Entrevista completa com Nelson Motta, para o Produção Cultural no Brasil

Jornalista, compositor, roteirista, letrista, produtor musical, escritor. Mais difícil do que listar as tantas atividades que desenvolve é saber em qual delas ele se sai melhor. Paulistano radicado no Rio de Janeiro, Nelson Motta comeu e respirou música ao longo de toda a vida. Paixão tão contagiante que foi convidado a se tornar produtor musical sem nunca ter feito produção antes. Topou.

Aprendeu o ofício com sua sensibilidade. “Como passar para os músicos o que você quer, sem impor, sem ser tirano, mas sendo firme?”, recorda, sobre a encruzilhada que precisava resolver para ser bem-sucedido. Construiu tamanha reputação que, em um certo momento da carreira, pode lançar uma jovem cantora quebrando paradigmas do mainstream fonográfico. Era Marisa Monte.

Se é um “dinossauro” do meio, Motta passa longe de ser um conservador. Ao contrário, é um entusiasta ferrenho das novas tecnologias para a visibilidade das artes. Ele lembra que, até há pouco tempo, só as gravadoras dispunham de estúdio de gravação. “Hoje você faz um no banheiro de sua casa.” Mas faz a ressalva: “Tecnologia é que nem droga: não dá talento a quem não tem.”

Nelson, que caminhos sonoros te fizeram um produtor musical?
Sempre gostei muito de música. Mas me apaixonei mesmo com João Gilberto. Aí eu quis aprender a tocar violão. Mas é uma paixão não correspondida: a música não se apaixonou por mim. Não tenho talento musical. Tudo que eu conseguia com música era com muito esforço. Aprendi bastante com Roberto Menescal, quando eu tinha essa ideia fixa de música, isso no começo dos anos 60, uma insanidade. Fui fazer design na Escola Superior de Desenho Industrial. Sempre ligado à música, mas decidido a ser designer. No terceiro ano, eu tinha um professor de português que ensinava os designers a escrever, a redigir seus projetos. As aulas eram maravilhosas. Ele falava de literatura, de novo jornalismo, fiquei louco com tudo aquilo. Esse professor era o Zuenir Ventura. E no último ano da faculdade de design, fui trabalhar em jornal, um estágio no Jornal do Brasil, e acabei largando a faculdade. Então, como um jornalista iniciante, um estagiário, eu tinha um grande background de música. Além disso, eu conhecia pessoalmente todos aqueles artistas. Rapidamente fui para o caderno de cultura. Depois passei a crítico de música. Tinha 21 anos, por aí – e tinha também uma coluna de notícias. E, em 1968, nesse ano fatídico, minha vida pessoal também foi uma revolução. O André Midani – que era amigo dos meus pais – voltou do México, onde tinha trabalhado em gravadora, e me chamou para ser produtor de discos. Eu nunca tinha produzido disco na minha vida. Meu conhecimento era o de um músico precário e a minha vivência da música ali em volta. Aí eu larguei o jornalismo para produzir discos. Houve uma mudança muito grande. Eu tinha só uma visão, a visão do crítico. Eu queria o melhor e o meu padrão sempre foi de muita exigência, porque eu sou “filho” de João Gilberto. Então, essa geração do grande jazz americano, do João Gilberto, do Tom Jobim, da bossa nova, não era música para criança. Quando você entra no estúdio e tem que produzir o disco, tem que encarar vários outros fatores.  Primeiro, o relacionamento humano com os músicos no estúdio. Eu falei, apavorado: “Meu Deus! O que é que eu vou fazer aqui?” O primeiro disco que eu produzi foi da Joyce, ela estava começando. Vamos chamar quem? Wilson das Neves, na bateria, o Luizão, no baixo. Daí eu estou lá no estúdio com aqueles músicos todos. Como saber o que você quer, e como passar para os músicos o que você quer, sem impor, sem ser tirano, mas sendo firme? Você não pode ser enrolado. Os caras dão um nó no teu rabo ali, se fazem duas, três perguntas e você não responde direito. Então, essa parte é fundamental. E eu acabei me dando bem nessa parte, mais do que um dom musical, eu tenho um talento inato de relacionamento pessoal. Nesse sentido, sou muito habilidoso. Fui desenvolvendo um jeito, um estilo de lidar com as coisas, e aprendi muito com isso, porque o que interessa é o resultado. Se eu estiver no estúdio, e tiver que pedir desculpas para que a coisa saia como eu quero, vale. Se tiver que soltar os cachorros, também vale. Mas acho que o segredo da história é você primeiro ter claro o que você quer, depois saber pedir, fazer um clima, como um técnico de futebol. Ali você exerce um papel parecido, na dinâmica da gravação. Isso depois de cinco, seis, oito horas de gravação, e, às vezes, a mesma música. Aprendi também que você não fala na frente de todo mundo. Você chama o cara: “Ó, você é maravilhoso, é o músico da minha vida, mas esse pedaço aqui não foi legal”. O cara reconhece sempre, em uma boa: “Certo, desculpe. Vamos lá”. Se você chega no meio de três pessoas e fala: “Pô, cara, você errou a letra”, o outro vai dizer: “Eu não, não errei.
Você está ouvindo errado”. Aí começa. O pessoal não gosta de testemunhas dos seus eventuais erros. Vou usar todas as táticas para conseguir o resultado que eu quero daquilo, que eu estou sendo pago para aquilo.
Passei a ver que a música era um dos elementos do disco, que várias outras coisas entravam. A imagem é fundamental, além de outros fatores. Entender que aquela música é um produto, para ser vendido para um público. Então, ali eu passei a ter uma visão por outros ângulos, foi uma experiência muito enriquecedora. A minha formação de produtor de disco tem essa base teórica, de um aprendizado musical, da crítica, e depois a prática de estúdio, em condições ultraprecárias. A gente gravava em estúdio de quatro canais. Hoje, na minha casa, tenho muito mais recursos do que no estúdio que eu gravava com Elis Regina, em 1969. Meu laptop tem muito mais do que aquilo.

Levando em conta o estúdio, o resultado final, o artista, qual foi sua melhor produção?
Tenho dois discos muito especiais, que se tornaram históricos. É o disco de 1969, Em pleno verão, da Elis Regina, que é o que tem As curvas da estrada de Santos. É um dos maiores discos da, talvez, maior cantora. E foi um disco trabalhado em condições ideais, com os músicos que a gente queria. E por incrível que pareça – é bom que se grave isso, senão, ninguém acredita – nós gravamos durante dois meses com a Elis Regina, sem um grito, sem um bate-boca, sem barraco, sem nenhum tumulto, em um clima de paz total. Isso influi na qualidade do disco, porque o clima no estúdio foi tão harmônico. Era a fina flor dos músicos: Toninho Horta, Antônio Adolfo, Wilson das Neves, Luizão, Azymuth, Zé Roberto, todo mundo tocou nesse disco. Arranjos do Erlon Chaves. Então, isso tudo foi essa harmonia toda, e passou para o produto final. Foi um grande sucesso popular, um sucesso crítico extraordinário, e marcou a mudança no rumo da carreira da Elis. Ela gravou Roberto Carlos pela primeira vez – Se você pensa tinha nesse disco. Ela gravou uma música inédita do Gil, e outra do Caetano, que mandaram de Londres para ela – eles estavam brigados por causa do tropicalismo.
E o primeiro disco da Marisa Monte, de 1988, que aí foi ao contrário. Eu tinha já 42 anos –20 anos de disco, de jornalismo, de crítica, de composição musical, de televisão também. Aí me vi com aquela garota de 19 anos, com uma puta cultura musical – ela sabia tudo de Chiquinha Gonzaga, de João Gilberto, de Vicente Celestino, de Cartola, e ao mesmo tempo era ligada na geração dela, de Renato Russo, de Cazuza, de Paralamas. Queria ser cantora de palco e tinha verdadeira idolatria por Maria Callas. Ela falou: “Não quero fazer disco. Não quero fazer sucesso. Não quero ser rica e famosa. Quero cantar em um palco. Quero ser uma grande cantora de palco”. Esse era o objetivo dela. Ela era uma garota de classe média, que morava muito bem com a mãe e com as irmãs. Não tinha problema de dinheiro, de correr atrás. Porque muitas vezes o pessoal acaba fazendo concessões em um disco, porque tem um segundo emprego, um terceiro. Marisa tinha essa condição ideal e estava disposta a fazer isso. Então, nós começamos um trabalho. Eu falei: “Vou usar com essa garota tudo que eu aprendi de disco, de show, de marketing, de crítica, de televisão. Não vou fazer a menor concessão, a mais mínima, e de lado nenhum”, porque essa era a posição dela também. “Vou fazer desse disco como se fosse uma tese de mestrado. Vou usar tudo para fazer um disco como deve ser feito, como eu acho que deve ser feito, com todo respeito”. E como é que se faz?
Primeiro, seleciona-se o repertório. Ficam-se dois meses ouvindo, discutin do os discos, milhares de vinis, escolhendo as músicas. Depois disso, arranjamos um pianista jovem, um garoto, que começamos a passar com a Marisa as músicas para ver quais ela gostava, e as músicas que gostavam dela também. Quando já estava tudo mais ou menos selecionado, chamamos um baterista, depois um baixista, foi formando a banda e ensaiando, ensaiando, ensaiando, ensaiando. Começamos um show em um lugar de 200 pessoas, no Rio. Duas noites, sucesso espetacular. Na terceira noite, manchete de jornal: “Nasce uma estrela!”. É óbvio, é um clichê, mas foi a manchete do Jornal do Brasil do primeiro show da Marisa. E aí fomos para um teatro um pouquinho maior, em Ipanema, depois outro, e assim foi indo. A repercussão da Marisa foi no boca- a-boca.  Vetei marketing, badalação, entrevistas. Quer dizer, criou mais mistério ainda. E assim ela foi indo por lugares maiores. De repente, ela teve um chamado, veio para São Paulo. “Pô! Como é que a gente vai fazer a Marisa em São Paulo? Quem conhece a Marisa? A menina não tem disco gravado, não dá entrevista…”. Lotado! E assim foi. Mais shows no Rio. Sempre lotados, sem um anúncio de jornal, sem chamada de rádio, nada. Fizemos até Belo Horizonte, no Cabaré Mineiro, também lotado em duas noites.
Quase um ano depois, a Marisa já estava fazendo shows em teatro de mil lugares, sem disco e sem entrevistas. Daí começaram umas pequenas materinhas, aí eu falei: “Não, segura mais”. Ela falava o mínimo. E o repertório foi feito como? As pessoas ficaram perplexas: “Porra! Não pode! Ela tem música do Waldick Soriano, do Philip Glass, do Caetano Veloso, do Peninha, do Renato Russo. Tem Carmen Miranda, tem uma coisa dos Mutantes, tem o Negro gato, da jovem guarda. Quem é essa garota?”. Era “cantora eclética” – não fui eu que inventei essa besteira, mas era o que as pessoas diziam, o rótulo do não- rótulo. Claro que ao longo desse projeto, tirou-se uma música, acrescentou-se outra, mudou o arranjo. Depois de um ano cantando isso, eu falei: “Ela está pronta”. Ela podia cantar essas músicas no escuro, sozinha, de memória. Aí sim, fizemos três shows no Rio de Janeiro e gravamos o show ao vivo. Um absurdo também porque nunca um artista novo faz ao vivo, mas eu estava tão  seguro da segurança da Marisa, que fez ao vivo. Geralmente, o primeiro disco é sempre em estúdio por todos aqueles cuidados, para falsificar ao máximo, ajeitar, afinar. Ali não, ali era ao vivo. E assim foi. Filmamos um especial também em que dirigi com o Walter Salles e com o Jayme Monjardim – ele não era ninguém nesse tempo, mas já era talentosíssimo. Então, esse show, que seria um DVD hoje, o show ao vivo, era um especial de televisão, que foi exibido na TV Manchete, antes de lançar o disco. Assim foi a Marisa: tinha um especial inteiro de televisão, sem ter disco lançado. E foi um sucesso. O primeiro disco  da Marisa Monte é um disco de cover e versões. Mas ela deu interpretações     tão pessoais àquelas músicas do Peninha, do Caetano, do Waldick, do Philip Glass, e cantava coisas muito diferentes, como Gershwin e Zé Keti.
Para culminar, decidi lançar o disco em janeiro. A gravadora ficou de cabelo em pé, enlouquecida, porque os discos saem todos no final do ano, para o Natal, aquela conversa de sempre. Mas se você sai no fim do ano para pegar o Natal, você também vai brigar com Roberto Carlos, com Ivete Sangalo, com Sandy e Junior. Eu falei: “Vamos sair em janeiro que aí a gente sai sozinho”. Diziam que janeiro é a morte do disco. Saiu em janeiro e até junho tinha vendido 500 mil discos. Marisa Monte teve páginas e páginas de jornal, porque não tinha assunto nenhum em janeiro, ninguém está lançando disco, ninguém está lançando show, nada. Então, eu contrariei: fiz tudo como deve ser feito na parte do conteúdo e, no lançamento, fiz tudo que não deve ser feito, que é tabu no disco.

É possível pensar em uma produção com esse nível de detalhamento hoje? Quem poderia fazer algo assim?
É muito difícil isso. Houve uma série de fatores muito favoráveis para um produtor experiente e uma artista nova. A gente não tinha compromisso nenhum. Nunca se falou: “Vamos fazer um disco”. Claro que em seis meses estavam todas as gravadoras em cima da Marisa. Mas não conversei com ninguém. Ainda não estava pronto. Depois escolhemos uma proposta, que nem era a melhor financeiramente, mas era a que nos dava tudo: a grana para filmar o especial com o Waltinho e lançar o disco quando a gente quisesse – claro que sem nenhuma interferência no repertório todo. Foi com a EMI. E foi ótimo: eles cumpriram a parte deles, nós cumprimos a nossa, e todo mundo se deu bem.

 E o que você acha da internet?
Ah, eu adoro, confesso. Isso mudou muito a minha vida. Para uma pessoa que lida com palavra, com escrita, com imagem, com música, uma caixinha que arruma tela e tem tudo isso junto… nem nos sonhos mais delirantes! Eu sempre li muita ficção científica quando eu era adolescente, nos anos 50, 60, e tinham as coisas mais loucas das invenções mais futurísticas, viagens espaciais, naves. Nunca ninguém falou de uma caixinha que abria e tinha uma tela e tudo, porque seria totalmente inverossímil. Seria impossível explicar logicamente o funcionamento daquilo. Isso é o sonho da minha vida, porque eu posso trabalhar em casa, o dia inteiro, eu tenho acesso a todas essas possibilidades.  Que no meu caso se integram. Quer falar de livro também na internet?

Sim. Você se tornou escritor e já lançou livro digital também…
Até no conteúdo, na linguagem, na escrita mesmo, quando você vai escrever, isso mudou muito da máquina de escrever para o computador, no meu caso. Conselho a jovem escritor: “Põe um corpo de letra grande na tela do computador, deixe as palavras enormes. Aí você vê o verdadeiro peso da palavra e deixa de escrever muita besteira”. Porque se você põe um texto com aquela letrinha pequena, você vai lendo, passa meio batido aquilo. Drummond dizia que escrever é cortar palavras, tirar esses excessos todos. Quando você escreve tudo com letra grande, percebe: “Meu Deus! O que é isso? É uma repetição do que já está antes”. Eu vejo claramente. Então, até essa parte gráfica, visual, influencia muito o resultado final da minha escrita, para melhor, no caso. Mas voltando à internet, que no caso está estreitamente ligada à minha vida de músico e de escritor. Morei nos Estados Unidos, de 1992 a 2000, justamente no boom da internet. Morei em Nova York em uma época em que as primeiras coisas chegavam lá, época de grande prosperidade. Acompanhei a guerra das gravadoras americanas com o Napster, com tudo. Acompanhei aquilo indignado, enfurecido. Porque se essa associação das gravadoras americanas, a RIAA [Recording Industry Association of America], tivesse poder e lobby para isso, eles teriam conseguido parar a evolução da tecnologia da informação para proteger o deles. Era um nível de mafiosos, de bandidos, uma formação de quadrilha. E eles se deram mal porque trataram todas as trocas de arquivos como piratas, como bandidas.
Para todos os garotos que eram aliados deles, na época, as gravadoras davam fitinha cassete, em todas as universidades, para copiar, distribuir, que era o que fazia sucesso. Aí, o cara dar a fita para o amigo copiar é legal, mas o cara mandar a mesma música por e-mail é pirata, bandido, ladrão. É uma estupidez enorme. Então, resultado: eles perderam dois, três anos. Podiam ter feito um acordo com o Napster, ter um catálogo, um mailing list de 70 milhões de nomes, sabendo que o cara gosta de reggae. Aquele é preto, de 25 anos, gosta de rock; aquele é branco, 17 anos, gosta de High School Musical. Eles atrasaram loucamente esse processo, que desde o início se via que seria inevitável. Aquelas coisas ridículas que a EMI fez, que lançou uns discos, no Brasil, com uma marca para não piratear. Você não podia botar no seu iPod. Então, o cara que compra o pirata é mais beneficiado que você. Você paga, você é honesto, e você é castigado. Quer dizer, estupidez é pouco para essa gente. A indústria do disco fez erros clamorosos na condução disso.

E agora, 10 anos depois do Napster, o que você acha que é?
O futuro é luminoso, sempre foi luminoso. Hoje mesmo, o Black Eyed Peas completou 5,5 milhões de downloads pagos. Isso é vendagem do tempo de Madonna, Michael Jackson, do pop, do delírio dos anos 80. Então, essa transição está se processando rapidamente. No Brasil, é diferente, mas no mundo…

Hoje, as gravadoras estão em crise e a internet criou novas formas de consumo. O que determina a carreira e o sucesso de um artista em comparação com o passado?
O sucesso muitas vezes depende de fatores fortuitos. Têm muitos sucessos que aconteceram na época que aparentemente não tinham motivo nenhum. Fez aquele sucesso e acabou, nunca mais voltou à vitrine. São incontáveis casos desses. E outros que construíram uma carreira. E muitos até que nunca fizeram grandes sucessos e construíram uma carreira. A carreira é um sucesso que não é feito de pequenos sucessos individuais. Hoje há muito mais possibilidades de você desenvolver uma carreira. Primeiro, porque você tem uma possibilidade de gravação acessível, barata. Antigamente, só as gravadoras tinham estúdio. Nem se você tivesse dinheiro, você podia alugar um estúdio. Hoje em dia, não tem estúdio nem para alugar. Então, hoje em dia, você faz um estúdio no banheiro da sua casa, e faz como Ed Motta, como Max de Castro: grava todos os instrumentos do seu disco, canta, dança, representa, produz sozinho, em casa. Isso é uma possibilidade maravilhosa para um músico de talento. Às vezes, eu penso: “Meu Deus! Imagina se o Tom Jobim, com 22 anos, tivesse tudo isso à disposição dele, com o talento dele”.

O que você conclui quando pensa isso?
Eu falo: “Isso é papo de doidão, cara”. Porque tecnologia é que nem droga, não dá talento a quem não tem. Hoje há essa possibilidade de você ter um grupo de amigos, de pessoas que estão interessadas em Michael Jackson, ou em jazz de Chet Baker. As pessoas hoje estão se unindo mais por afinidade do que por proximidade, ou nacionalidade, ou etnias, ou coisas estúpidas. Para as pessoas que gostam de heavy metal, tanto faz se o cara é búlgaro, baiano, paraguaio. Os caras gostam daquilo e pronto. Isso está juntando as pessoas. João Gilberto falava assim, sobre como se promover, fazer publicidade: “Informar corretamente as pessoas interessadas”. Pronto. Parece uma obviedade, não é? Ora, grande sabedoria! Tem que informar corretamente: “O cara faz isso. O show dele é esse lá, em tal lugar, às tantas horas, e custa tanto, e você vai ouvir esse tipo de música”. Essa possibilidade multiplicadora, instantânea, que tem hoje, é maravilhosa. Dez pessoas falam para 100, de 100 falam para mil, de mil falam para 30 mil. De repente, você está com uma base.

O que foi fazer produção musical em tempos de ditadura e de discussão sobre o jabá?
Essa discussão do jabá sempre existiu e sempre vai existir. Faz parte da condição humana, do lado escroto que a gente tem, desse lado aproveitador que vai ter sempre. Não é meu, não é seu, mas sempre vai ter gente disposta a fazer esse papel por dinheiro. Então, o jabá está mudando só nas formas. E o jabá também não tem essa eficiência que as pessoas atribuem. Tem que ter uma grana tão monstruosa para ter um resultado tão pifiozinho… Se ele começa a levar dinheiro de qualquer coisa e botar qualquer porcaria na rádio dele, ele perde a audiência e perde o jabá. Então, tem esse equilíbrio. Depois tem o outro lado: como tem várias músicas e artistas competindo entre si, e todos estão pagando jabá, a tendência é que eles se anulem. E tem até o caso, que todo mundo sabe, no Brasil, de um famoso jabazeiro que se dava ao luxo de dizer: “Só leva jabá e só toca o que eu gosto”. É uma contribuição brasileira ao mundo do jabá. Nos anos 50, o jabá fez um escândalo enorme nos Estados Unidos. Vou dizer uma coisa: o dinheiro é viagem, é mulher, é droga, é todo tipo de sacanagem, que nêgo pode fazer por lobbies. Eles fazem, aceita quem quer.

Qual o maior produtor cultural que você já viu atuar?
Não sei. Fui formado pelo André Midani, que era a maior lenda viva da indústria do disco, no Brasil, além de ele ser um querido amigo. Na verdade até parente, já que o filho dele é casado com a minha filha. Mas tem o Barretão [ Luís Carlos Barreto] também, um trator. E cinema é barra pesada, porque aquilo exige um volume de recursos, de mobilização, muito maior do que um disco, um livro. Trabalhei anos e anos na TV Globo com dois grandes pesos pesados: Boni[José Bonifácio de Oliveira Sobrinho], e o Daniel Filho. Trabalhei em várias coisas com o Daniel Filho, muitos musicais, no Armação Ilimitada [1985, TV Globo], que escrevi com o Antônio Calmon e a Patrícia Travassos. O Daniel é um monstro. Quando ele botou na cabeça que ia fazer cinema também, emplacou um filme atrás do outro.

Queria que você falasse sobre dois artistas. Talvez os que marcam duas fases mais conhecidas fora do Brasil: Carmen Miranda e Tom Jobim.
A Carmen Miranda provoca ambivalência. Ao mesmo tempo em que ela era uma caricatura grotesca das piores coisas brasileiras, também era uma síntese das melhores. Ela é um caso complexo. Quanto mais passa o tempo, mais se vê a fabulosa cantora que ela era, a intérprete, as qualidades de cantora dela, o estilo, os compositores que ela lançou. As melhores cantoras têm fascinação pela Carmen Miranda: Elis Regina, Marisa Monte, Cássia Eller, Maria Bethânia, Gal Costa. É um fenômeno único. E o Tom Jobim tem essa profunda brasilidade. Ele vem da linhagem do Villa-Lobos, que foi o primeiro que produziu em grande escala essa integração da música internacional com as especificidades brasileiras. O Tom transportou isso em um plano popular. A música do Tom Jobim também tem sua origem nos impressionistas franceses, Ravel, Debussy, e também no Cole Porter, no grande jazz americano. Ele inovou aquilo totalmente com a linguagem rítmica, melódica e harmônica da bossa nova. Quando a bossa nova apareceu nos Estados Unidos, ela não era muito estranha para o público do jazz. Era um jazz diferente, como já teve o afro jazz, o cuban jazz. A linguagem do Tom Jobim era familiar.
O que eu acho também interessante é que a Carmen Miranda foi heroína e coitada. Ela fez muito pela música com seu talento, mas o ressentimento que os brasileiros tinham do sucesso dela vinha de uma ideologia rasteira. O Tom Jobim também foi vítima disso: “Puxa! O Tom Jobim se vendeu aos americanos”. Quantas mil vezes eu ouvi isso de gente idiota, que não produz um grão de feijão. É um traço de inveja, de mesquinharia.

Você é um escritor em tempos de internet? Como uma coisa se mistura com a outra?
Está acontecendo com o livro agora o processo que aconteceu há mais de 15 anos com a música. É todo esse comércio com os leitores digitais. O mundo editorial é gutemberguiano, é da palavra impressa, do papel, eles resistiram. São antigos, sabe? Mesmo as editoras americanas mais modernas, agressivas, são antigas em relação ao disco. A coisa literária é mais composta, aparentemente pelo menos. Rola muita sujeira ali, mas é mais careta e está começando agora essa transição. Eles aprenderam com os erros da indústria do disco e estão tentando encontrar formatos. Tudo indica que está indo muito bem. O livro que custa R$ 10 na livraria, vai custar R$ 6 para baixar. Acho muito, porque não tem o custo da mídia física.Mas faz parte da negociação. Eu me lembro que na crise do download de música, a Sony falou: “Vou botar faixas para baixar, tudo com preço de US$ 2 por faixa”. Era mais caro do que o cara comprar o disco na loja, uma estupidez. Os livros não chegam a isso, mas essa proporção ainda vai ser muito discutida. Eu, por mim, já há uns dois ou três anos, teria colocado textos integrais de todos os meus livros na internet. Mas a editora não quer nem ouvir falar nesse assunto. Isso foi de uma discussão com o meu amigo Paulo Coelho. Eu estava para lançar o livro Tim Maia – Vale Tudo, e falei: “Se eu pudesse, em seis meses, botava quatro capítulos de cara para as pessoas lerem. Essa é a melhor promoção que pode ter pra um livro”. E o Paulo falou: “Concordo totalmente. Eu já botei”. Isso já há uns cinco anos. O Paulo falou: “Eu mesmo vou lançar o livro tal”, e citou um dos livros dele. Continuou: “Contratei um hacker para pegar o texto e botar na internet o texto integral. Vai ficar uma onda danada, a editora não vai saber de jeito nenhum”. E assim foi. E vendeu feito louco, está vendendo até hoje. No lançamento do Tim Maia, botei quatro capítulos para serem lidos e depois convenci a editora a fazer um hotsite para o Vale Tudo. No livro, eu tinha 30 fotos, e o livro já era caro, grosso. No site, tinham 300, que tudoque eu não pude botar no livro, eu botei lá. Tinha todas as músicas do Tim Maia, absolutamente todas as músicas que eram citadas no livro. O cara podia ir lendo, eclicava e ouvia a música, acessava um monte de vídeos do Tim Maia. São recursos com os quais você conta, que ajudam a criação literária.

Nelson, que dica você daria a um produtor cultural que está começando?
Coragem, coragem! Olha, primeiro é você saber muito bem o que você quer. Se você não sabe direito o que você quer, aí é impossível. Quem quer tudo, não quer nada. Então, você tem que saber o que você quer e correr atrás disso com todos os meios legítimos, lícitos, honestos. Eu fiz tudo para conseguir os melhores resultados com os produtos, nos meus livros, nos meus discos, nos meus programas de televisão, nos meus roteiros de cinema, nos meus programas de rádio. E outra coisa: eu nunca fiz coisa para mim. Meu livro só tem sentido para quem vai ler. Penso nos leitores: “O que é que eu quero dar para esses leitores?”. É o que vai dar sentido ao meu trabalho, ao meu esforço. Eu quero dar para eles o que eu recebo nos livros, porque eu gosto de me divertir, de me emocionar, de me surpreender, de ficar grudado ali no livro. Nem sempre você consegue. A obrigação é tentar.

Entrevista realizada por Fabio Maleronka Ferron e Rodrigo
Savazoni no dia 15 de junho de 2010, em São Paulo.
Versão multimídia: www.producaocultural.org.brPara assistir esta entrevista em vídeo:
https://producaocultural.procomum.org/2010/08/12/nelson-motta-2/

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