Entrevista completa com Ruy Cezar, fundador da Casa Via Magia
No final dos anos 70, a capa de uma edição do semanário IstoÉ o rotulava como “profeta do desbunde”. Pudera: depois de protagonizar uma engajada militância política, com direito a prisões e tortura na condição de presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE), Ruy Cezar decidiu mudar de vida, mirando seu interesse nas artes, mais precisamente no teatro. E começando já de forma radical: na pele de um travesti, de bolsinha e peruca. “Um escândalo na época”, recorda. A partir de então, a trajetória desse baiano nascido em 1956 foi dedicada à montagem de uma rede internacional de intercâmbio cultural com o objetivo de descobrir e divulgar manifestações artísticas pouco conhecidas, sobretudo no cenário latino-americano. “Nunca programamos ninguém que já estivesse com inserção na mídia ou no circuito comercial”, ele diz, citando alguns dos nomes revelados naquelas iniciativas, como Mônica Salmaso, Ná Ozzetti e a mexicana Lila Downs. Para Cezar, a diversidade cultural brasileira não é devidamente caracterizada e divulgada, o que compromete as possibilidades econômicas do turismo. “É sempre a mesma imagem da família na praia ou de uma pessoa sambando”, ironiza. Ele postula que está justamente na periferia a maior fonte para o desenvolvimento de novas possibilidades. “A inteligência não está nos centros: o centro está congestionado e gasto. As soluções estão nas periferias.” Sua história está ligada à militância política na época da ditadura. Como foi este processo de militante a produtor e agitador cultural? Essa questão da política começou no interior da Bahia, porque eu nasci na região rural. Estudei em um colégio agrícola muito repressor. Sou técnico em agropecuária. Nesse colégio, comecei com teatro, jornal. E o jornal foi apreendido, a peça foi proibida. Era um colégio ligado a Ceplac, que era o Plano de Recuperação da Lavoura Cacaueira, e ligado direto ao governo federal. Então, era um colégio com muita repressão. Jovem, eu senti essa necessidade de expressão. Não tinha contato com nenhum movimento político. Mas logo depois, eu fui para Salvador estudar jornalismo e encontrei a universidade invadida pelo Exército. Isso foi em meados da década de 70 e, novamente, fomos fazer um jornal, chamado Faca Amolada, e o jornal foi apreendido e eu, preso. Os policiais dispersavam qualquer grupo de mais de três, dentro da universidade, e, logo, a gente se viu nas reuniões buscando válvulas de escape. O teatro era sempre a válvula escolhida e preferida por mim. Fiz teatro desde jovem, atuei muito e faço teatro até hoje. Então,nós fizemos muita passagem em sala, manifestações de rua, interpretando cenas de Bertold Brecht. Isso me levou ao movimento estudantil. Em 1978, tentamos reabrir a UNE em São Paulo e tiveram os casos das bombas na PUC, quando os estudantes saíram queimados, uma situação dura. Em 1979, a gente conseguiu fazer na Bahia e isso coincidiu com o crescimento do movimento aqui em São Paulo, o movimento sindical, e também do movimento pela anistia. Foi um momento muito rico, quando eu tive a oportunidade de militar junto com líderes sindicais. Convivi com o Lula, então presidente do sindicato dos metalúrgicos. Visitei-o no DOPS, quando ele foi preso. Quando toda a diretoria do sindicato estava presa, fui uns dos coordenadores da assembleia em São Bernardo, com mais de 100 mil operários. Percorri o Brasil inteiro, enfrentei situações de crise, em Belém, no Pará, quando um policial deixou uma arma cair e matou um estudante sentado na frente – o policial era estudante também. Teve um caso dificílimo, em Florianópolis, quando alguns estudantes vaiaram o Figueiredo – ou relincharam. Porque o Figueiredo deu uma declaração de que preferia “o cheiro dos cavalos ao cheiro do povo”, não é? Então, os estudantes foram presos e gerou uma situação de conflito de rua imensa. As organizações estudantis não estavam ainda estruturadas e não tinha quem organizasse essas manifestações espontâneas. Tudo ainda era meio clandestino; o próprio processo da UNE era todo clandestino. A UNE foi reaberta, mas, oficialmente, não era reconhecida. Então, nós ficávamos escondidos e aparecíamos no meio dessas assembleias, subindo em caminhões, organizando essa retomada. No congresso de reconstrução da UNE, em 1979, em Salvador, estava o Teatro Oficina, com o Zé Celso Martinez Corrêa, o José Serra participou… Então, havia os operários se reorganizando, os exilados querendo voltar, o movimento da anistia se articulando. Fui eleito primeiro presidente, nessa época da reconstrução. Tive confrontos com a polícia, algumas prisões breves – de três, quatro dias. Nunca fiquei preso por longo tempo. E saí do movimento estudantil, sabendo que eu não ia fazer política partidária, que aquilo não era o que eu ia escolher. E como foi seu envolvimento com a cultura? Quando eu fazia militância nos grupos de teatro e me apresentava nas assembleias, na Universidade Federal da Bahia, passava em salas de aula fazendo cenas, fazendo teatro invisível, dentro dos ônibus. Nós nos apresentamos muito na periferia com o teatro, discutindo a violência contra a mulher. Era sempre um teatro político. Isso me levou à presidência do Diretório Central dos Estudantes, da Universidade Federal da Bahia. Fui candidato, em função do teatro, e um acaso me levou à presidência da UNE. O acaso foi que o congresso, que eu coordenei, foi em Salvador, e foi muito difícil. Foram lançadas bombas, tiveram várias situações de risco, que eu tive que intervir. As luzes se apagaram, eu organizei um coro… Em que ano foi isso? Em 1979, dia 29 de maio. Lá, a polícia cercou as estradas e nós alojamos os estudantes em casas de pessoas, uma situação complicada. Avisei que dirigiria o congresso e iria embora. Quando terminou o congresso, havia um apelo generalizado para que eu assumisse a presidência da UNE, mas eu já assumi prometendo que sairia, que eu não ficaria na política, embora a sedução fosse muita. Havia pesquisas sendo feitas no Rio, na Bahia, em São Paulo, de que eu seria um candidato a deputado eleito por votação recorde, porque havia uma cobertura da mídia das ações da UNE. Eu tinha sido capa de revistas, estava sempre