Criado na Rocinha, o cantor e compositor MC Leonardo é hoje um dos mais articulados porta-vozes do funk carioca. Filho do forrozeiro Chico Mota, que gravou com Jackson do Pandeiro, conheceu cedo o coco e a embolada. Mas sua carreira coincide com a origem e evolução do funk no Rio de Janeiro. É autor de Rap das Armas, hit nacional do filme Tropa de Elite. Leonardo sintetiza seu mundo cultural: “Dê ouvido ao funk, que voz a gente tem.”
Ele preside a Associação dos Profissionais e Amigos do Funk (Apafunk). “Falam que as favelas do Rio têm facção. Quem tem facção é o crime organizado, não as favelas. A favela sorri, chora, fica tensa. É todo mundo junto”. Sua mobilização conseguiu pressionar os parlamentares fluminenses a reconhecer o funk como manifestação cultural e também a derrubar uma lei usada pela polícia para reprimir os bailes. “Foi a saída do funk da segurança pública para chegar à cultura”.
MC Leonardo postula que, na verdade, a onda do funk poderia ter sido aproveitada de forma positiva pelas autoridades. “O governo devia ter se aproximado, ver o que poderia fazer para a cidade poder lucrar com aquele acontecimento. E não fez.” Ele garante não se chatear com quem diz que o funk é uma cultura feia ou pobre, porque “gosto não se discute”. Mas critica quando falam que o gênero não é cultura. “O funk colocou as favelas dentro do mapa do Rio de Janeiro.”
Leonardo, conta como um filho de repentista se aproxima do funk Meu pai, Chico Mota, gravou com Jackson do Pandeiro. Fui criado no meio do coco, do xaxado, do baião. Até os 10 anos, minha trilha sonora era essa: forró, coco, embolada. Em 1985, com a explosão do samba do bloco Cacique de Ramos, no Rio, começo a encontrar novos tambores, novas batidas com o pagode, quando muitos foram revelados com a ajuda da madrinha Beth Carvalho. Era o que eu ouvia além do forró. Aí surgiu o Funk Brasil [Polydor, 1989], do DJ Marlboro, um disco que tinha a famosa “melô”, em que as pessoas inventavam um refrão brasileiro para músicas estrangeiras. Em 1992, entrei pela primeira vez em um baile funk para curtir. Na segunda, já para cantar. Se a Bahia deu régua e compasso para o Gilberto Gil, para mim deu a papelaria toda. Com a batida do funk, vi que eu tinha condições de colocar tudo para fora, as minhas melodias de infância. Assim, entramos eu e meu irmão na música. MCs Junior e Leonardo. Já tenho 18 anos de carreira e não tem uma capital do país que eu não conheça. Tudo que tenho devo ao funk. E tenho lutado esse tempo todo por um olhar diferenciado da política sobre nossa música. No Rio de Janeiro, ela sempre esteve nas mãos da Secretaria de Segurança Pública. E no dia 1o de setembro de 2009, dia histórico para o funk, a gente conseguiu fazer aprovar dois projetos de lei por unanimidade na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj). Era o reconhecimento do funk como manifestação cultural e também o fim da Lei 5.265/08, usada pela polícia para reprimir o funk. Era a saída do funk da segurança pública para chegar à cultura. O Estado reconheceu o funk como cultura carioca, em caráter musical e pedagógico.
Quando começaram os bailes funk?
O primeiro baile funk registrado foi em 1969. Então, já são mais de 40 anos. Eram os chamados “bailes black”. As equipes de som no Rio de Janeiro tinham uma dificuldade grande de trabalhar, por conta do peso dos equipamentos. Cada área no Rio de Janeiro tinha uma equipe de som: o Morro do Cantagalo tinha a Curtisom Rio; em Niterói, a Duda’s e a Pipo’s; a Furacão 2000 era da zona norte da cidade, da Baixada Fluminense; e assim ficou. O DJ Marlboro, por não ter equipe e ser uma pessoa altamente visionária, com um feeling muito bom para a música, começou a fazer produção no final dos anos 80 e conseguiu colocar o funk no clube Scala e em outros lugares. Em 1995, a gente chegou ao Brasil todo com o primeiro disco de uma dupla de MCs por uma multinacional. Era o “De Baile em Baile” [Sony]. Gravamos o primeiro videoclipe de funk, o Rap das Armas, na TvZero, em que o Roberto Berliner, cujo trabalho admiro muito, estava começando. Foi importante para a gente esse lado profissional do funk. A gente começou a ser chamado de artista e passou a ter um tratamento de artista. Mas o funk é da maneira que é por ser espontâneo, democrático, por ter se colocado à disposição da favela. O funk cabe no bolso do favelado. No tradicional baile funk do Rio de Janeiro, a entrada custa R$ 6, mulher até meia-noite não paga nada. Depois disso, paga R$ 3. Então, essa cultura nunca vai acabar se continuar dessa maneira. É igual ao sol: onde tem espaço, o funk entra! Por conta da proibição [nos anos 90, os bailes foram proibidos pelas autoridades com a negação de alvarás sob a alegação de que promoviam a violência], o funk foi acusado e condenado. O funk nunca foi julgado. Em um julgamento, a pessoa pode se defender. E nunca abriram espaço para nossa defesa. Colocaram muitas coisas na conta do funk do Rio de Janeiro, o que acabou inviabilizando os bailes de continuarem em alguns lugares. Em 1992, os bailes funks só perdiam para as praias no número de frequência, e mesmo assim no verão! Ganhava e ainda ganha do futebol. O governo devia ter se aproximado desse movimento, ver o que poderia fazer para a cidade poder lucrar com isso, mas não fez. Talvez por ser um ritmo jovem, negro e pobre.
O funk ainda procura seu reconhecimento?
A gente tem feito uns trabalhos dentro das cadeias, das universidades, dos colégios, dos espaços públicos de rua, principalmente dentro das favelas, para mostrar às pessoas que o funk tem que continuar. Porém, é preciso que a classe se una para discutir de que maneira vamos fazer essas produções, qual o tipo de responsabilidade que a gente pode reconhecer nas letras, nos estilos, na estética do funk. A gente sabe que toda sociedade, religião, todo grupo no mundo que não respeitou regra se autodestruiu. A gente não quer que o funk se autodestrua. A gente sabe a responsabilidade que tem com o microfone na mão, mas o moleque da favela não sabe. Ele não sabe a responsabilidade dele, não sabe nem dos direitos dele! Como você vai cobrar os deveres da pessoa que não sabe os direitos que tem? O cara que está há 25 anos pintando faixas do tipo “Dia 25, show de fulano de tal”, ele é um propagador de cultura! Ele tem que ser enquadrado, mas ele não sabe nem o que é um edital! Esse é o le- gado das políticas públicas voltadas para o funk do Rio de Janeiro. Mas agora a gente conseguiu fazer uma mobilização com o governo, unir a classe: DJs, donos de equipes, MCs. Aí a classe se une e já chega não só reclamando, mas com as soluções para mudar o quadro. Fundamos a Associação de Profissionais e Amigos do Funk (Apafunk) e conseguimos mobilizar a juventude do Rio de Janeiro, principalmente os gremistas, as galeras dos DCEs, que eu não conhecia também. Há três anos, Grêmio para mim era só o inimigo do Inter (risos). Hoje em dia, a gente sabe que não, que são os diretórios estudantis dentro das universidades. Passei a escrever para a revista Caros Amigos, o que também deu uma visibilidade nacional para a Apafunk. A gente está entrando e saindo das universidades sem nunca ter estudado. A maioria da galera do Rio de Janeiro que trabalha com o funk estudou até a 4a ou a 5a série, não vai saber nem levar um parente para fazer contrato e também nem quer desconfiar muito dele porque sonha com o estrelato.
E existe muito contrato para fazer e tocar funk carioca?
Hoje, são duas grandes rádios no Rio que trabalham com funk: a do DJ Marlboro [Beat FM] e a do Rômulo Costa [O Dia FM]. Com o DJ Marlboro, eu não negocio em branco. O papel é padrão e vai valer a vida toda: ele fica com 96%, eu fico com dois e meu irmão com dois. Já o Rômulo Costa não paga o fonograma. É 100% para ele. Por isso, estou lutando por melhores condições de trabalho. Mas eu sabia que para poder brigar por isso dentro do funk, eu precisava primeiro brigar pela legalidade do funk. Agora que a gente já conseguiu, vai em busca de informação. Nós temos uma cartilha de direito autoral, que conta passo-a-passo, em quadrinhos, o que o moleque tem que fazer depois que ele faz uma música: o que é fonograma, o que é editora, o que é gravadora, o que é copyright. Explica tudo para ele não sair assinando qualquer papel.
E de onde você tira o dinheiro? Das festas, dos bailes?
Pela editora, 25% para ela e 75% para o artista. E do show também. Mas eu me nego a fazer parte desse mercado, que eu sei que show é imediatista e música é para a vida toda. Você consegue saber o valor de uma casa, de um carro, de uma roupa, mas de música você não sabe. Agora a gente está conhecendo o direito autoral, recebendo pela execução. São quase 40 países tocando o Rap das Armas. Estou descobrindo como essa arrecadação é feita e participando de alguns fóruns. A Apafunk é isso, é levar para dentro da favela a discussão sobre o que a gente quer, de que maneira a gente está querendo negociar as nossas músicas.
Conta um pouco sobre a letra do Rap das Armas. Qual sua mensagem?
É uma homenagem à Rocinha. Ela começava assim: “Morro da Rocinha, área de lazer / onde você sobe não quer mais descer / do alto vê o visual / só não dá para ver nosso vizinho Vidigal / vê Copacabana, Leme, Arpoador / vê Pão de Açúcar e o Cristo Redentor / Niterói, Ipanema, Gávea e Leblon / Parque da Cidade, Pavãozinho e o Pavão / vê o Cantagalo, Morro do Corcovado / Pedra da Gávea, Favelinha e São Conrado / do Clube do Flamengo vê uma boa parte / Lagoa, Golf Cub, Jockey, Tivoly Park”. Esses versos nunca foram adiante. Era uma brincadeira, e a gente cantou isso uma vez no alto do Morro do Vidigal. Um moleque virou para mim e falou: “Cara, agora bota umas armas nessa música que a melodia está muito legal”. A gente colocou como uma crítica: “Meu Brasil é um país tropical / a terra do funk e a terra do Carnaval / o meu Rio de Janeiro é um cartão postal / mas eu vou falar de um problema nacional…”. E logo depois disso, como acontece muito com o funk, as pessoas pegaram essa melodia, e começaram a cantar outras coisas. O MC Cidinho e MC Doca pegaram a melodia e fizeram uma versão: “Morro do Dendê é ruim de invadir…”. Virou o tal “proibidão”. O “proibidão” é reflexo do que aconteceu com o funk esse tempo todo. O funk foi segregado. Cobrar do funk puritanismo é hipocrisia. Quem é puro? Por que cobrar que o funk seja politicamente correto e, pior, cobrar que o funk tenha responsabilidade social? Qual é o ritmo no Brasil que tem responsabilidade social? Você vai cobrar responsabilidade social de uma classe que não sabe nem o que é isso? Cobrar isso do funk é como deixar uma criança viver sozinha e, 18 anos depois, falar: “Você não está falando direito, não está se vestindo direito”. Ninguém de fora teve qualquer participação naquilo! A política não tem influência nenhuma. O funk movimenta de R$ 10 milhões por mês, segundo pesquisa feita pela Fundação Getúlio Vargas [FGV Opinião, divulgada em janeiro de 2009]. Emprega 10 mil pessoas e tira três milhões de pessoas de casa. Tudo isso sem incentivo nenhum!
Como colocar incentivo e não perder isso?
É se aproximar e ver que o funk não precisa de muita coisa. O funk está ligado ao crime porque é isso que cerca o funk dentro das favelas. A favela é cercada por um câncer. Falam que as favelas do Rio têm facção. Quem tem facção é o crime organizado, não são as favelas. A favela sorri, a favela chora, fica tensa. Na favela é todo mundo junto. A gente corta a cebola e é o vizinho que chora, ficou todo mundo muito colado, então há um sistema de vivência ali, de aceitação do próximo e de participação na vida do outro. Maior do que em qualquer outro local. O funk está no meio da rua de uma favela. Está em todas as idades e todo o comércio da favela lucra com o baile funk. Você precisa ensinar às pessoas o que é incentivo.
Essa pesquisa da FGV, feita entre 2007 e 2008, mostra que quem mais fatura na cadeia produtiva do funk é o MC, ganhando em média R$ 4 mil por mês. Como é isso?
Eu discordo dessa média. Aliás, da média não, mas de como ela foi feita. Para chegar a um número que seja mais ou menos aceitável, essa pesquisa deveria ter durado mais, porque, nessa época, o MC Créu estava vendendo show a R$ 35 mil e hoje em dia não está mais. Sem falar em quem está chegando… Eu mesmo não ganho essa quantia. E os bailes no Rio de Janeiro têm a coisa das editoras e das gravadoras. Ou seja, o cara que toca a minha música na rádio é o mesmo que é dono da editora, da gravadora, e que vai vender o meu show. Isso está errado. Ele é produtor. Quer dizer, produz, toca e vende. Você fica preso a um escritório e ele te dá um contrato padrão para assinar. Negocia arte como se tivesse comprando um telefone celular. É um contrato de adesão sem que haja negociação. É impossível que quem canta ganhe mais dinheiro. Porque não é só o show a entrada do baile. Tem todo um processo por trás. Quando a gente fala na informação, no incentivo, a gente não está falando só de cultura. Entra no campo de políticas públicas. O cara vai fazer o projeto e apresentar para quem? Ele vai saber o papel do Ministério da Cultura? A diferença da Secretaria de Cultura para o Ministério da Cultura? Qual é a diferença do deputado para o senador? O cara não sabe. Os setores de produção cultural do Brasil têm que se unir. E eu sei que, pelo tamanho do funk, não pode ter só uma associação, mas a Apafunk abre caminho para isso. O povo do Rio de Janeiro curte o funk. O produto do Rio hoje é a sensualidade. Mas os moleques começam a falar muito palavrão nas músicas, aí não dá para a vizinha ouvir, a senhora vai ficar assustada… Só que existe uma quantidade imensa de MCs falando de tudo: da dengue, da chuva, do barraco que está caindo, da menininha bonitinha que ele está a fim de namorar. As músicas românticas do Rio de Janeiro são lindas. Em qualquer lugar do mundo que colocar o tamborzão do funk, vão falar: “Música eletrônica brasileira”. E aqui o pessoal fica falando: “Funk não é brasileiro, isso é coisa lá de fora”.
Existe relação entre a batida do candomblé e a do funk?
Isso que a gente faz é a continuação da senzala. Aquele passinho do Rebolation passou pelo funk. O pessoal começou a dançar funk com o frevo no Rio de Janeiro, pezinho para lá, pezinho para cá, e foi para o Nordeste com o Rebolation. Agora, já está em outro canto. É a cultura dando os seus empurrões e dizendo: “Quero estar aqui também”. A gente tem vontade de fazer coisas com o Olodum, inclusive.
Estão gravando com o Olodum?
Estamos tentando uma ligação com eles para a Copa do Mundo. Aliás, veio deles para gente. A ideia era gravar lá no Pelourinho e trazê-los para fazer umas imagens nas favelas do Rio tocando funk, como a gente fez com o Monobloco. Aliás, com o Monobloco foi mágico, porque aquilo ali foi a quarta ou a quinta vez que a gente estava tocando, não houve muito ensaio. Pedro Luís chegou para a gente e falou: “Quer fazer parte do nosso DVD?”. Eu falei: “Quero”. Os caras começam a bater lá na mesa mesmo, dali a pouco juntou todo mundo, fizemos umas três vezes, fomos para o show e virou o que virou. Quando o Flamengo fez 100 anos, a gente fez um rap que falava: “Vai Flamengo, balança a rede do adversário”. Aí por esses dias encontrei meu pai com a sanfona. O cara começou a tocar o Rap do Centenário na sanfona e virou um forrozão. Eu vim da educação musical do coco e dava para falar mil coisas naquela batida. Hoje, o funk diminuiu um pouquinho o beat, mas tudo cabe: o Hino Nacional, Bolero de Ravel, 6a Sinfonia, tudo. Essa é a riqueza do funk. Qualquer ritmo brasileiro pode tentar fazer alguma coisa com o funk, até mesmo o rock. Gravamos com o Tihuana e foi muito louco cantar Rap das Armas com bateria e guitarra. Estamos dispostos a descobrir novas coisas, a gente tem que abrir. Digo assim: “Produtores musicais do Brasil todo, cheguem no funk e usem!”.
Você vê essas versões do funk por outros músicos de forma interessante?
Sim. A gente gravou agora com a Fernanda Abreu uma participação no show do Lulu Santos, teve essa ligação aí com o Tihuana… E, veja, o Buchecha cantou com a Ivete Sangalo, o MC Leozinho com o Roberto Carlos e assim vai. Entrevistei há pouco tempo o Afrika Bambaataa [considerado um dos fundadores do hip hop]. Ele falou: “O único lugar que tem baile funk no mundo é no Rio, então ninguém pode te proibir de usar esse nome”. Ele contou como botou o nome de hip hop no som que tinha feito e lembrou que o James Brown gostou e aceitou aquela música eletrônica. Enfim, quando o som do Afrika Bambaataa chegou em Miami, ele encontrou filhos, netos e bisnetos dos negros, os filhos dos latinos, que pegaram aquela batida e começaram a transformá-la. Quando esse som chegou ao Rio de Janeiro, ele foi abraçado por quem? Pelos filhos dos negros, dos netos e os bisnetos dos negros, e dos imigrantes. No mundo todo, o hip hop se ajeitou, conseguiu se propagar com o mesmo povo, com as mesmas características: negro, pobre, periférico.
E como o funk tem ultrapassado os limites do Rio?
Se a gente tivesse que arrumar um segundo Rio de Janeiro no funk, seria Santos. Em terceiro, o Espírito Santo. Em Minas Gerais, há também muitos MCs. O incrível é que eles ficam sempre ligados no que está acontecendo no Rio. Tem um moleque novo, que está fazendo muito sucesso, chamado Romeu. É carioca. Ele não estava conseguindo arrumar nada por aqui e foi para Juiz de Fora. Fez seu público lá, conseguiu produzir sua música e hoje é o primeiro lugar na rádio no Rio de Janeiro – contando a história de um garoto que largou o crime por amor. Uma história com começo, meio e fim. Isso é uma coisa que estava faltando no funk carioca e agora está voltando. Os moleques pedem para cantar quando a gente abre o microfone. Todo mundo no Rio de Janeiro tem uma música de protesto, uma música romântica, ou uma música engraçada que é muito bonita, mas fala: “Não, eu prefiro fazer isso aqui porque o que o mercado está querendo é isso”. E o mercado é meio perigoso, porque entra na tal “monocultura”. Todo mundo fazendo a mesma coisa, tudo muito igual.
E Norte e Nordeste?
Continua comprando muito show. Fizemos oito cidades no ano passado. Até Cruzeiro do Sul, no Acre. Estava com o maior medo ao descer do avião: “O que estou fazendo aqui? Será que alguém está ouvindo funk aqui?”. Uma cidade de 20 mil habitantes, com quatro mil dentro do clube (risos). O funk está na Oktoberfest, na Festa do Peão em Barretos, em tudo quanto é festa. E aí é o paradoxo. Não fico chateado com quem diz que o funk é uma cultura feia ou pobre, mas fico chateado quando falam que não é cultura. Porque gosto não se discute, não é? O que não pode é falar que não é cultura. É expressão que tomou conta da inauguração da Daslu e da festa de casamento de empresário famoso. O filho do governador do Rio de Janeiro gosta muito. O funk está em todos os lugares. Para ajudar, tínhamos que fazer o inverso: chamar todo mundo que trabalha com o funk e dar uma aula de produção cultural, sobre direitos e deveres…
Você diz isso para contrapor a repressão ao funk?
Lá no Rio, a gente conseguiu espaço depois de muita batalha. O hip hop de São Paulo, por exemplo, está aí há muito tempo e não tem tanto lugar para tocar. A polícia chega para invadir a favela e dá tiro nas caixas de som. Mesmo que seja o crime pagando aquele evento, não tem que dar tiro em caixa de som. Ninguém está tocando em boca de fumo porque quer. O cara não quer estar ali: ele está ali por uma questão de sobrevivência. E outra coisa, o tráfico não precisa pagar baile funk. Uma equipe de som custa R$ 4 mil. Tem artista de ponta que canta de graça na favela, mas a produção dele custa R$ 40 mil. A Rocinha tem 1.200 estabelecimentos comerciais e, se cada um der R$ 3, dá para fazer um baile funk. Se existisse entrada ia ser isso também: R$ 3 ou R$ 4. Mas estão acabando com os bailes. A Rocinha ainda tem um dos bailes mais antigos do Rio de Janeiro, mas, na Cidade de Deus, que tinha quatro bailes por final de semana, acabou. A polícia ocupou o espaço. É o que tem acontecido agora com as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs). Só penso que a polícia tem que estar dentro da favela como parte de um programa. Ela não pode ser “o” programa, porque quando ela é isso, ela esquece a produção cultural de lá. Todo mundo na mídia ligou o funk ao crime, mas isso está na cabeça dos coronéis da polícia.
E qual a proposta de mobilização do funk carioca?
A gente está se organizando. Junto a políticos que nos apóiam, também procuramos o procurador-geral de Justiça do Rio de Janeiro e o Ministério Público para falar que a legislação atual fará com que o funk deixe de ser democrático. As leis para a realização de eventos obrigam a ter estacionamento para 100 carros e muitas outras coisas. A favela não consegue. E mais: o funk não exige que eu tenha todos os dentes da boca, que eu seja bonito, sarado, novo, velho, branco, preto. Temos um leque de artistas muito diferentes um do outro e não podemos elitizar. Hoje, para o moleque da Cidade de Deus, o local que toca funk que está mais perto é o São Nunca, na Barra da Tijuca, que custa R$ 100 para entrar. Uma cerveja custa R$ 14 e ainda é longe da casa dele. É muito dinheiro para curtir a noite!
Quais são as músicas fundamentais na história do funk?
Primeiro o Feira de Acari, do MC Batata: “Numa loja na cidade eu fui comprar um fogão / mas me assustei com o preço / e fiquei sem solução”. Depois veio o Rap do Pirão, com o MC D’Eddy: “O alô Pirão / alô alô Boa Vistão / vem pro baile meu amigo / vem com amor no coração”, que deu início a essa galera toda aí. Logo depois do D’Eddy veio o MC Galo. Comecei a cantar por causa dele. Se eu tivesse nascido na Paraíba, com certeza eu seria vocalista de uma banda de forró. Porque é a música que me emociona, música de protesto. O forró é um dos ritmos que mais protestou neste país e eu sempre me identifiquei com aquela maneira do Luiz Gonzaga falar, de mostrar para o mundo o que era o pau de arara, a seca, a fome. E o moleque da favela estava explicando para o Brasil todo o que era uma favela. Quando a gente chegou, a gente veio com Endereço dos Bailes: “Aqui no Rio tem mulata e futebol / cerveja e chopp gelado, muita praia e muito sol”. Já era uma renovação ali, porque a gente estava com a melodia pronta, estava com uma coisa bem carioca mesmo, de falar não só das favelas, mas dos clubes. “Vem Clube Íris, vem Trindade e Pavunense / Vasquinho de Morro Agudo e o baile Holly Dance”. Detalhe é que muitos desses bailes eu nem cheguei a conhecer. E o grande Rap da Felicidade, internacionalmente conhecido. Na minha opinião é o hino do funk. Não tem música do funk que teve o alcance dela: “Mas eu só quero é ser feliz / andar tranquilamente na favela onde eu nasci / e poder me orgulhar / e ter a consciência que o pobre tem o seu lugar…”. E tem gente que fala assim: “Essa música está condenando o cara a ser favelado”. Esse conceito de que a favela tem que acabar é utópico. A favela não vai continuar? As favelas foram vistas como um problema no Rio de Janeiro, quando na verdade ela foi a solução encontrada por quem construiu a cidade e não tinha espaço dentro dela para morar. A solução habitacional, urbanística, encontrada pelo favelado, foi o morro. Ali dentro não tem dinheiro do Banco do Brasil, do BNDES, da Caixa Econômica. No começo dos anos 80, houve alguma melhoria, mas tudo ainda é muito precário. Torço para que esse projeto do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) no Rio de Janeiro dê certo. Mas continuo acreditando que o verdadeiro PAC é quando a gente puder presenciar a existência da Universidade Federal da Rocinha, a Universidade Federal da Maré, a Universidade Federal do Complexo do Alemão. Trazer para dentro da favela os aparelhos da educação. O funk é da maneira que é porque ele foi acessível. Há muita coisa que precisa se aproximar das favelas. O funk pode ajudar nisso assim que conseguir se comunicar de uma maneira mais plural na questão da linguagem, esquecendo o mercado, esquecendo o monopólio. A gente fez a música chamada Tá tudo errado, para tentar colocar no filme Tropa de Elite 2, que fala: “Comunidade que vive à vontade com mais liberdade tem mais pra colher / pois alguns caminhos pra felicidade são paz, cultura e lazer / comunidade que vive acuada, tomando porrada de todos os lados/ fica mais longe da tal esperança / os menor vão crescendo tudo revoltado / não se combate crime organizado mandando blindado pra beco e viela / pois só vai gerar mais ira naqueles que moram dentro da favela / eu sou favelado e exijo respeito / são só meus direitos que eu peço aqui”. E por aí vai…
É verdade que você leu pela primeira vez a palavra “favela” em Os Sertões, do Euclides da Cunha?
Isso. Estava esquecido na cabeceira de uma cama de um hospital. Eu estava todo engessado. Li tudo que me veio nas mãos. E caiu Os Sertões, uma leitura chata demais no começo, mas depois engrena. Mas emoção mesmo de se falar em “favela” foi com o samba do Bezerra da Silva: “Antes, mais antes, aqueles morros não tinham nomes / foi pra lá o elemento homem fazendo barraco, batuque e festinha / nasceu Mangueira, Salgueiro, São Carlos e Cachoeirinha / nasceu Mangueira, Morro do Pinta, querida Rocinha / nasceu também Sapopanca, Tatumba e o Vidigal / morro da favela por trás da Central / eu sou muito bem chegado neles não posso negar / gosto de todos mas o Cantagalo que é o meu lugar”. Era Aqueles morros. E o primeiro funk que eu ouvi cantando favela foi com o Ademir Lemos: “Turma de Mangueira, de Manguinhos, de Urubu, Pendotiba, de Acari, Jacaré, de Bangu / Roça, São Gonçalo, Jacarepaguá, Vidigal, Rocinha e Irajá / Pilares, Estácio, Tijuca, Grajaú / Caxias, Belford Roxo, São João, Nova Iguaçu”. Foi a primeira vez que ouvi algo sobre as favelas, os bairros. O funk colocou as favelas dentro do mapa do Rio de Janeiro. Você não vai defender o funk só como cultural, tem que defender o funk como veículo de comunicação, um meio de informação, como troca de experiência. A função é justamente essa. É dizer para a população do Brasil o que está acontecendo dentro das favelas. A gente tem esse poder na mão. Não é querer ser o dono da verdade, é simplesmente trazer assuntos para serem discutidos, principalmente o câncer chamado narcotráfico. É pouco debatido, pouco divulgado, tratado somente como polícia. A gente só quer discutir, ouvir o clamor dos favelados, o que eles acham. Não é dar voz, todo mundo já tem voz. Dê ouvido ao funk, que voz a gente tem.
Entrevista realizada por Fabio Maleronka Ferron e Sergio Cohn
no dia 3 de maio de 2010, em São Paulo.
Para assistir essa entrevista em vídeo:
https://producaocultural.procomum.org/2010/08/06/mc-leonardo/