacional de Política Cultural, percebo a força da sociedade civil organizada e percebo que o Estado não pode ocupar todo o espaço. Alguns espaços ele tem que ocupar, tem que fazer o seu papel, mas não dá para deixar o Estado como dono da cultura, gerenciando ela. Percebo que essa é uma visão do Ministério da Cultura hoje.

Há diferença de vozes entre o hip hop paulista, o carioca, de Pernambuco ou de Brasília? Qual a identidade de cada lugar e onde isso se mistura?
O hip hop passou por várias fases. Teve a do movimento negro, tiveram outras, todos ajudaram nessa estruturação do hip hop. Vários grupos surgiram em Guarulhos (SP), o Racionais MC’s teve muita influência. Quando o hip hop chega a mim, Genival Oliveira Gonçalves – GOG –, e juntamente com Thaíde, por exemplo, já víamos umas falas políticas, como a necessidade da educação. Abria-se um leque de caminhadas e de ações para que o hip hop trabalhasse. Isso acabou definindo as regiões. Em São Paulo, o Racionais teve essa amplitude toda e influenciou muito o Brasil. O Racionais contribuiu para a postura negra, a autovalorização. Mas, na questão da estrutura política, o hip hop não pode ser só o gueto. E para chegar além do gueto, temos que perceber quais são aqueles atores, como devemos conversar. Isso é uma proposta que o hip hop veio permeando ao que foi apresentado pelo Racionais. Dá uma compostura maior ao movimento. Em São Paulo, tem o Facção Central, que é outro estilo, um estilo que o pessoal fala que é pesado, alguns chamam de gangsta. E também vem a geração nova, que depois de ouvir Racionais, ouvir GOG, fala: “Olha, nós queremos contar também que na periferia tem festa, que a gente vai para o centro, onde estão as meninas que a gente quer namorar”. Eu falo: “Cuidado! Porque nessa caminhada, a gente tem que saber que o hip hop brasileiro não pode deixar a concentração social. Não dá para você colocar a mulher simplesmente como objeto de desejo, de prazer, porque é uma música de festa”. A evolução do estilo, eu falo para os parceiros, tem que ter essa responsabilidade. Tem gente te ouvindo, que é influenciada por você. A linguagem freestyle, por exemplo, é o improviso e muitas pessoas falam: “Legal, uma nova vertente”. Mas eu vejo no hip hop muito côco, muita embolada. Na realidade, estamos reencontrando muitos caminhos. Embora o movimento tenha várias feições, ele precisa se ouvir mais, se olhar mais.

Há diferença entre o hip hop brasileiro e o norte-americano?
A diferença é econômica e política. No hip hop norte-americano, a gente percebe a ação grande da indústria fonográfica e da comercialização. Grupos como Public Enemy e como N.W.A. deixaram de ter uma importância midiática. Durante um tempo, eles tiveram, mas ficaram um pouco escondidos, parados, faltou apoio de divulgação. É uma caminhada que eu não quero para o hip hop brasileiro: essa exposição, virar arte pela arte. O saudoso Preto Ghoez, falecido, um dos grandes integrantes do movimento, falava: “Arte pela arte nunca, não”. É claro que o hip hop americano é referência, mas nós temos que nos abrasileirar. O samba e o forró foram assim, foram evoluindo. A bossa nova teve influência do jazz também e são sons brasileiros. É aí que eu fico meio impaciente com o maestro Júlio Medaglia, que critica o hip hop e não dá tempo para a música amadurecer, crescer. A música e cultura estão ligadas, porque ambas permeiam todo conhecimento, respeito e amor pela profissão e pela didática. Venho desse campo da educação porque sou filho de uma professora. Minha mãe falava: “Genival, quem ama, cuida”. Muitas vezes, algumas pessoas dizem assim de mim: “Poxa, mas o GOG falou isso sobre o hip hop”. É isso mesmo, excesso de amor pelo hip hop, o cuidado que eu tenho pelo movimento que eu vi crescer. No caso do hip hop de Brasília, foram duas, três, quatro pessoas que se encontraram, de gente que gostava de break. Um ia na cidade-satélite do outro. Depois, cresce para uns 10, 15, 20. Daqui a pouco, 30. Aí o primeiro baile, o primeiro som. Hoje, Brasília está tomada. É o que eu falei e reforço: Brasília há muito tempo não é a capital do rock. Respeitamos Legião Urbana, Capital Inicial, Raimundos… são todos meus amigos pessoais, parceiros do dia-a-dia. Mas a gente tem que contar que, fora do avião, o caldeirão é bem mais criativo e tem muita feijoada cultural gostosa lá. As pessoas precisam conhecer isso.

E as novas mídias como forma de difusão, de gravação, de profissionalização e de remuneração? Quais são os riscos e benefícios da cultura digital?
Em 2007, lancei o DVD Cartão Postal Bomba!. A partir daí, liberei todas as minhas obras. Completo agora dez discos, dezenas de participações e todas as minhas obras foram liberadas para download gratuito. As pessoas contribuem com o quanto acham que merece o trabalho. Se a gente não coloca à prova das pessoas, a gente nunca vai saber realmente o que a gente está fazendo. É tipo um modem: você manda um sinal de cá, tem que ter um sinal de lá. A nova tecnologia dá possibilidade de você ter esse sinal, daí o artista precisa de sensibilidade para perceber. As minhas músicas tiveram mais de 400 mil downloads, com uma média de 13% de downloads pagos. Tivemos contribuição de R$ 1,00 por meio do boleto – a pessoa foi lá, imprimiu o boleto, pegou a fila de banco e pagou R$ 1,00.

E pagou R$ 1,60 para o banco emitir o boleto, não é?
É. O banco ganha mais. Tem pessoas que pegam, baixam uma música e escrevem para mim por e-mail: “GOG, estou ouvindo as suas músicas, cara. Adorei. Eu estou meio de consciência pesada. Não fui ao banco ainda, mas vou, irmão. Tendo tempo, eu vou lá”. Já tem outros que falam: “GOG, estou apertado esse mês”. Então, quer dizer, eu passei a ser um consultor também, estou sabendo coisas demais (risos). E você vê essa interação, esse diálogo, o tanto que é importante. O artista que trabalha com o povo, que trabalha com a diversidade cultural, não pode estar distante do público. Tem que saber disso, ter esse detector, essa sensibilidade. Mas e a mídia física, o CD e o DVD? As pessoas continuam comprando. Por quê? Dentro do meu público, existem várias tendências: pessoas que vão baixar a minha música, que não vão fazer a contribuição, não vão comprar o CD, mas que vão chegar em uma roda de amigos e falar: “Meu irmão, você já ouviu GOG, velho?”

Vão e pagam por um show…
Isso. Um fala: “Caramba! Você já ouviu GOG?”. O cara: “Não”. Veja lá então no www.gograpnacional.com.br. O cara vai e baixa, vai para o show, divulga para outro. Isso é um novo mercado. Será que eu estou perdendo ao liberar a minha obra? Lenine fala assim: “O artista independente é o mais dependente que tem, porque ele precisa das relações, precisa conversar com amigo, precisa correr. Ele conhece o parceiro que faz a capa, conhece a menina que é fotógrafa, tem que dialogar com o pessoal que vai fazer o site. Percebi realmente que a independência é utopia. Ninguém é independente. Antes de qualquer coisa, temos que observar e analisar se isso vai dar certo aqui. Geralmente, quando essas tecnologias chegam aos nossos olhos, é porque elas praticamente já estão para ser implantadas. O artista, a gravadora, o produtor musical e o produtor fonográfico vão ter que se adaptar, perceber essa constante mutação do mercado. Se trabalharem bem, vão trazer geração de emprego e de renda. Agora, o que nós não podemos é deixar que, mais uma vez, a nova tecnologia seja privilégio de poucos, que poucos ganhem com isso e gere uma ditadura musical. A Lei Azeredo, por exemplo, é o AI-5 digital: criminalização do download, abertura de e-mails. Quem realmente ganha com isso?

Vamos para o lado prático disso: quanto é o investimento para se fazer um disco de hip hop, o investimento de estúdio?
Tenho parcerias. Tem pessoas hoje que querem trabalhar comigo. Então, eu tenho a minha banda, a MPB Black, uma banda maravilhosa com baixista, tecladista, etc. Nossa essência é looping. Muitas pessoas pensam que a evolução do hip hop é a banda, mas a evolução é o toca-discos, porque foi ele que popularizou o movimento. Eu mesmo não estaria conversando sobre hip hop aqui, não seria cantor de rap, se eu dependesse de uma banda com baixo, bateria, guitarra. Então, muitas vezes parece que a gente está reinventando algumas coisas. Não está. O nosso custo não é tão grande, embora a qualidade da música seja comparável às grandes produções. Nós temos hoje, por exemplo, os home-studios, os caseiros. Todo mundo tem programas como o Sound Forge, recorta alguma coisa, já tem uma ideia. Isso tira um custo de estúdio muito grande. Não digo que a música é uma coisa fácil, que a gente pode fazer de qualquer forma. Mas hoje é possível construir cabines, com isolamento acústico, um bom microfone, tratar o ambiente minimamente, ter os plugins de efeitos para a edição.

Mas daquela época em que você abriu a Só Balanço para hoje, há diferença de custos, de possibilidades de fazer um disco?
Em uma produção hoje, falando do meio físico pronto, mas sem a prensagem dos discos, o custo varia de R$ 5 mil a R$ 8 mil…

Dá para você sobreviver desse dinheiro, com esse novo formato da música?
Sim. As minhas letras, como Brasil com “P” e A Ponte, gravada com o Lenine, são utilizadas em livros didáticos, em universidades, em provas de vestibulares. Tudo isso gera uma renda que, quando você soma, é tranquilo. Toda hora tem uma palestra referente a um tema que você falou em uma letra. Então, cabe ao artista saber empregar isso aí, perceber isso na matemática dos custos e falar: “Poxa, tudo isso realmente vem da minha criação musical”. Não se perde com essa abertura, não se perde ao liberar os meus textos. O BNegão me contou que disponibilizou as músicas dele logo no início, quando quase ninguém queria disponibilizar. Na primeira viagem dele à Europa, na França, quando chegou a hora do show, o quarteirão dando voltas, o BNegão perguntou: “Quem vai cantar comigo aí? Não estou entendendo esse monte de gente”. Só ele ia cantar. E o povo cantou as músicas de ponta a ponta, e não havia um disco dele na Europa. Lindo, não é? Palmas para ele que conseguiu. É uma vitória muito grande para o artista, para a indústria cultural também, no sentido de que a gente desmistifica. Tem um empresário da música que lançou vários artistas muito cabeças – não vou citar o nome dele porque não vale à pena – e que diz que ambos são estúpidos: quem libera a música e quem baixa. Mas é uma pessoa que vive do dinheiro do bolso, que ele tem, trabalhando com a cultura que os outros têm. Eu ganho o meu dinheiro suado, não dá para brincar. Música não é bolsa de valores, que você pensa só no índice: “Hoje bateu lá em cima. Coloquei R$ 1 mil ontem, outros R$ 5 mil, R$ 1 milhão, R$ 3 milhões”. Música tem que ter investimento. É mais risco.

O hip hop tem uma ligação forte com o tema da periferia e da violência. E hoje também vários artistas do movimento estão presos. Fale dessa realidade…
Temos vários parceiros que estão privados da liberdade, mas a gente fala que a maior detenção é estar aqui fora, essa detenção sem muro. A placa daquele Audi ali, será que não é uma agressão? “Compre esse Audi novo por apenas R$ 99.900, mais prestações”. Todo mundo passa a te ver. Você quer um carro? Quer. Eu também quero. A menina ali também quer. Como é que faz? Essa matemática toda é sádica. Mas a pessoa sabe que vai lucrar com aquela placa ali, sabe que, com mortos e feridos, pode sobrar alguma coisa no bolso dele. Temos parceiros que estão privados da liberdade. Dois são notórios, o Gato Preto, do grupo A Família, talvez um dos maiores letristas do Brasil, que se encontra privado há quatro anos. E o Dexter, que eu considero o Mandela brasileiro. O Dexter completa 12 anos de reclusão, progrediu agora para o regime semiaberto. Dexter casou recentemente e eu estive presente. É uma pessoa maravilhosa. O título do disco mais recente dele retrata muito isso: Exilado Sim, Preso Não. Quando a gente fala em sistema prisional, sistema carcerário, existe muito investimento, principalmente no estado de São Paulo. Os governos do PSDB e do DEM acreditam em cadeia para todo o lado. Acredito em um governo com o social, com a música. Vale até patrocinar algumas coisas, que as pessoas falam que é esmola, porque elas têm na mesa todo dia o arroz e o feijão. Mas quem não tem sabe: não existe educação se não tiver alguém alimentado para se concentrar para aprender. Então, antes da educação, tem que ter a alimentação. É fisiológico. E o Dexter é uma pessoa que pode ser instrumento de estudo, porque lança disco todo ano, mesmo privado da sua liberdade. Fiz uma participação na música Salve-se Quem Puder. Fizemos no Presídio São Vicente, gravei dentro da cadeia, dentro de uma cela. Como eu gosto muito de escrever na emoção, acredito na poesia, na emoção da poesia, eu escrevi lá.

Como é a letra?
“Ei, aqui se realiza um sonho antigo / uma aliança entre fãs que hoje são amigos / eu sei, percebo é de Deus que vem, provém a chance / provei e não senti o gosto amargo eu vou avante, adiante / abraçar, representar, tô aqui / fruto nordestino, maduro, do sul do Piauí, não caí,/ vou te falar, relatar, o que vi / deselegante foi a cena, mas eu não sorri / sou latino, peregrino, desprovido de dinheiro, grilado uma pá / com o proliferar do puteiro / que se dá de várias formas não só na cama, sente o drama / lamentável a cena, o algoz e a primeira dama / não sei se vou pro céu, sou fiel, sou Fidel, sou cruel / mas não tenho o coração de papel / pisou na bola, olha minha sola, o calcanhar de Aquiles / mas aí GOG, se o Bin Laden pega, hummm / fica ruim pro Alexandre Pires / falhou, sujou, a bandeira brasileira / envergonhando a América Latina inteira / inocência, oportunismo, ignorância da história / chorou nos braços de quem tem fama sem glória,Bush / é preciso ter cérebro, coordenação motora / pra não cair na armação da maldita gravadora / pra não financiar via Coca-Cola a metralhadora / e nem desonrar, África, nossa genitora”. Isso foi lindo. Eu tinha que contar, cantar, porque foi emoção, foi uma coisa que foi escrito em 15 minutos, porque o diretor já estava querendo encerrar as atividades para o bom andamento do presídio. Mas, em 15 minutos, a periferia lucrou, e canta isso hoje nos quatro cantos do Brasil. Defendo o Estado brasileiro, embora nós tenhamos, entre aspas, um governo popular. Nós procuramos os gestores do Pronasci, no Ministério da Justiça, para colocar: “O Dexter é um parceiro que está recuperado. Vamos tirar ele disso aí, e vamos colocar ele como exemplo, como uma pessoa que possa participar do Pronasci, dizendo que tem recuperação”. O Estado não quis que o Dexter falasse, o Conte Lopes não quis que o Dexter falasse. Mas eu quero dizer que o Conte Lopes, o deputado federal, tem mais de 40 homicídios em serviço e é condecorado com medalha pelo Estado. Só que o Dexter já teve os seus erros.

E qual é o próximo passo?
O próximo passo é continuar em pé, se equilibrar. Porque hip hop não pode ser mais o gueto. O mundo tem que ser o gueto. Nós temos uma tarefa muito grande de popularizar nossa música. Nós não queremos o título de MPB. A música popular brasileira não pode se restringir só a Lenine, Maria Rita, João Gilberto, Tropicália, Caetano Veloso, Gilberto Gil. Não. Amado Batista é música brasileira, É o Tchan é música brasileira, Fantasmão, GOG, Racionais MC’s, MV Bill. Tudo isso é música popular brasileira. Temos que discutir muita coisa, até o nome da fachada que a gente tem. Vamos ter que dar uma geral aí nessa casa chamada música brasileira. E por mais que nós tenhamos governos propensos a nos ajudar nisso, nós não podemos esquecer que essa luta é nossa, porque governos passam, mas o povo e a cultura ficam.

Entrevista realizada por Fabio Maleronka Ferron e Sergio Cohn
no dia 14 de maio de 2010, em São Paulo.

Assista a essa entrevista em vídeo

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