Entrevista completa com Ruy Cezar, fundador da Casa Via Magia

  No final dos anos 70, a capa de uma edição do semanário IstoÉ o rotulava como “profeta do desbunde”. Pudera: depois de protagonizar uma engajada militância política, com direito a prisões e tortura na condição de presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE), Ruy Cezar decidiu mudar de vida, mirando seu interesse nas artes, mais precisamente no teatro. E começando já de forma radical: na pele de um travesti, de bolsinha e peruca. “Um escândalo na época”, recorda. A partir de então, a trajetória desse baiano nascido em 1956 foi dedicada à montagem de uma rede internacional de intercâmbio cultural com o objetivo de descobrir e divulgar manifestações artísticas pouco conhecidas, sobretudo no cenário latino-americano. “Nunca programamos ninguém que já estivesse com inserção na mídia ou no circuito comercial”, ele diz, citando alguns dos nomes revelados naquelas iniciativas, como Mônica Salmaso, Ná Ozzetti e a mexicana Lila Downs.

Para Cezar, a diversidade cultural brasileira não é devidamente caracterizada e divulgada, o que compromete as possibilidades econômicas do turismo. “É sempre a mesma imagem da família na praia ou de uma pessoa sambando”, ironiza. Ele postula que está justamente na periferia a maior fonte para o desenvolvimento de novas possibilidades. “A inteligência não está nos centros: o centro está congestionado e gasto. As soluções estão nas periferias.”

Sua história está ligada à militância política na época da ditadura. Como foi este processo de militante a produtor e agitador cultural?
Essa questão da política começou no interior da Bahia, porque eu nasci na região rural. Estudei em um colégio agrícola muito repressor. Sou técnico em agropecuária. Nesse colégio, comecei com teatro, jornal. E o jornal foi apreendido, a peça foi proibida. Era um colégio ligado a Ceplac, que era o Plano de Recuperação da Lavoura Cacaueira, e ligado direto ao governo federal. Então, era um colégio com muita repressão. Jovem, eu senti essa necessidade de expressão. Não tinha contato com nenhum movimento político. Mas logo depois, eu fui para Salvador estudar jornalismo e encontrei a universidade invadida pelo Exército. Isso foi em meados da década de 70 e, novamente, fomos fazer um jornal, chamado Faca Amolada, e o jornal foi apreendido e eu, preso. Os policiais dispersavam qualquer grupo de mais de três, dentro da universidade, e, logo, a gente se viu nas reuniões buscando válvulas de escape. O teatro era sempre a válvula escolhida e preferida por mim. Fiz teatro desde jovem, atuei muito e faço teatro até hoje. Então,nós fizemos muita passagem em sala, manifestações de rua, interpretando cenas de Bertold Brecht. Isso me levou ao movimento estudantil. Em 1978, tentamos reabrir a UNE em São Paulo e tiveram os casos das bombas na PUC, quando os estudantes saíram queimados, uma situação dura. Em 1979, a gente conseguiu fazer na Bahia e isso coincidiu com o crescimento do movimento aqui em São Paulo, o movimento sindical, e também do movimento pela anistia. Foi um momento muito rico, quando eu tive a oportunidade de militar junto com líderes sindicais. Convivi com o Lula, então presidente do sindicato dos metalúrgicos. Visitei-o no DOPS, quando ele foi preso. Quando toda a diretoria do sindicato estava presa, fui uns dos coordenadores da assembleia em São Bernardo, com mais de 100 mil operários. Percorri o Brasil inteiro, enfrentei situações de crise, em Belém, no Pará, quando um policial deixou uma arma cair e matou um estudante sentado na frente – o policial era estudante também. Teve um caso dificílimo, em Florianópolis, quando alguns estudantes vaiaram o Figueiredo – ou relincharam. Porque o Figueiredo deu uma declaração de que preferia “o cheiro dos cavalos ao cheiro do povo”, não é? Então, os estudantes foram presos e gerou uma situação de conflito de rua imensa. As organizações estudantis não estavam ainda estruturadas e não tinha quem organizasse essas manifestações espontâneas. Tudo ainda era meio clandestino; o próprio processo da UNE era todo clandestino. A UNE foi reaberta, mas, oficialmente, não era reconhecida. Então, nós ficávamos escondidos e aparecíamos no meio dessas assembleias, subindo em caminhões, organizando essa retomada. No congresso de reconstrução da UNE, em 1979, em Salvador, estava o Teatro Oficina, com o Zé Celso Martinez Corrêa, o José Serra participou… Então, havia os operários se reorganizando, os exilados querendo voltar, o movimento da anistia se articulando. Fui eleito primeiro presidente, nessa época da reconstrução. Tive confrontos com a polícia, algumas prisões breves – de três, quatro dias. Nunca fiquei preso por longo tempo. E saí do movimento estudantil, sabendo que eu não ia fazer política partidária, que aquilo não era o que eu ia escolher.

E como foi seu envolvimento com a cultura?
Quando eu fazia militância nos grupos de teatro e me apresentava nas assembleias, na Universidade Federal da Bahia, passava em salas de aula fazendo cenas, fazendo teatro invisível, dentro dos ônibus. Nós nos apresentamos muito na periferia com o teatro, discutindo a violência contra a mulher. Era sempre um teatro político. Isso me levou à presidência do Diretório Central dos Estudantes, da Universidade Federal da Bahia. Fui candidato, em função do teatro, e um acaso me levou à presidência da UNE. O acaso foi que o congresso, que eu coordenei, foi em Salvador, e foi muito difícil. Foram lançadas bombas, tiveram várias situações de risco, que eu tive que intervir. As luzes se apagaram, eu organizei um coro…

Em que ano foi isso?
Em 1979, dia 29 de maio. Lá, a polícia cercou as estradas e nós alojamos os estudantes em casas de pessoas, uma situação complicada. Avisei que dirigiria o congresso e iria embora. Quando terminou o congresso, havia um apelo generalizado para que eu assumisse a presidência da UNE, mas eu já assumi prometendo que sairia, que eu não ficaria na política, embora a sedução fosse muita. Havia pesquisas sendo feitas no Rio, na Bahia, em São Paulo, de que eu seria um candidato a deputado eleito por votação recorde, porque havia uma cobertura da mídia das ações da UNE. Eu tinha sido capa de revistas, estava sempre nas manchetes, na Folha de S.Paulo, Jornal do Brasil, na televisão. Então, havia essa perspectiva de que essa liderança fosse aproveitada. Mas eu não tinha esse interesse e a saída foi conflituosa. Se tem alguém mais velho aqui, que acompanhou, sabe que eu voltei à mídia fazendo uma peça de teatro e deixando a política estudantil. Fiz vários papéis nessa peça, e isso gerou uma polêmica no Brasil inteiro, porque a IstoÉ falava no “profeta do desbunde”, com a minha foto na capa. O Jornal do Brasil publicou: “Ruy Cezar desencaminha a juventude brasileira”.

Por quê? O que é que tinha na peça?
A peça era um cordel e existiam vários papéis. Em um deles, eu fazia um travesti. Não era um travesti clássico, era uma coisa bem escrachada. Eu já fiz outros papéis femininos, em outros espetáculos. Mas o presidente da UNE não podia aparecer de minissaia com uma bolsa e com peruca de ráfia, aquelas coloridas de carnaval. Isso gerou um escândalo. Além disso, havia uma ampla discussão sobre “quem está transando com quem”, sobre liberdade de orientação sexual. Aí, eu dizia que tudo era válido e dei entrevistas defendendo que as pessoas tinham que ser elas mesmas. E também vinha a história de quem estava fumando maconha, e se era bom fumar, se não era. Também defendi publicamente o direito das pessoas de fumar. Mas dentro dessa política não podia fazer aquilo. As pessoas não falavam publicamente essas coisas, nem apareciam de minissaia nas revistas. Cara, eu era muito jovem, não sabia a dimensão que isso tinha. Mas encerrei essa fase. Sabia que não ia mais assumir nenhum cargo político e que também não ia militar em partidos.

Conta um pouco como foi esse ativismo na cultura.
Eu fundei um grupo de teatro em São Paulo, que até hoje dá nome à instituição que eu dirijo, o grupo Via Magia de Teatro. Fizeram parte dessa fundação Guilherme Leme, Antonio Calloni. Emmanuel Marinho dirigiu um festival em Mato Grosso do Sul; Marcos Kaloy, que é de Campinas, dirigiu o Festival Internacional de Campinas. A gente montou esse coletivo para fazer teatro. Depois, nós nos transferimos para Salvador, em 1984. Alugamos um espaço, onde estamos até hoje. Hoje são uns quatro mil metros quadrados, tem um circo, que chamamos de Teatro de Pan. Cresceu muito o projeto, a turma do bairro. Por meio do teatro montamos também um espaço de educação e arte. Essa escola reúne hoje cerca de 300 crianças e mais 80 jovens que estudam música, circo, teatro, dança, artes visuais. No final dos anos 80, eu tinha essa busca de internacionalizar esse movimento, de um grupo de pessoas que queria trabalhar com arte independente, com teatro investigativo. Já havia um certo desencanto com o teatro político, de militância, e uma sedução pela sociedade de consumo, pela coisa do livre mercado. E também por um movimento teatral mais profissionalizado, cada vez mais dedicado às comédias e à música, especialmente à baiana, alcançando um patamar comercial mais forte. Então, isso me levava a querer buscar caminhos, e foi aí que nós começamos a ideia de montar redes. Começamos esse trabalho de busca de parceiros na América Latina. Talvez o Yacoff Sarkovas tenha falado da fundação da Rede Latino-americana de Produtores Independentes de Arte Contemporânea (La Red), em 1991.

Falou. Mas conte mais sobre a origem da rede e o encontro de vocês.
A origem disso são esses movimentos de artistas, pensadores e ativistas em vários países, buscando trocar ideias e fazer circular os espetáculos. Trocas intelectuais, experiências de colaboração, que não estavam acontecendo. A gente tinha Goethe, a gente tinha a Aliança Francesa, mas a gente não tinha como circular pela América Latina, a gente não conhecia nada. E nós tínhamos esse sonho, na América Latina, que vinha dessa origem nossa do movimento, digamos assim, da esquerda.

Nós quem, Ruy?
Ali estavam, por exemplo, o Teatro Espaço de Paraty, Marcos Caetano Ribas e Rachel Ribas, que foram fundamentais nesse processo. O próprio Yacoff já aparecia com uma cabeça interessante, pensando, jogando embriões de questões que hoje a gente discute como economia da cultura. Aos poucos foi desenvolvendo todo esse trabalho da comunicação por atitude. Mas na época não era assim, era tudo embrionário. Grupos de artistas da Argentina, no caso, Alberto Félix Alberto, que é um diretor de teatro muito controverso, e que dirige também, hoje, um centro cultural lá. Octavio Arbeláez, da Colômbia, que dirige vários festivais. Artistas e intelectuais de Cuba, do Chile, do Uruguai. Vinha um pessoal muito interessante de Córdoba, da Argentina, do Peru, que permanece até hoje nesse movimento. E isso foi crescendo, ocupou espaços até no Caribe. Essa rede teve muito sucesso nos anos 90, e expandiu esse movimento para outros continentes. Passou a se relacionar com outras redes muito importantes, como a National Performance Network (NPN), que é uma rede de teatro e dança dos Estados Unidos. O Informal European Theater Meeting (IETM), que é uma rede europeia também de artes cênicas. E hoje nós, da Casa Via Magia, somos da diretoria executiva do fórum europeu, o European Forum for Worldwide Music Festival. São os 120 maiores festivais da Europa e esse pessoal, do European Forum, criou o Festival do Deserto.

O que é o Festival do Deserto?
Festival do Deserto acontece na Turquia. Reúne artistas de vários países em tendas, com workshops e espetáculos no deserto. As pessoas acampam para fazer. Esse grupo do European Forum criou a Womex, que é uma das maiores feiras de música, hoje, do mundo. Mas aí eu já dei um pulo na história das redes, chegando até agora, no ano 2000, onde a gente está com essa ponte muito forte com o movimento internacional. Então, veja, estamos falando de um grupo de teatro fundado em 1982, que mais tarde abre um centro de arte e educação chamado Espaço de Convívio – era uma comunidade hippie – que dá aulas de artes para crianças. Hoje, são trinta e poucos espetáculos montados. E eu continuo ensaiando, continuo em cena. Então, isso originou o Instituto Casa Via Magia, que é linkado na rede latino-americana e nessas redes europeias, norte-americanas, asiáticas (a FCP). Estimulamos o surgimento da Arabs Arts Presenters, com sede na Jordânia, que é muito interessante. Hoje eu dirijo a Casa Via Magia, um instituto que tem um centro de capacitação, escola e esse trabalho internacional. Nós temos muitos colaboradores, hoje. Um deles é o músico Benjamim Taubkin, que é daqui de São Paulo, é o responsável pela nossa representação na diretoria do fórum europeu. Ele viaja duas vezes por mês para algum país. É uma militância, a militância de ajudar artistas palestinos a conseguirem gravar os seus discos com qualidade, em Israel; de descobrir o que os artistas africanos estão produzindo agora; de ajudar os artistas do leste europeu a dar visibilidade aos seus trabalhos pela Europa. E hoje, o projeto que a gente dirige, em Salvador, que é o Mercado Cultural, é um ponto de encontro dessas comunidades, que, anualmente, vêm a Salvador  discutir esses movimentos e esses intercâmbios.

Como funciona a Rede de Produtores Culturais da América Latina e Caribe?
A rede latino-americana, hoje, está em uma situação bem diferente do que foi nos anos 90, quando ela tinha financiamento da Fundação Rockefeller. Mais tarde, tivemos um suporte grande para as ações do encontro, da Ford Foundation. Em 2001, quando estávamos fundando o mercado na Jordânia, e teve o episódio das Torres Gêmeas, houve um corte violento dos recursos, principalmente das fundações americanas, e a rede sofreu muito. Mas a rede tem associados em todos os países da América Latina. Funciona muito por meio do trabalho virtual de informação contínua, e de suporte mútuo; é totalmente horizontal. Então, quando nós enviamos uma pessoa a um país, sempre tem alguém da rede para receber, para indicar os grupos, para abrir caminhos. Quando nós escolhemos um grupo para trazer, sempre tem alguém da rede fazendo a gestão de passagens e de auxílio governamental ou privado para esse grupo poder chegar. Eu diria que 50% do que nós fazemos envolve dinheiro e 50% envolve articulação – talvez o percentual da articulação valha mais. Porque nós fizemos, por exemplo, alguns festivais em que trouxemos uma quantidade de músicos do jazz norte-americano, inclusive com estrelas como Nathan Davis, que eram pagas por universidades norte-americanas, e eles tinham um cachê altíssimo. De repente, a gente olhava o nosso orçamento, e o orçamento deles com as passagens executivas e cachês individuais de US$ 20 mil cada um… Era maior do que o orçamento do festival que a gente estava fazendo, a contrapartida era maior. Então, na rede, eu troco cerca de 200 e-mails por dia e a gente recomenda grupos. Muitos dos e-mails são sobre informação jurídica, reforma de estatuto, legislação internacional. Mas a grande maioria é sugestão de grupo: “Quem está fazendo um trabalho interessante na Bolívia?”. “E de teatro?”. Nós descobrimos, por exemplo, o Teatro de Los Andes. Hoje, nós já apresentamos esse grupo em turnê, nos Estados Unidos, na Europa e em toda a América Latina. Eles vivem em uma comunidade indígena, em Sucre, na Bolívia. Eu compararia, no Brasil, ao grupo Galpão, de Belo Horizonte: uma comunidade com uma expressão estética e dramática com a força de igual dimensão.

E o que é o Mercado Cultural?
A ideia do Mercado surgiu como um ponto de encontro, onde nós pudésse mos mostrar ao vivo a produção brasileira, latino-americana, com um número de espetáculos razoável, nunca repetindo, cortando radicalmente a hipótese de artistas-chamarizes. Então, enfrentamos lobbies homéricos de governo, do Estado, para a entrada dos artistas, das estrelas da música da Bahia. Nunca programamos ninguém que estivesse já com inserção na mídia ou no circuito comercial. Não que a gente tenha algo contra, mas não era para isso o projeto. Então, o Mercado era um centro de discussão, de troca de idéias sobre diversidade cultural, promoção cultural, trabalho em rede. Depois, visibilidade para arte independente, distribuição sistemática da produção cultural, valorização da produção com identidade. Quando Gilberto Gil assumiu o Ministério da Cultura, nosso diálogo foi muito interessante sobre os Pontos de Cultura e foi aparecendo também a discussão da economia criativa, que o mercado estava começando a trabalhar, em 1999. Nós trouxemos a questão da visão da cultura mesmo. Não só a visão da arte, mas a visão do fazer cultural, da valorização das tradições, dos saberes, dos fazeres. Muitos acadêmicos participaram do Mercado. Eram três eixos de produção: sistematizar uma oferta inovadora diferenciada, promover e dar visibilidade a quem não tinha e distribuição. Então, a gente conseguiu impactos. DJ Dolores fez 30 contratos a partir do Mercado, a Monica Salmaso montou uma carreira internacional, depois a Lila Downs, do México, saiu de Salvador para o Lincoln Center, e também montou uma sólida carreira internacional. A Ná Ozzetti passou a ser conhecida no Brasil, não só em São Paulo. Os Pífanos de Bendengó, do interior da Bahia, que ninguém conhecia, fizeram turnê na Europa.

Você começa a pensar em rede ainda longe da internet…
Quando nós nos reunimos em Paraty, alguém perguntou: “Como é que a gente vai se comunicar?”. Tinha esse problema, despesa com telefone. Em 1992, alguém me apresentou o fax e eu não acreditei que o papel entrava de um lado, passava pelo fio e saía do outro. E quando nós estávamos a todo vapor com o fax, alguém falou: “Agora é a internet”. Isso foi em 1995. Mas era complicadíssimo, nós não tínhamos computadores. Fomos a uma fundação americana chamada AT&T, que era uma fundação de telefonia, e conseguimos uma doação. Colocamos computadores em todos os associados da rede da América Latina, com modem, em 1997.

Quantos associados mais ou menos?
Aí já tinham uns 60 associados. E o Caribe já estava “plugado”. Mas nos encontros presenciais, que começaram a rede, eram 10, 20 pessoas. Mas aí começaram a vir delegações da Europa, dos Estados Unidos, da Ásia, para ver o que a gente estava apresentando. E o que é que a gente apresentava? Extratos de espetáculos em vídeo para as pessoas conhecerem a produção de cada região. Aí começou a entupir: de 20 pessoas, subiu para 60; dali a pouco, 150. O Yacoff levava a produção de São Paulo, apresentando três minutos de cada espetáculo. Os que vinham de fora não queriam só ver, queriam também mostrar.

Como você vê o turismo cultural e suas contradições, principalmente olhando a partir de uma cidade como Salvador?
O grande fator de atração do turismo, no mundo, é a cultura. A líder de atração turística, no mundo, é a França com seus museus, espetáculos. No Brasil, não há relação entre turismo e cultura. Você pega um folheto de promoção do turismo no Brasil – do Rio Grande do Sul ao do Norte –, e são todos iguais, não têm diferença. Um país com tanta diversidade, e você vê a mesma imagem da família na praia ou a pessoa sambando. Passa a imagem de um lazer rápido, que é a imagem vendida do Brasil. O trabalho do turismo do Brasil é predatório. Ainda não avançou.

Embora tenha se usado muito o turismo em cultura, não é? Os governos anteriores na Bahia provam isso.
É. O marketing é diferente do que acontece na prática. Porque o que se apresenta nos hotéis são extratos da cultura da pior espécie, são arquétipos da capoeira, ou da dança. Eu vi, por exemplo, uma capoeira com as pessoas vestidas com uns maiôs das cores da bandeira da Bahia, tocando um playback sem instrumental nenhum, e as pessoas fazendo umas danças sexuais, em um encontro internacional. A secretaria atual jamais vai fazer uma coisa dessas, não é? O turismo de você poder envolver-se com as comunidades é a chave de uma solução econômica, e de uma valorização das culturas locais, que há um grande potencial, hoje, no mundo, mas que nós não estamos ainda aproveitando. Onde tem a falta é onde está a possibilidade. Em 1999, havia quatro ou cinco músicos vendendo mais de um milhão de discos no Brasil – Daniela Mercury, Ivete Sangalo, Netinho, Asa de Águia, Cheiro de Amor – e nós fomos montar um encontro internacional de arte. E dissemos: “Essas pessoas não podem tocar aqui”. E foi um sucesso na cidade, a população abraçou, lotou os espaços. Normalmente, a gente fica batendo a mão na porta de lugares congestionados – Sul, Sudeste, Rio, São Paulo – para ser aprovado. É mais fácil um artista de Pernambuco vir ao Rio do que se apresentar em Sergipe ou no Piauí, entendeu? Não há circuitos montados nas cidades médias nordestinas. Então, é nisso que a gente está trabalhando agora. Em São Paulo e nas cidades mais organizadas economicamente, há secretarias de cultura, estruturas de rede, como o próprio Sesc. Mas, nas outras regiões, isso não é realidade. E tudo isso que falta é oportunidade. São nessas faltas que as oportunidades estão, são nesses desertos que podem surgir as soluções. A inteligência não está nos centros: o centro está congestionado e gasto. As soluções estão nas periferias. A inovação não virá do centro. Um centro que se fecha à imigração, que se isola em condomínios fechados, que blinda seus carros, que vive nos apartamentos de luxo e não convive com seus vizinhos, não entende o que é sociedade. Sociedade é vida comum, é bater na porta do vizinho e dizer: “Pode cuidar do meu filho, porque eu preciso trabalhar?”. Isso não tem nos centros. O centro está medroso. Então, a inovação das soluções de partilhamento, que o planeta precisa, não virá do centro, nem as soluções de desenvolvimento social, nem de inclusão social.

Na política cultural, quais os papéis do Estado, da sociedade e da iniciativa privada? Como você entende o papel de cada um?
Sempre se fala que o Estado deve ser o grande indutor, eu diria até que facilitador. Às vezes, o Estado pode também fomentar movimentos que estão embrionários. Porque o Estado não é um monstro congelado; são pessoas. A mesma fundação, a mesma secretaria dirigida por uma pessoa, anos depois dirigida por outra, afunda e vira uma outra coisa qualquer. Então, por trás das instituições estão as pessoas, e as pessoas podem ajudar a implementar políticas. O erro que o Estado pode incorrer é o de querer protagonizar demais e prender demais. É o erro da vaidade, das próprias pessoas quererem ser os autores, os protagonistas. É um erro em qualquer instituição, não só no Estado. As empresas estão cometendo erros seríssimos no Brasil. Extremamente graves, porque o valor da cultura é da cultura, não é o do dinheiro nem o do patrocínio. Não permito que uma marca seja exibida dentro do palco. Se alguém quiser patrocinar algum projeto meu, jamais poderá colocar sua marca atrás do artista, dentro do palco. Coloca no folheto, até em um banner discreto, mas invadir? É como chegar em uma obra de arte, em um quadro e, “pá!”, botar a marca do patrocinador dentro. É deselegante, desagradável, uma anticomunicação, uma apropriação indevida por parte de um departamento de marketing. Isso acontece especialmente no Brasil. Se você vai aos centros culturais dos Estados Unidos, você encontra aquela lista de sponsors delicadamente em uma parede. Você vê os festivais cada vez mais se transformando nos festivais das marcas. É uma coisa impressionante, porque os movimentos culturais têm identidade, têm tempo, se transformam, não podem ficar estagnados. Não podem ser apropriados por uma marca, porque eles ficam parados e presos dentro de uma janela, e aí deixam de ser movimentos.

No esporte, eles estão fazendo isso…
Há uma ignorância porque é um luxo, uma honra para uma empresa associar a sua marca a um movimento cultural sério, a um grande artista. É melhor abrir um catálogo escrevendo um texto, dizendo porque está apoiando aquilo, do que o excesso. Esse excesso, no Brasil, vai precisar ser contido em algum momento. Toda essa discussão da Lei Rouanet, do patrocínio, eu traria para esse lado, o da apropriação indevida do valor da cultura pelas marcas das empresas. A sociedade tem um papel importantíssimo, porque a renovação vem do que está desorganizado. Nada que está estruturado, renova; o conhecimento sistematizado é sobre o que já foi feito. O que a gente ensina já é passado. Para se criar, precisa de caos. Um cientista, para descobrir uma vacina, erra quantas milhares de vezes? Hoje, não se admite erro. Tudo se quer eficiência. Então, os projetos têm que estar redondinhos. A sociedade também quer se parecer com as empresas, quer se enquadrar, parecer bonitinha, ser competente, eficiente e exata. Mas são valores da revolução industrial, já passou. Nós estamos na era da comunicação digital, da internet, e os valores agora são rapidez de pensamento, facilidade de desconstrução e construção de novas hipóteses, novas inflexões. A sociedade precisa tomar cuidado para não assumir o jargão das empresas, e as empresas precisam tomar cuidado para não se apropriarem do valor da cultura, como parte do seu marketing. O governo tem que ser o grande indutor, mas tomar cuidado para não querer ser o gerente.

Entrevista realizada por Aloisio Milani e Fabio Maleronka Ferron
no dia 13 de maio de 2010, em São Paulo.

Para assistir esta entrevista em vídeo:
https://producaocultural.procomum.org/2010/08/11/ruy-cezar/

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