Entrevista completa com Thomaz Farkas, para o Produção Cultural no Brasil

Aos 86 anos, Thomaz Farkas fala pouco e se queixa da própria memória. Nascido na Hungria, imigrou aos seis anos com a família para o Brasil, na década de 1930, e tornou-se um dos grandes nomes da fotografia moderna. A história começa com o seu pai, fundador da loja Fotoptica, especializada em equipamentos fotográficos. Farkas vivia entre profissionais e conciliava o curso de engenharia com a paixão por imagens.

Ainda trabalhando na loja do pai, Farkas reuniu amigos conhecidos para uma ideia simples: documentar lugares e pessoas pelo Brasil, uma espécie de biblioteca em imagens da cultura popular, em fotos e vídeos. “Esse era o princípio da coisa: como é o Brasil do Norte, como é o Brasil do Sul, como posso ilustrar isso? Os filmes são do Brasil inteiro. A proposta era estudar, correr e documentar o país, em diversas fases.”

Para isso, usava dinheiro do próprio bolso. De acordo com o também fotógrafo Maurice Capovilla, “Farkas foi o mecenas e o arquiteto de um novo cinema documentário que nasceu em São Paulo no início dos anos 60”. O jornalista Luiz Zanin Oricchio completa: “Não existe nenhuma incoerência em dizer que um húngaro nascido em Budapeste é o mais brasileiro dos brasileiros.” Farkas registrou um sem-número de lugares e pessoas, incluindo o gênio Pixinguinha e o rastro de Francisco Julião.

Sua obra hoje está no acervo da Cinemateca Brasileira, que foi fundada por seu amigo e, na época, estudante de filosofia Paulo Emilio Salles Gomes, junto com Decio de Almeida Prado e Antonio Candido de Mello e Souza. Diversas publicações reúnem seu trabalho: Thomaz Farkas, fotógrafo (Melhoramentos, 1997), Thomaz Farkas (Edusp/Imprensa Oficial, 2002), Thomaz Farkas – Coleção Senac de Fotografia – volume 10 (Senac, 2005) e Thomaz Farkas, notas de viagem (Cosac & Naify, 2006).

Como era fazer a Revista da Fotoptica?
Entrei na Fotoptica e já estava na Escola Politécnica. Ia para a loja trabalhar e atender à clientela. A revista nasceu comigo. Começamos a fazê-la porque era um meio de promover a fotografia. Fizemos cento e tantos números. Era uma espécie de propaganda da Fotoptica. Era mensal, se não me engano. Era muito interessante e produtivo, a revista era universal, dada à fotografia, à ótica, ao cinema – que era o que nós trabalhávamos.

Fazia fotografia e cinema ao mesmo tempo.
Desde os nove, dez anos, eu mexo com fotografia. O cinema entrou logo em seguida, porque a Fotoptica tinha equipamento e eu comecei a trabalhar, filmar, revelar. Era preto e branco, depois veio o colorido. Me dediquei muito ao que existia no Brasil, tanto às pessoas como aos lugares. Eram reportagens que eu fazia, uma coisa muito pessoal.

A Caravana Farkas surgiu desse interesse?
A Caravana Farkas corria o Brasil inteiro. Eu tinha uma caminhonete Chevrolet C-14 com uma plataforma em cima. Percorremos o país todo filmando, fotografando e fazendo uma espécie de cobertura interessante sobre as pessoas, os costumes e os usos. Como é que era o Brasil do ponto de vista cultural, econômico e físico. Éramos três pessoas que se revezavam nesse trabalho. Tinha o motorista do carro, que geralmente fazia o som, tinha um fotógrafo e eu, que fazia a direção.

Por que você quis fazer filmes sobre os costumes do Brasil?
Eu tinha uma preocupação política. Nessa época, todo mundo tinha uma preocupação política na vida. Eu era estudante na Politécnica. Os filmes tinham viés político, tinha um viés de estudar o que acontecia nos lugares, como as coisas aconteciam. O conhecimento do Brasil era muito interessante. Esse era o princípio da coisa: como é o Brasil do Norte, como é o Brasil do Sul, como posso ilustrar isso? Os filmes são do Brasil inteiro. A proposta era estudar, correr e documentar o país, em diversas fases. Por isso fizemos tantos filmes.

Como foi a escolha dos lugares?
Tivemos a assessoria de um professor de geografia humana. Havia uma espécie de preparação sobre o que acontecia em cada lugar. Nunca fui a nenhum lugar sem uma assessoria, sem uma pesquisa prévia feita com vários geógrafos. Tínhamos várias propostas: do Norte e Nordeste até São Paulo; do interior até o Sul etc. A gente tinha mobilidade e filmava desde a geografia física até geografia humana, que era a coisa mais interessante que havia. Eu tinha isso como modelo de vida, a gente se interessava pelo país que vivia. E isso deu um resultado satisfatório. Todos os filmes que fiz me satisfazem muito.

Era mais do que o simples gosto pela fotografia.
Minha preocupação era a de documentar. Desconfiava o que era o Brasil, mas não tinha certeza. Nós fomos atrás da desconfiança, atrás desse professor de geografia, que nos ensinava: “Olha, nesse lugar tem isso, se faz isso, se faz aquilo”. Em vez de fazer um filme, fazia dois ou três. Tinha essa possibilidade, porque o dinheiro era meu. Não devia nada a ninguém, só a mim mesmo. E não era uma época de coisas caras. Eu podia financiar com o dinheiro que tirava da Fotoptica. Era muito pouco dinheiro em comparação ao que se gasta hoje. E eram quase todos amigos. Era mais uma questão entre amigos, mas era profissional, todos recebiam um salário, ninguém trabalhou de graça. Eu chegava, por exemplo, no Nordeste e dizia: “O que é que se planta aqui? O que acontece nessa cidade? Como é que é a vida?”. Tentei documentar tudo isso por meio dos filmes.

Como foram as participações do Affonso Beato e do Maurice Capovilla nesse projeto?
O projeto alcançava muita gente. Em cada lugar a gente levava alguém. Se fosse no Nordeste, levávamos alguém de lá; se fosse no Sul, alguém do interior. Eram muitos colaboradores. Como diretor da brincadeira, eu manobrava as coisas, mas não dirigia todos os filmes. Capô (e esse pessoal todo) veio trabalhar conosco.

Vocês devem ter vivido muitas histórias…
O carro quebrava muitas vezes, assim como a filmadora. Tinha problema de iluminação. A gente fazia as coisas conforme a possibilidade.

Como as pessoas reagiam ao serem filmadas?
Quando a gente chegava em um lugar, falávamos com as pessoas importantes dali, mostrávamos o que era cinema. Era tudo explicado, não havia mistério, nem segredo: “Olha, nós vamos gravar aqui, vamos pôr esse microfone para ouvir o que vocês estão conversando aqui na feira”. Era uma coisa muito natural.

Você teve vontade de mostrar para essas pessoas o que filmou?
Não dava para voltar para tantos lugares, era muito longe. Nós só projetávamos esses filmes nas universidades e nas escolas, para difundir essas coisas.

Você e Paulo Gil Soares tentaram filmar, lá em Pernambuco, o Francisco Julião, líder das Ligas Camponesas, histórico defensor dos trabalhadores rurais.
O Julião era uma figura pernambucana muito importante na época, por causa da revolução que havia. Mas nós não filmamos o Julião, filmamos as ideias dele, aquilo que ele distribuía.

Da época da Caravana para agora, o Brasil mudou muito?
O país teve um progresso interessante, muito sensível. Já me propuseram refazer a Caravana, mas eu disse: “Agora não é mais a minha época. São outros que estão fazendo”. Essa documentação brasileira continua com outras pessoas e a gente vê por aí os filmes que estão sendo feitos.

E o seu trabalho em fotografia still, antes do cinema?
A fotografia nunca foi tão importante para mim quanto o cinema. O cinema tem uma dimensão fotográfica evidentemente, mas eu tinha a intenção é de fazer uma penetração cultural no Brasil, estudar quais eram os lugares para onde íamos, como íamos, e o que trazer. Se tinha um local para fazer um filme, a gente também ia na redondeza, ver se lá tinham mais assuntos. Em vez de ter só uma visão da indústria local, ou da penetração local, a gente ia em volta; não fazia um filme só, fazia dois ou três. Cada filme me levava para uma cidade, mas em vez de fazer só dessa cidade, eu fazia em todas. Via o que ela tinha: se uma agricultura ou uma planta especial, se tinha alguma que interessaria para a gente documentar. Sempre aparecia alguma coisa interessante.

Você imaginava que esse trabalho continuaria a repercutir tanto tempo depois?
Como nós tínhamos uma investida pessoal, eu esperava muito, porque eu achava que resultaria em uma coisa importante, como resultou. Tentei botar toda a minha experiência, toda a minha vida, dinheiro e tempo para fazer esses filmes. Então, por isso que resultaram 20, 30 filmes, em vez de os dois ou três que a gente pretendia fazer. Foi uma satisfação pessoal muito grande, que é o que eu procurava.

Como era feita a distribuição dos filmes da Caravana?
Não havia uma distribuição comercial. É verdade que nós conseguimos ampliar alguns filmes para passar em 35 mm, mas não deu lucro nenhum, não houve nenhuma possibilidade comercial nisso. O que nós tivemos de alegria e de possibilidade foi projetar nas universidades.

Como era a recepção nas universidades?
Era muito boa, porque a gente já vinha com a fama. E havia equipamento para projetar. No Nordeste, Sul ou Sudeste, você não ia só filmar, mas ia também promover aquilo que estava fazendo. Isso era muito importante.

E como eram as discussões oriundas dessas exibições?
Muito bacana, porque eram em universidades, com perguntas de alto nível, o que possibilitava a gente poder conversar. Eu passava o filme e depois falava: “O que é
que vocês acharam?” Aí, vinham as perguntas, que eram muito boas, a respeito do material e de como aconteciam as coisas. Eu falava bastante nas exibições.

O Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes (CPC/UNE), com boa parte do pensamento da esquerda, exibia os filmes?
Eu não estava ligado a grupo político nenhum. A gente emprestava os filmes para todo mundo que queria passar. Nas escolas, claro. Quando vinham pedir, ficávamos contentíssimos.

Caravana Farkas foi um nome dado antes ou depois?
Durante. Não lembro quem foi que deu. Eu não chamava a Caravana de minha. Mas uma hora apareceu esse nome Caravana Farkas. Porque foi um acontecimento muito importante no cinema. Ninguém fazia esse tipo de filmes, só eu.

Como foi filmar Pixinguinha, em 1954, na inauguração do Ibirapuera?
Eu adorava a música brasileira regional e, nessa época, não havia muitos filmes sobre isso. E o Pixinguinha apareceu para mim. Foi o ideal, porque era uma figura indicada, uma figura maravilhosa, e que interessaria a documentação sobre ele. Tanto que resultou um filme bastante bom [os negativos foram encontrados e, posteriormente, restaurados com ajuda do Instituto Moreira Salles; as imagens estão no documentário Pixinguinha e a velha guarda do samba (Brasil, 2006)].

Conte um pouco sobre Galeria Fotoptica.
Era a base de tudo: de operação e de dinheiro. Era o ponto onde a gente ficava. Eu era profissional do ramo, então, sabia como é que fazia para se chegar ao filme mais barato, chegar à revelação mais barata, bem feita.

Vou ler um trecho de uma entrevista sua: “Levei até a TV Cultura os quatro primeiros filmes para ver se eles queriam passar, mas como era época de ditadura, alguém me falou: ‘Olha, tem muita miséria’. E aí eu expliquei: ‘Isso não é miséria, isso é como as pessoas vivem’. E ele: ‘É, mas nessa época de ditadura eles vão pensar que eu estou querendo mostrar uma coisa feia’. Então nada passou na televisão naquela época”.
Mas, graças a Deus, tudo o que eu fiz foi exibido. Não tive censura posterior. Eu filmava e mostrava nas escolas e universidades. Eram muito abertas para essas coisas.

Muitos registros do cinema e da fotografia do Brasil se perderam, mas você teve a preocupação em preservar seu material. Como conseguiu?
Foi uma iniciativa particular, porque eu tinha cuidado. Sabia quem é que fornecia o filme, como é que guardava, como copiava. Sabia como esse material era arquivado na Cinemateca. Não era um método científico, mas era profissional. Eu mantinha tudo em um laboratório da Fotoptica, bem guardadinho, em latas. Agora está na Cinemateca Brasileira.

Como foi conviver e trabalhar com Paulo Emílio Salles Gomes, cineasta, crítico e fundador da Cinemateca Brasileira?
O Paulo Emílio foi meu colega e trabalhou conosco. A gente o consultava muito, foi uma pessoa importante em alguns filmes. Era muito dedicado. Ele tinha um ótimo senso de humor.

Como o senhor vê esse aumento do número de fotos em uma escala gigantesca a partir da máquina digital?
A fotografia se expandiu muito. Você vê no mundo inteiro gente trabalhando da maneira que nós fazíamos. Tenho muito contentamento no fato de que isso continua. Não faço mais parte, já passei da idade, mas sei que tem muita coisa importante sendo feita. A documentação continua para não se perder.

Para encerrar, Farkas, podemos fazer algumas fotos suas para o projeto?
Fique à vontade. Não tenho pressa, não tenho.

Entrevista realizada por Fabio Maleronka Ferron, Sergio Cohn e
Sylvio Rocha no dia 30 de maio de 2010, em São Paulo.
Para assistir essa entrevista em vídeo:
https://producaocultural.procomum.org/2010/08/18/thomaz-farkas/

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Rolar para cima