Entrevista com Ana Toni, para o Produção Cultural no Brasil

Como representante da Fundação Ford – uma das principais instituições de financiamento de entidades e projetos sócio-culturais –, Ana Toni trabalha com políticas de incentivo a quem promove o debate contemporâneo no Brasil, sejam eles movimentos sociais, universidades ou organizações não-governamentais. “O mundo global me fascina: pensar local e agir global, pensar global e agir local.”

Formada em economia, Ana Toni já trabalhou para o Greenpeace International e ActionAid International. Está na Fundação Ford desde 2003. Em quase 50 anos de atuação da fundação no Brasil, gosta de lembrar que a Ford também acompanhou os novos desafios do país. “(Com o fim da ditadura) a fundação começou a expandir os seus horizontes.”

Foi a Fundação Ford quem investiu durante décadas em pesquisas e projetos sobre negros e afrodescendentes. “Trabalhamos com a questão racial no Brasil há mais de 30 anos – e só agora, nos últimos 10 anos, é um grande tema.” Com o mesmo perfil, agora incentivam o protagonismo indígena. Ana Toni ainda é entusiasta da cultura digital e do acesso on-line a dados públicos. Aponta avanços nas políticas federais e sugere caminhos: “A transparência tem que chegar aos níveis municipal e estadual.”

Como surgiu a Fundação Ford e de que maneira ela funciona?
A Fundação Ford nasceu por uma iniciativa do Henry Ford, que deu algumas ações da companhia automobilística Ford para um grupo de pessoas independentes, a fim de que trabalhassem pela paz e pelo bem social nos Estados Unidos e no mundo. Esse grupo vendeu as ações e criou um endowment, isto é, um fundo patrimonial com ações de outras companhias. E esse fundo foi crescendo. No final dos anos 90, começo dos anos 2000, chegou a ter mais de US$ 15 bilhões nesse fundo. Hoje são US$ 10 bilhões. Nossa organização se mantém com uma parte desse lucro. Em média, a fundação gasta de US$ 400 milhões a US$ 500 milhões no mundo inteiro. Temos 13 escritórios: três na América Latina, quatro na África, quatro na Ásia, e, logicamente, os escritórios nos Estados Unidos.

Qual a história da Fundação Ford no Brasil?
A Fundação está no Brasil há quase 50 anos. Entrou no país em 1962, dando alguns apoios, mas abriu escritório próprio em 1964. Logo que a fundação chegou, começou a ditadura militar. Acho importantíssimo o papel que a fundação teve naquela época, de mandar para fora do Brasil pessoas que estavamsendo ameaçadas, principalmente acadêmicos, como o Fernando Henrique Cardoso, o pessoal do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), que migrou para os Estados Unidos, para o Chile ou para a França, com a ajuda da Fundação Ford. E os que ficaram tiveram apoio da fundação na forma de bolsas individuais. Essa foi nossa atuação até o fim dos anos 70. Já no processo de redemocratização, a fundação mudou um pouco o seu papel e começou a oferecer apoio institucional para grupos constituídos com base na sociedade civil. A fundação começou a financiar novas vozes do processo democrático: mulheres, indígenas, afro-brasileiros. Acredito que todos tínhamos um objetivo único, que era o processo da democratização brasileira, a criação de uma nova Constituição. Depois da democracia ter sido estabelecida, a fundação começou a expandir os seus horizontes para os novos desafios do Brasil.

Você trabalhou em outras organizações internacionais, antes de ingressar na Fundação Ford. Como foram essas experiências?
O mundo global me fascina: pensar local e agir global, pensar global e agir local. E sempre tive privilégio de atuar nessa área. Trabalhei para a TV Globo em Londres, depois fui para a ActionAid International, para o Greenpeace Internacional, e agora estou na Ford. A Fundação Ford, apesar de ser uma marca muito mais norte-americana do que as outras, continua sendo uma organização global na sua maneira de pensar.

A partir do seu olhar privilegiado na Fundação Ford, como pensar a economia criativa do BRIC [Brasil, Rússia, China e Índia]?
Há cinco anos propusemos para Fundação Ford criar – a partir dos escritórios de Brasil, África do Sul e Índia – um pool de dinheiro para financiar a troca entre esses países. Durante quatro anos financiamos diversos projetos nesse sentido. Um desses projetos foi o da ONG Conectas, de São Paulo. Esse grupo de direitos humanos estudou a Justiça de cada um dos países envolvidos [Justiciabilidade dos Direitos Humanos – uma análise comparativa: África do Sul, Brasil e Índia, 2010]. A Índia acabava de se desligar de um império, tornando-se independente e com uma nova constituição; a África do Sul saía do apartheid e o Brasil, da ditadura militar. Foi um estudo muito interessante comparar os direitos dos cidadãos, a partir dessas diversas perspectivas, e perceber o quanto podemos aprender um com o outro. Tem muito o que explorar, mas é uma área que é pouco valorizada, mesmo dentro da Fundação Ford. Infelizmente, tivemos que acabar com o programa. Porém, não tenho a menor dúvida que explorar a relação do BRIC é o futuro.

O estranho é que, nesses países, os autores traduzidos e publicados são os mesmos. Ainda existe um centralismo na cultura que passa pelo hemisfério norte. Não se pode tirar os intermediários, agora que vivemos em rede? As fundações podem ajudar?
Concordo absolutamente. Porém, é muito mais fácil financiar projetos que tenham um intermediário do norte, do que financiar um projeto horizontal entre países do sul. Por exemplo, quando a gente financia um projeto no Brasil para fazer pontes com a África do Sul e com a Índia, não se consegue pagar nada nestes países porque o sistema bancário brasileiro não ajuda. Então, é muito mais fácil para uma fundação, que está nos Estados Unidos, dar dinheiro para Harvard, ou para Yale, e pedir para contratar um brasileiro, um indiano ou um sul-africano, e fazer essa intermediação. Sou totalmente contra isso. Temos que investir nessas sementes e fazer com que fique tão fácil para nós quanto é para eles. Temos capacidade e material para se trabalhar, mas nos falta a experiência.

No Brasil, não existe a tradição de empresas doarem dinheiro para fundos com destino cultural ou social. Acredita que essa cultura pode mudar?
Sou sempre otimista, então acho que mudará – e tem que mudar. Sou do conselho do Grupo de Instituições, Fundações e Empresas (Gife), que é uma rede de fundações. Mais de 80% dos membros são de fundações ligadas a empresas. Isso causa dificuldades, porque as empresas normalmente dão 0,5% ou 1% do seu lucro para os seus institutos, que têm atividades relacionadas com os objetivos da empresa. É muito diferente da Fundação Ford, que é totalmente independente das empresas. O que acontece no Brasil é que não há nenhum incentivo fiscal para que os nossos ricos – como aconteceu com o Henry Ford, nos Estados Unidos – abram a sua própria instituição.

E lei de herança?
A lei de herança é assim: no Brasil, é melhor você pagar as taxas devidas e deixar para seus filhos, do que deixar para eles ou para o País uma instituição filantrópica. Até alterarem a legislação brasileira para estimular uma filantropia mais independente, mais familiar e menos empresarial, eu duvido que isso mude. Agora, há esforços grandes nessa direção, mas ainda não se teve resposta. Imagino o quão difícil é mudar a lei de herança no Brasil.

Estão sendo debatidas mudanças na lei de direito autoral, o que, na verdade, passa por mudanças da lei de herança dos direitos autorais. Isso é um começo?
Tomara que seja, mas eu acho que esses debates ainda estão meio divorciados. Não sei quantas famílias muito ricas vivem de direitos autorais, mas a minha impressão é que são poucas famílias e muitas empresas que têm o benefício do direito autoral. O que nós realmente temos que estimular são fundações privadas, familiares, independentes ou comunitárias. Estas têm menos entradas e podem dar maiores perspectivas de se criar conhecimento. As fundações mais ligadas às empresas fazem outros trabalhos importantíssimos, mas o problema brasileiro é que isso está muito desbalanceado. São 80% de fundações ligadas a empresas. Se fossem 50%, tudo bem. E mais: as fundações americanas ou européias que financiavam esse tipo de trabalho no Brasil estão saindo ou diminuindo suas atividades. As fundações Kellogg e MacArthur já saíram.

Por que isso está acontecendo?
O Brasil não é mais um país pobre. O pensamento das fundações americanas sempre foi o de atuar onde existe pobreza extrema. Não é mais o caso brasileiro. As organizações filantrópicas e as de cooperação internacional pensam: “Por que financiar o Brasil, onde há governo e Estado fortes, e que tem recursos nacionais importantíssimos?”. É o mesmo problema que o Japão está vivendo com a atrofia de fundações japonesas. O Greenpeace Japão é pobre. É duro imaginar isso, porque o país é rico, mas não tem cultura nem legislação que incentivem a formação de instituições de fomento a projetos sociais e culturais. E por que esses entes são importantes? Eles têm mais capacidade de financiar, com pequenos investimentos, novos conhecimentos e novas áreas de trabalho, arriscando mais do que uma empresa ou um governo, normalmente. A Fundação Ford, por exemplo, trabalha com a questão racial no Brasil há mais de 30 anos – e só agora, nos últimos 10 anos, a questão racial é um grande tema brasileiro.

Quais projetos a Fundação Ford desenvolve hoje?
Trabalhamos em quatro ou cinco áreas: fortalecimento da justiça e dos direitos humanos; povos tradicionais e terra na Amazônia; democratização da comunicação; discriminação e relações étnicas e raciais; e começamos a trabalhar mais com ensinos superior e particular. Sempre financiamos as universidades – 50% dos nossos recursos vão para pesquisas acadêmicas –, mas agora estamos olhando o que precisa ser mudado para que novos conhecimentos possam aflorar dentro de um sistema acadêmico tão elitizado.

Conte um pouco mais sobre o projeto na Amazônia.
É o mapeamento social de novos povos tradicionais. Há muitos povos na Amazônia que nunca tiveram voz. Fazemos um mapeamento dessas novas vozes com a Universidade Estadual do Amazonas [projeto Nova Cartografia Social da Amazônia]. Estamos tentando mapear quais as comunidades que se identificam como grupo étnico, tradicional, quilombolas ou ribeirinhos. Tentamos entender um pouco as suas demandas, não só culturais e sociais, mas principalmente a demanda de terra e acesso a recursos naturais. O antropólogo Alfredo Wagner leva esse projeto junto com o Aurélio Vianna, integrante da Fundação Ford. Eles mapearam inúmeros novos grupos tradicionais, cujas culturas e identidades são absolutamente ignoradas pelo poder público. As demandas são muito diferenciadas, por isso, uma política pública que se relacione com elas tem que ter um olhar da diversidade, principalmente em uma região como a Amazônia.

A cultura indígena e a dos povos da floresta estão se fortalecendo. E começam novamente a ser absorvidas de forma original e viva por outras manifestações, como teatro, cinema e literatura. Como fomentar esse diálogo?
Tentamos financiar o conhecimento indígena e a sua aplicação para as diversas áreas de conhecimento. Quando a gente pensa o indígena, pensamos naquele que vai proteger a floresta. Tem indígena que quer ser físico, outro que quer ser advogado, e, fazendo isso, ele traz a sua cultura para dentro da física e da advocacia. Há uma demanda muito grande da comunidade indígena de se capacitar em outras áreas, querem ir para faculdade, ter acessos a outros conhecimentos e misturá-los com os seus próprios conhecimentos. Isso está trazendo legitimidade para pensar o indígena, não só como aquele que a gente observa e tem curiosidade, mas aquele com quem podemos aprender. É um processo longo, e eles são muito poucos – 0,4% da população brasileira é indígena – mas o seu conhecimento é imenso. Como trazer isso para nossa cultura do dia-a-dia ainda é um desafio.

Como fazer para que eles mesmos sejam os fomentadores das pesquisas, sem que haja um intermediário do Sudeste?
Esse tem sido nosso maior esforço. Especificamente com os grupos indígenas, tentamos de todos os jeitos não financiar o intermediário. Financiamos, por exemplo, o Instituto Socioambiental (ISA), mas para trabalhar com a cartografia, com os mapeamentos, não só para trabalhar com o indígena. Também financiamos o Centro Indígena de Estudos e Pesquisas (Cinep), uma nova organização de ensino superior dos acadêmicos indígenas. Tenho um grupo de advogados indígenas, que se reúnem e se capacitam juntos. Não tenho nada contra o intermediário, acho que todo mundo ali tem boa vontade, mas chegou o momento da voz indígena ser ouvida diretamente e com mais clareza. Acabei de vir do Mato Grosso, onde conheci um rapaz que faz curso de direito. Ele morava na aldeia, mas a mãe resolveu ser empregada doméstica em Campo Grande para que o filho pudesse continuar os estudos. Essa história está inserida em um projeto financiado por nós, e esse menino é muito capaz. Um de seus professores é filho do governador do Mato Grosso. Na primeira aula, tinha um capítulo de direito indígena, e o professor falou assim: “Olha, eu não vou dar esse capítulo, porque eu acho irrelevante, a gente não vai trabalhar isso em classe”. Como é de uma família de donos de terra, se recusou a dar o direito indígena. Aí o menino disse: “Por favor, eu sou indígena e gostaria muito dessa aula”. E ele: “Isso é uma bobagem. Eu me recuso a dar essa aula”. E sempre tratando o aluno muito mal dentro da sala de aula. Por coincidência, o menino é estagiário no Tribunal de Contas e pegou por acaso uma causa da qual o professor era o advogado. O professor tinha perdido o prazo e foi pedir prorrogação: “Poxa, juiz, deixa…”. Então o menino, assessor do juiz, falou: “Infelizmente, não”.

Como vocês pensam as agendas de políticas sociais dentro da Fundação Ford?
Nós não temos uma agenda política. A gente tem um pensamento de dar voz e qualificação para aquele grupo com o qual estamos falando, sejam os afro-brasileiros, sejam os ribeirinhos, sejam os indígenas. A partir do momento em que eles têm uma nova capacidade, uma nova voz, se eles vão apoiar esta ou aquela política, deste ou daquele jeito.

Como é a escolha dos projetos que chegam até vocês?
A fundação está aqui há 50 anos, então as pessoas entendem um pouco o que a gente já faz e o que a gente não faz. Normalmente, nossas parcerias não começam e acabam – tem grupos que a gente financia por 10 ou 20 anos. Tem muita gente que nos recrimina: “Puxa! Vocês estão há 20 anos subsidiando a fundação x, y, z?”. Sim, e daí? O governo financia alguns setores econômicos há 50 anos. Então, a gente financia com o maior prazer. Outros não precisam, criam a sua autonomia. Os projetos que chegam têm um direcionamento. Por exemplo, quando começamos a atuar na área da discussão sobre comunicação, há quatro anos, eu não tinha a menor ideia de que haveria uma Conferência Nacional de Comunicação (Confecom), em 2009, mas tínhamos a necessidade de uma articulação, uma discussão mais qualificada com outras vozes, na área de políticas públicas e de comunicação. E foi o que fizemos, apoiando diversos centros acadêmicos que já estudavam o tema, mas não tinham o tamanho suficiente para serem ouvidos. Algumas organizações não-governamentais – como Intervozes, Rede de Informações para o Terceiro Setor (Rits) e Fundo Nacional pela Democratização da Informação (FNDC) – possuíam voz própria, mas não tinham a estatura e a qualificação que talvez quisessem. Ajudamos essas organizações a participar de um debate público em outro nível. Não há uma fórmula mágica, tem que acreditar nos atores com quem você faz parcerias e aprender com eles. E a gente aprende o tempo inteiro.

Uma coisa é pesquisa e construção do saber. A outra é divulgação e diálogo do saber com a sociedade. Esta parte ainda é uma coisa falha no Brasil. Como fomentar isso?
A gente financia mais ou menos 50% da academia e 50% da sociedade civil, então valorizamos ambos, tanto a formação de conhecimento quanto a ação. Nem sempre o diálogo entre esses dois atores é fácil. A gente percebe que a academia brasileira está se abrindo mais e mais para a pesquisa aplicada, mas em uma relação mais intrínseca com a sociedade civil, principalmente nos temas com os quais trabalhamos. Os grandes acadêmicos que estudavam as relações raciais, por exemplo, eram antropólogos que estavam distantes do movimento negro. Hoje em dia, financiamos os acadêmicos afro-brasileiros que são ativistas também. Eles mesmos fazem essa ligação. A gente financia a Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN), que são ativistas e acadêmicos.

Na questão da informação, a cultura digital foi uma revolução?
Absolutamente uma revolução, porque proporciona a habilidade, não só de uma disseminação muito maior do conhecimento daquele material, mas também da utilização de dados. A gente financia diversos projetos – sejam eles relacionados a orçamento público, a corrupção, sejam projetos relacionados a parlamentares – que precisam dos dados que o governo tem, que outros recolhem, e que utilizam a internet para ligar esses dados. A Transparência Brasil é um exemplo. Eles pegam os dados do Supremo Tribunal Eleitoral, tudo sobre eleições, reorganizam e facilitam a leitura na internet. É um projeto absolutamente digital. Ele tem sempre algum dado, porque pega qualquer notícia da corrupção dos jornais eletrônicos, puxa essa informação e reproduz em um boletim com todas as denúncias de corrupção que saem sobre qualquer político no Brasil. Os jornalistas amam, porque é só ir lá e pegar o foco daquela organização.

Essa horizontalização da informação provoca questionamentos em termos hierárquicos nas empresas, governo e instituições. Obriga todos a se repensarem…
Têm que se repensar mesmo, porque percebem que, ao colocar todas as informações na internet, estão sujeitas à observação e à fiscalização. Um caso emblemático: Supremo Tribunal Federal. É o único tribunal, no Brasil, que coloca online todos os casos em que estão trabalhando. Mas por serem totalmente transparentes estão sujeitos a críticas. Quanto cada ministro demora com um caso? Ao pegar as informações, foi possível ver que há quem demore 48 dias, outros, 102 dias. Parece um ranking, uma crítica àquele juiz que demora mais. Mas a gente só está fazendo a crítica porque o Supremo foi transparente com seus dados. Os tribunais estaduais não colocam informação na internet, mas tenho certeza que são piores do que o Supremo Tribunal Federal. A decisão das empresas e do setor público de pôr, o quê pôr, quando pôr, começa a ficar muito mais estratégica. Mesmo quando coloca, porque acha que está fazendo tudo certo, você pode ficar vulnerável a uma crítica. O orçamento público federal é super transparente, dá para ver exatamente quanto vai para projetos relacionados às mulheres, aos indígenas, e aí levanta muitas críticas. Já a maioria dos orçamentos públicos estaduais não produzem esse dado. Então, como é que você pode fazer a crítica?

Isso muda o modelo. Com a transparência, fica difícil voltar atrás e ocultar dados?
Fica cada vez mais difícil não colocar o dado online. Isso é uma tendência a uma demanda social imensa. Acho que, eventualmente, todos vão colocar online. Até que esse dia chegue, os que foram pioneiros em fazê-lo serão os mais observados, porque hoje em dia a observação é feita online. Tomar a decisão de tirar os dados públicos da internet é quase impossível. Tem que ter muita coragem. Há governos que têm, mas o processo democrático brasileiro, nesse sentido, é muito profundo. Nós, realmente, temos uma democracia em termos de transparência. E que está caminhando para uma coisa sólida. Não quer dizer que não tenha manipulação, mas fica cada vez mais difícil. Agora, isso tem que chegar aos níveis municipal e estadual. Como o governo federal tem uma atuação na área de cultura impressionante, é monitorado, criticado, elogiado, mas quantos de nós atenta para as políticas culturais estaduais de Pernambuco, Alagoas, Rio de Janeiro? Não é deixar de fazer o federal, mas a gente precisa mudar um pouco o foco.

Grandes ONGs, que tiveram um papel fundamental na década de 1980, hoje enfrentam crise de financiamento. Como você vê isso?
Eu acho que não é culpa de ninguém, faz parte da história. Elas foram atores fundamentais em um momento histórico importante, quando havia necessidade de organizações, digamos, genéricas, com um objetivo único de sair da ditadura e democratizar o país. Elas tiveram muito apoio nesse projeto específico. Quando se entra em um processo democrático, principalmente com governos mais progressistas, como aconteceu nos últimos 16 anos no Brasil, o papel da sociedade civil muda muito, porque você não mais é só do contra, você não mais tem uma agenda única, que é democratizar. Então, é necessário que essas organizações se reinventem de alguma maneira ou escolham áreas temáticas específicas, bem como escolham maneiras de auto sustentabilidade específicas. Algumas delas conseguiram, estão aí fortes e pulsantes, e outras, infelizmente, não.

A China colocou como prioridade a economia criativa. Como você vê isso?
Maravilhoso. A China está sempre anos-luz na frente de todo mundo. Eu adoraria que o governo brasileiro apoiasse e decidisse muito mais. Porém, acho que a economia criativa brasileira já está dentro das favelas, das universidades, da sociedade civil e está dentro da política pública e do governo também. Talvez não tenha crescido na dimensão e na seriedade que todos nós queremos. Talvez o setor econômico brasileiro ainda não a leve a sério, e acho que é um atraso da parte deles. Mas isso a história vai contar.

Trabalhando para uma fundação estrangeira que atua no Brasil, qual é a visão do país lá fora? Qual a percepção do que está acontecendo aqui?
O Brasil é o país do futuro, eternamente. O futuro parecia nunca chegar, mas agora eu acho que nós, brasileiros, estamos dizendo: “Não, não é possível! O futuro está chegando”. Eu moro no Rio de Janeiro, e o futuro está ali, com Olimpíadas, futebol e não sei o quê. Acho que tem uma sensação interna de que o futuro chegou, um pouco estimulada pela percepção externa: o Brasil se tornou um player importante na geopolítica internacional. Não sei se é pelo próprio mérito brasileiro, que logicamente tem um, mas também acho que é por falta de opções fora da geopolítica. Estados Unidos e Europa estão em uma crise imensa, não têm outros players. Que bom que o Brasil também se mexeu para ocupar esse lugar, mas creio que ainda existe uma desconfiança muito grande lá fora. Ainda tem a percepção de que o Brasil é meio oba-oba. Vimos isso nesse caso do Irã. Qual o interesse nacional do Brasil em relação a esse tema? O Brasil está lá só para mostrar força? Qual é o interesse específico da política externa brasileira? Ao mesmo tempo, hoje em dia o Brasil se impõe como país. Isso tem mudado um pouquinho, mas ainda falta muito para ser levado mais a sério. Eles estão dando a chance do Brasil se posicionar, estão esperando para ver se o Brasil consolida o que fala. Porque o Brasil fala muito e acaba fazendo pouco, são poucas as políticas que o Brasil defende lá fora, que são absolutamente enraizadas nas políticas públicas nacionais. É o caso da Aids. O Brasil briga por políticas maravilhosas no exterior, e a política nacional brasileira sobre Aids é maravilhosa, mas a gente fica brigando por um tipo de direito autoral que queremos no mundo quando a nossa própria legislação é péssima. Você vê que tem uma dicotomia entre o que se fala e a política nacional. Se tudo que o Brasil fala lá fora fosse verdade aqui dentro, estaríamos muito bem, na área ambiental, na questão climática, no direito autoral. Não é só querer, é fazer acontecer. Estamos no caminho certo, mas ainda não aconteceu. A política externa brasileira ainda é muito marcada pelo que o Itamaraty pensa ou não pensa, e o Itamaraty é uma parte do governo. Não é uma política externa que, a exemplo do caso americano, expressa um interesse nacional.

E as universidades estão próximas ou não do debate contemporâneo?
As universidades têm realmente que se repensar. A universidade brasileira é uma contradição imensa. Apenas 15% das pessoas entre 17 e 25 anos estão na universidade. Na Índia, o índice é de 32%. Na África do Sul, 24%. Quer dizer, não só quem vai para as universidades brasileiras ainda é minoria, mas, dentro dela, ainda é uma classe específica, um grupo específico. Acredito que o Prouni, o debate sobre cotas, além das decisões das próprias universidades se abrirem, com a entrada de indígenas, tudo isso deu um novo ar dentro dos campos universitários. Mas isso ainda não é o suficiente para fazer com que a universidades – principalmente as de elite – se repensem. Elas têm uma qualidade muito boa, dentro de um projeto elitista muito forte. Então, se você amplia e deixa novos atores entrarem, é como se a qualidade fosse descer. Eu acredito no oposto.

Entrevista realizada por Fabio Maleronka Ferron e Sergio Cohn
no dia 28 de maio de 2010, em São Paulo.
Para assistir essa entrevista em vídeo:
https://producaocultural.procomum.org/2010/08/17/ana-toni/

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