Entrevista completa de Aroldo Pedrosa, para o Produção Cultural no Brasil

A cultura do Amapá é apresentada por Aroldo Pedrosa com diversidade imensa, guardada por ribeirinhos, quilombolas, poetas e músicos. Produtor cultural, poeta, compositor e escritor, Pedrosa nasceu em 1958. Embalado pelas canções de Caetano Veloso e de Gilberto Gil, considera-se um herdeiro da tropicália. “Sinto a presença dessa intrépida trupe”, diz a respeito de sua própria obra.

Pedrosa critica o crescimento do tecnobrega e a negação da música de vangarda da região. Conta sobre a tradição cultural de raiz do Amapá: o batuque, o marabaixo, o boi-bumbá, o samba. “Temos uma cultura muito própria.”

Aroldo Pedrosa foi assessor de comunicação da prefeitura de Macapá entre 1995 e 2002, e do governo do Amapá na gestão de João Capiberibe. Trabalhou como agente cultural do projeto Navegar Amazônico, que desenvolve atividades de identificação, divulgação e documentação da cultura ribeirinha da Amazônia. Acabou por se tornar um vetor dos Pontos de Cultura no estado.

Você se considera filho do tropicalismo. Como começou a atuar na área cultural?
Acho que desde menino. Sou amapaense. Nasci no meio da floresta, mas sou filho de nordestinos. Meu pai era paraibano e minha mãe, cearense de Juazeiro do Norte. Era para meu pai ter ido para Salvador e mudou de caminho, vindo para a Amazônia. Fui o primeiro filho nascido no Amapá. Trabalhei em uma loja de discos em Macapá e essa loja de discos virou um ponto de encontro. Eu era garoto, tinha 12 anos, e nessa época, o tropicalismo tinha surgido. Eu me lembro dos discos da tropicália, o Transa, do Caetano Veloso [1972, Polygram], que estava exilado. Aqueles discos faziam uma verdadeira revolução na minha cabeça. Fui embalado por estas canções.

Um de seus poemas tem o título de Uma Odisséia nos Trópicos e cita o Jorge Mautner.
É uma verdadeira viagem. É a coisa mais bonita que já escrevi. Considero o meu Estatutos do Homem [poema do amazonense Thiago de Mello], vamos dizer assim. Macapá é uma cidade por onde passa a linha do Equador, e quando Caetano fez Um Índio, tem um verso em que ele diz que o índio vai descer em uma floresta, em um ponto equidistante entre o Atlântico e o Pacífico. É uma grande coincidência com um poema que escrevi muito tempo atrás, em 1978, antes do disco Bicho, do Caetano. Eu estudava em Belém e, na sala de aula, a professora deu o tema: “Quem sou eu?”. Era para escrever em prosa, mas veio esse poema. “Pedrosa, graça que na pia batismal me foi imposta. Pedra mais rosa, flor tropical, flor do bem, pedra do mal. Nasci em um ponto equidistante entre o trópico de Capricórnio e o trópico de Câncer – Macapá/Amapá –, sob um sol de quase 40 graus…”. Na época, a TV Globo fez uma minissérie chamada Ciranda Cirandinha, que foi muito perseguida pela ditadura. Aquele programa também fez a minha cabeça e teve a ver com esse poema. As pessoas que faziam o programa eram incríveis. Os atores eram Fábio Junior, Denise Bandeira, Lucélia Santos e Jorge Fernando. Muito depois é que eu escrevi Uma Odisséia nos Trópicos…

Lembra a poesia tropicalista, a poesia marginal …
É uma coisa que eu sinto no meu trabalho. O próprio Jorge Mautner ouviu Uma Odisséia nos Trópicos. Tem um verso que digo assim: “Chico Science, ao som dos maracatus, segura no céu o porta-estandarte. / Jorge Mautner, de guarda-chuva, lendo Nietzsche, dança o zouk-love. / Chega de saudade! Você me dá sorte!”. Sou compositor e tenho canções em que sinto que há um diálogo com o tropicalismo. Sinto a presença dessa intrépida trupe da tropicália.

Qual foi seu primeiro trabalho de produção cultural?
Meu pai era garimpeiro e, do Amapá, ele se mudou para o oeste do Pará, um lugar chamado Itaituba, uma cidade violentíssima que era o centro dos garimpos. E eu morei em garimpo. A gente lia Hamlet, de Shakespeare, para os garimpeiros à luz de lamparina. Lá eu comecei a me movimentar na música. Era estudante e lançamos na nossa escola um jornalzinho chamado A Rosa. Eu e meu irmão fomos expulsos da escola porque o jornal questionava. Eles não nos deixavam usar cabelo grande e a gente já tinha vindo de Macapá com essa história da tropicália. Era o ginásio em uma escola de irmãs. Nos artigos de A Rosa, a gente questionava o que achava extremamente careta. O jornal foi o meu primeiro trabalho junto a alguns poemas que publiquei. Fiz eventos em Itaituba. Foram o Baile da Romaria e o Baile da Tropicália. Aconteceram durante cinco anos. O Baile da Romaria, que acontecia no dia da padroeira Nossa Senhora de Santana. Levei o Renato Teixeira de São Paulo para Itaituba por causa da música Romaria. E o Baile da Tropicália, que acontecia em setembro, tinha esse nome por causa da minha paixão pelo movimento.

Fale um pouco sobre o panorama cultural do Amapá.
O Amapá é um estado novo. A cultura é aquela cultura de raiz, que existe desde o começo do mundo (risos). Falo isso porque viajei por aqueles rios. Aqueles rios são minhas ruas. “Esse rio é minha rua” é um verso do falecido poeta paraense Rui Barata. Trabalhei como assessor de comunicação no governo Capiberibe, que conseguiu criar uma auto-estima no povo do Amapá. As pessoas cujos pais vendiam açaí nas chamadas amassadeiras tinham vergonha de dizer isso. No Iratapurú, os coletores de produtos da floresta, de castanha, eram semi-escravos. Eles viraram empresários depois, foram instaladas fábricas lá. A França fez parceria com o Amapá para extrair o azeite da castanha e houve uma movimentação cultural. O Amapá é um estado que tem tradição do samba. O próprio Joãozinho Trinta, quando foi lá, ficou impressionado. Foi construído um sambódromo e é impressionante como o carnaval de lá se multiplicou. Mais de 70% da população é negra. Nós temos o marabaixo  [dança cantada dos caboclos do Norte] e o batuque, que são ritmos tradicionais. Temos também a Festa de São Tiago, em Mazagão, em que se conta a história da cidade que foi transferida da África para o Amapá, na época da guerra entre mouros e cristãos. Os portugueses estavam perdendo terreno por lá, então transferiram uma cidade inteira para o Amapá. É Mazagão. Isso tem quase 300 anos. Juntamente com as famílias vieram os negros africanos que, certamente, trouxeram esses ritmos. É uma música tipicamente amapaense, o marabaixo. O Capiberibe deu ênfase a isso.

Existe uma identidade dos povos da floresta na região Norte?
Existe. Temos uma cultura muito própria. Elas se misturam um pouco por causa da Amazônia. O marabaixo, por exemplo, se parece com o carimbó do Pará. O batuque do Amapá se parece com o tambor de crioula do Maranhão. São coisas que vieram de Angola, do Congo, com os povos que se espalharam por ali. O Amapá tem quilombos, como as comunidades de Curiaú. Macapá é banhada pelo rio Amazonas, ali houve a construção de um forte que nem foi utilizado. E os construtores foram escravos e índios. Quando esses escravos fugiam, se instalavam em quilombos. O Gilberto Gil, quando foi a Macapá, visitou o quilombo em Curiaú.

O projeto Navegar Amazônico tem uma peculiaridade: o encontro de artistas de diversas regiões brasileiras com as manifestações locais do Amapá. Como surgiu a idéia?
O projeto Navegar Amazônico nasceu no governo Capiberibe. Era um barco que tinha um laboratório multimídia com dez computadores. O Beto Lacerda era uma pessoa de lá, nascida lá, que já possuía o conhecimento da informática. Nós levávamos essa tecnologia para os lugares mais distantes de Macapá. Era chegar e abrir o barco para a comunidade. Com aquelas máquinas, eles ficavam impressionados, parecia uma espaçonave. A gente procurava o que havia em cada lugar e identificamos manifestações culturais incríveis. Em Abaetetuba, em uma área do meio da floresta, o barco quase não conseguiu entrar, porque o rio era estreito. Ali existe uma comunidade quilombola remanescente de escravos, que é Tauerá-Açu, e vimos uma apresentação de boi bumbá na qual as pessoas se fantasiavam com palhas de palmeiras. Tinha uma figura que me chamou muito a atenção, uma atriz negra que interpretava uma personagem do boi bumbá. Dancei com ela à vontade. O Navegar  Amazônico tinha uma função fantástica de identificar essas comunidades como Pontos de Cultura. Inclusive Taueraçu foi identificada como ponto no programa do Ministério da Cultura.

Esse é um caminho para uma política cultural dessa região? Esse intercâmbio?
É o grande caminho. Até me emociono, porque agora a gente perdeu o Navegar Amazônico.

Outras iniciativas semelhantes podem ser criadas?
A proposta é essa. Meu blog Navegando na Vanguarda [http://navegandonavanguarda.blogspot.com] surgiu por isso, mas eu não tenho um barco. Faço o encontro onde dá para fazer. Mas nunca mais houve nada do Navegar Amazônico no Amapá.

O que é fazer produção cultural na Amazônia?
É apaixonante. A gente se surpreende porque são pessoas leigas, mas a cultura está em todo lugar. A minha preocupação é exatamente nosso isolamento. Porque a Amazônia é muito grande, um continente. Quando o Gilberto Gil esteve lá, eu o entrevistei e disse para ele o seguinte: “Todos os grandes acontecimentos culturais no Brasil foram concentrados no eixo Rio-São Paulo. Na Amazônia, pela distância e pelo isolamento, não tivemos nenhum movimento cultural. A bossa nova nasceu aqui, a tropicália também. Caetano e Gil vieram da Bahia, o Torquato Neto, lá do Piauí, mas a coisa aconteceu entre Rio e São Paulo. Já a Amazônia tem essa paixão pelo chão. Nós somos todos índios. Quando você tira um índio do lugar, ele se acaba, morre, desaparece”. Perguntei para o Gil o que o governo Lula, com essa política de mudanças, faria para quebrar esse isolamento. Como ministro, ele foi buscar os exemplos que nós temos conhecimento. Thiago de Melo, no Amazonas, João Donato, no Acre, e uma porção de grandes artistas no Pará. Mas nada disso aconteceu para identificar a nossa cultura amazônica. Temos essa grande barreira. Pela nossa vocação somos povos da floresta e é difícil a gente sair dali. A idéia dos Pontos de Cultura é uma revolução, só que é um processo lento.

Mas você avalia que há um isolamento na geração e também no consumo de cultura? Há como olhar para fora da Amazônia e ao mesmo tempo fomentar a cultura própria da região?
Existe uma cultura própria. A música do Amapá é muito forte, por exemplo. Nós temos grandes compositores atuais que certamente não chegam aqui. Eu mesmo, particularmente, tenho travado algumas brigas lá com os tradicionais. Até porque a minha escola é a tropicália, que absorveu Beatles, maracatu, tudo. O grande barato é essa troca, que era a proposta do Navegar Amazônico.

Como era o dia dentro do barco do Navegar Amazônico?
Atravessar rios agitados, estar no meio da floresta ouvindo canto de pássaros, vendo peixes e vendo as coisas mais incríveis da origem do mundo. Saindo de Macapá, para chegar em Afuá, que é uma cidadezinha paraense do arquipélago marajoara, são quatro horas. O nosso barco era grande, mas mesmo assim muito agitado. Jorge Bodanzki , Márcia Bodanzki e Jorge Mautner sentiram. Acho o Mautner mais caboclo do que muita gente que há lá, porque é acostumado a isso. É guerreiro e guerrilheiro. Mas outras pessoas ficavam muito assustadas e achavam as viagens perigosas. Eu estava tão acostumado que para mim era uma grande aventura. O encontro com essas figuras, com essas comunidades, é impressionante, emocionante. Chegava um barco, um trapichezinho, e as pessoas todas iam para a beira do cais. Tem um documentário em que Jorge Bodanzki convida duas nativas de uma localidade e entrega uma câmera para elas: “Gostaríamos que vocês apresentassem o lugar para a gente”. Por trás, a nossa equipe, fazendo essa cobertura. E elas com direito de dizer o que quisessem. Elas diziam com a maior naturalidade: “Derrubaram árvore. A gente não gosta do que estão fazendo”. Eram as madeireiras por lá. E para o mundo saber disso, só com um projeto desse. Criei um quadro dentro do site do Navegar Amazônico que eu chamava de Diário de Bordo. Eu dizia que era o Pero Vaz de Caminha do Navegar Amazônico. Fomos em outros lugares, como no Bailique, onde o Amazonas se encontra com o mar e nasce o fenômeno da pororoca, que é espetacular. Bailique também é um arquipélago. Lá foi construída uma escola-bosque, com ensino ambiental. É natural as pessoas saírem da área rural para as cidades, um problema que acontece no mundo todo. A construção dessa escola teve um efeito contrário. As pessoas que já estavam em Macapá, estudando e provocando problemas sociais – porque sair da floresta para ir para a cidade é uma encrenca –, começaram a retornar. A escola dava condição para isso.

Os artistas continuam indo para lá ou o isolamento aumentou novamente? Está havendo uma cena que permita que shows e filmes cheguem por lá?
Está havendo sim, embora tenha mudado muito. O governo anterior foi muito mais presente. Essa troca era incrível. Naná Vasconcelos, um gênio da percussão pernambucana, foi lá. Ele se impressionava com a percussão de caixas de marabaixo e tambores de batuque. Naná chegava para dar uma oficina e havia troca. Outro projeto também da época foi o Ponte Entre Povos, que publicou três CDs e um livro. A compositora e instrumentista Marlui Miranda foi chamada para coordenar esse projeto, que misturou a música indígena – ela fez várias pesquisas e oficinas – com uma orquestra de câmara de São Paulo e músicos da Escola de Música Valkíria Lima, de Macapá. Por coincidência, o Rudá Duprat, filho do Rogério Duprat, grande arranjador da tropicália, fez os arranjos do projeto. Saiu no Jornal Nacional ele regendo a orquestra no Sesc Pompéia, deitado em uma rede. Era um revezamento da tropicália, do modernismo, do Oswald de Andrade, do Mário de Andrade. A nossa odisséia vem por ai (risos).

Você conseguiu patrocínio para continuar o projeto? Virou o Vanguarda Cultural?
Consegui, mas é uma barra. Começou como jornal e agora é uma revista. Quando Capiberibe terminou o governo, eu fiquei desempregado e criei a revista Vanguarda Cultural. Isso foi em 2003. Nós distribuímos o primeiro número dela por completo. Entrevistamos o Lô Borges, que esteve em Macapá. Lancei em maio de 2003, porém só publiquei 13 edições. Eu me lembro da história do Pif Paf, do Millôr Fernandes, que eu lia, assim como lia O Pasquim. Quem faz o Vanguarda são todos artistas. É escritor, é poeta, é cineasta, que fazem voluntariamente, gratuitamente. Não tem como pagar esse pessoal. E quando eles fazem um trabalho, eu divulgo. Faço a revista com doações, e com o dinheiro de shows que produzo. Virei cantor também, vem dando certo. Faço eventos, como o Tropicália na Linha do Equador, e coloco músicas minhas junto com as músicas da tropicália. Minha mulher é atriz e participa com performances, recitando Torquato Neto.

No Amapá, há dois teatros, três salas de cinema e a universidade. Há poder transformador nesses lugares? A universidade tem sido uma força?
Está mexendo muito com o lugar, mas tenho sido muito crítico com a universidade, por uma preocupação cultural. Fiz o lançamento da revista Vanguarda lá dentro uma vez. E tem também a questão musical. O Amapá tem uma música que é brega e já chegou aqui. Ela é representativa, mas não é de qualidade. E isso está no meio dos estudantes. Tenho essa preocupação com os shows por isso.

O tecnobrega ganhou força no Sudeste, ao mesmo tempo em que o marabaixo não existe aqui. Como fazer o marabaixo ultrapassar fronteiras e incorporar linguagens?
Tem compositor lá que teve essa preocupação de estilizar o marabaixo. Tem um grupo chamado Senzalas com um trabalho interessante de pesquisa. Se você ouvir o Senzalas, vai ver uma diferença, ou uma evolução, da música tradicional para aquela coisa que o Chico Science fez e que a própria tropicália fez. Eles acabaram chegando em alguns lugares, incentivados pelo governo que tinha essa preocupação também. Chegaram a se apresentar na Alemanha. Tem um poeta paraense que foi morar no Amapá, chamado Joãozinho Gomes, que é uma figura fantástica. O Zeca Baleiro gravou agora uma obra do Joãozinho. Só que eu acho que é um trabalho mais aprimorado, não tem um apelo popular. Então se esbarra na chamada música “fácil-de-vender”. As grandes mídias do Brasil se prendem ao produto fácil. Por isso, dentro da universidade, as pessoas estão ouvindo o brega. Eu sei disso e também sei fazer. Agora vou fazer o lado B da tropicália. “B” no sentido de brega. São músicas de Odair José, Fernando Mendes, Peninha. Eu digo: “Vocês acham que isso aqui está muito vanguarda? Então tomem!”. Fiz só um aperitivo e já vi que o negócio vai estourar. Esse
show vai me dar uma garantia melhor para a próxima edição (risos).

E a poesia do Amapá?
A poesia no Amapá existe há tempos, mas começa a pulsar para valer agora. Temos alguns poetas, e que não são só da escrita. A Lulih Rojanski lançou um livro agora, Abilash – conto da Amazônia. É um conto amazônico, mas é um poema. Ela se inspirou naquela criança de três meses que foi encontrada no tsunami, e que várias famílias quiseram adotar mas depois os pais apareceram. E os pais batizaram o filho de Abilache. A poesia do Amapá está muito nas canções. Nós não somos músicos mas encontramos músicos que conseguiram ver melodia nas letras que escrevemos. Eu tenho uma canção que ganhou festival em São Paulo, em Minas Gerais e Goiás. É a Valsa de Ciranda, uma canção que eu fiz para minha filha, que está morando em Londres.

Como é a letra?
“Um anjo de Deus quando dança / A valsa O Danúbio Azul / A ópera de Maria Callas / A poesia de Florbela Espanca / O canto de Bidu Sayão / Tem asas de seda o cisne de Clara / Sapatilhas de pólen a leveza de Ana, Ana… / Voa do poeta a alma insustentável / Do músico, em dissonantes, o coração / Bela quando baila a Lua mágica / Linda quando o Sol delira de emoção / Um sorriso de criança ainda / Entre dentes de marfim da África / E papoulas que se abrem em chamas / Dos lábios suaves e febris da boca / Os olhos – lume nas manhãs de brumas / Da China, corpo raro de moça-porcelana / Cor de canela e aroma de cravo das Índias / O sabor, a delícia, o mel do favo / Cabelos de ventos de Havana… // A graça, toda candura de ninfa / Música de pássaros da Amazônia // Braços de moinhos de Olinda / Cantigas de carro-de-boi / Facho de luz no olhar de quem sonha / Sambas-de-roda, folia, ciranda / Enredo de escolas de samba // Riso de estrelas no céu de Goiânia / Sons dos sinos de Belém // Anjo, sublime de Deus quando dança / E na doce melodia vem / A girar Ciranda, que a vida anima / Encanta a sonoridade da rima // Beijo de colibri / Topaza pella da serra / Flor do Grão-Pará / Pétalas do meu bem querer”. Topaza pella da serra é um beija-flor raro que foi descoberto pelo cientista Augusto Ruschi. O habitat natural dele é a Serra do Navio. Falo do Topaza pella beijando a flor do Grão-Pará porque a minha filha nasceu em Belém. A Flor de Grão-Pará é uma canção do falecido Chico Senna. Uma canção que fez para Belém. Um beijando o outro, uma canção (risos). Mas o meu grande poema é Uma Odisséia nos Trópicos.

Termina com um trecho dele então...
“Acordei de manhãzinha / Ouvindo uma canção dos Beatles. / Não dormia na calçada do Central Park em Nova York. / Não vivia o exílio na fria e cinzenta Londres. / Nem passeava de cruzeiro pelo Porto de Liverpool. / Acordei ouvindo no rádio Sargent Pepper’s, / Longe do horário britânico, em uma rede preguiçosa entre os trópicos. / Sonhava com os anjos dos anos rebeldes: / Jimi Hendrix, Joe Cocker, Bob Dylan, Janis Joplin. / Em meio ao peace and love hippie, um Waiãpi em Woodstock. / Ao acordar com Beatles, pensei: o sonho não acabou. / E me agasalhei de novo sob o cobertor. / Na linha imaginária do equador, / A ninar o curumim Lucy in the sky with diamonds. / É setembro, 23, quando o dia e a noite são iguais. / Caiu o muro, abriu-se a cortina de ferro… / Mas Guevara permanece vivo entre nós. / É proibido proibir calara para sempre os generais / E o espetáculo do Sol com a Terra pode assim ser visto. / Me põe em cada olho uma gota de colírio / Que a hora é de acordar para um outro sonho. / O sonho do Equinócio. / Turistas, cientistas, artistas, alquimistas, curiosos… / Há um monumento na encruzilhada da vereda tropical!”…

Esse poema é seu ideal artístico…
Meu maior sonho é fazer desse poema um livro. Minha idéia é ter o Elifas Andreato como ilustrador. Esse poema é uma viagem, e o Elifas, por ter sido o cara das capas dos grandes discos, ia fazer uma nova tropicália. Com certeza.

Entrevista realizada por Fabio Maleronka Ferron e Sergio Cohn
no dia 17 de abril de 2010, em São Paulo.
Para assistir essa entrevista em vídeo:
https://producaocultural.procomum.org/2010/08/13/aroldo-pedrosa/

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