Entrevista completa de Fátima Toledo, para o Produção Cultural no Brasil

Seu método de trabalho é circundado por histórias romanceadas, outras vezes nem tanto, mas invariavelmente provocativas: alguém que vomitou, outro que teve o nariz quebrado, e assim vai. Fátima Toledo alimenta a própria fama: “Alguns atores da televisão já vêm trabalhar comigo com medo”, assinala. Mas refuta a ideia de que seu treinamentoseja violento. “Tapas a gente toma diariamente e ninguém percebe. Violência é não olhar para a gente”.

Pioneira na área, Fátima iniciou a preparação de elenco para cinema no Brasil meio sem querer. Foi quando Hector Babenco a chamou para ajudá-lo em uma oficina com crianças da Febem, trabalho prévio para a rodagem do festejado longa Pixote – a lei do mais fraco, em 1981. Ela queria ser atriz, mas apaixonou-se por um ofício dos bastidores das artes cênicas. Não largou mais.

Foi a partir das mãos dela que alguns dos personagens mais luminosos do cinema brasileiro tomaram vida: casos do Zé Pequeno, de Cidade de Deus, e do Capitão Nascimento, de Tropa de Elite. Fátima vai nas vísceras de seus atores. “É desesperador você entender que pode fazer coisas que socialmente seriam terríveis de fazer”, ela explica, sobre a busca do médico e do monstro em cada um, base de seu método. Mas a énfant terrible não é de ferro. Prestes a iniciar na direção, ela admite: “Estou apavorada”.

Como começou sua relação pessoal com as artes, de onde veio?
Desde pequenininha. Sou do Nordeste, de Maceió. Eu ia passar as férias na casa de uma minha tia e ficava brincando de trapézio, me pendurava. E na escola, a minha professora de História, Dona Deise, sempre dramatizava os fatos históricos que íamos estudar. E eu que dirigia as cenas. Isso já veio comigo de algum jeito.

E quando foi que você se tornou preparadora de elenco?
Devo isso ao Hector Babenco. Eu trabalhava na Febem, com os garotos, com teatro. Para fazer Pixote, o Hector foi atrás dessas pessoas que trabalhavam lá. A gente era chamada de monitor dos meninos. E ele pegou várias pessoas e deu para cada uma de nós um grupinho. Depois de 15 dias, ele foi olhar o resultado do trabalho e me escolheu. Aí eu falei: “O que eu vou fazer nesse filme?”. E ele disse “Você vai fazer coach, preparar essa moçada para fazer o filme”.

E como foi fazer Pixote?
Aterrador! Eu não sabia o que eu estava fazendo ali, como preparação, o Hector que inventou isso na minha vida. Agradeço até hoje, porque amo isso. Eu queria ser atriz e quando eu descobri a preparação, me apaixonei. Lembro que o Fernando [Ramos da Silva, o personsagem-título do filme] teve um problema no primeiro dia de filmagem. Nós não trabalhávamos com câmera nos ensaios. Então, no primeiro dia, com aquela parafernalha de equipamento, fiquei apavorada! O Fernando idem! Ele emudeceu. O Hector me deu cinco minutos para “trabalhar o garoto” e voltar. Levei o garoto junto com os outros para uma sala e não lembro o que eu fiz, porque eu estava em pânico. Era a minha primeira vez no cinema. Acabou que ele voltou e acabou fazendo. No final, o Hector disse: “Apostei em você e ganhei”. Só que depois do Pixote, fiquei dez anos sem fazer cinema, porque preparação de atores não existia. Adorei fazer cinema e me tiraram o doce rapidinho. Depois de dez anos, fiz Brincando nos campos do senhor , com Babenco. Então eu voltei para o teatro: trabalhando como atriz, dando aula, estudando.

O que faz uma boa preparadora?
Um bom preparador tem que ser a sombra. Nós não podemos ser o centro de nada. É quase um agente invisível que vai fazer o ator percorrer o caminho dele.

E hoje tem mercado ou é restrito a alguns nomes?
Hoje há vários preparadores, já não estou sozinha, o que é maravilhoso. Hoje pelo menos eu tenho com quem discutir, trocar. Tem muita gente trabalhando com  preparação. É comum um filme chamar um preparador, o que não era antigamente. Tenho um estúdio que dá aula de cinema a quem está interessado, ofereço estágio. Estou formando umgrupo de preparadores dentro do meu método de trabalho.

O que é o seu método?
É uma loucura ( risos) ! É ir até o ator, respeitá-lo e voltar com ele para o projeto. Quer ver? Vou te falar uma história rápida. Uma amiga minha era fonoaudióloga e, no primeiro trabalho dela, levaram um menino autista, que já tinham ido a milhões de lugares e não teve resultado. Ela fez de tudo com o menino: pulou, trouxe brinquedo e nada, nada, nada. Por ser o primeiro trabalho, ela estava muito motivada para dar certo,tinha muita garra. E ela não conseguiu. Ela sentou e disse: “Eu estou tão cansada”. E o menino falou: “Eu também”. O momento em que você chega na pessoa, há um encontro. E esse encontro produz um trabalho, um processo. Esse é o meu método.

E você já fez muitos filmes. De Pixote a Cidade de Deus, qual o melhor?
Pixote para mim foi muito marcante, não vou esquecer jamais. Quando via aquelas crianças do elenco, é como se elas ainda tivessem chance. Elas sonhavam ainda. Lembro que tinha uma cena do Pixote que reflete muito bem isso, que é quando o garoto fala: “Vou pegar uma prancha e vou…”. Ele tem o sonho de que vai conseguir surfar. Depois de 21 anos, quando faço Cidade de Deus, eles não pensam mais que têm chance. Então esses dois filmes são marcantes. Em Pixote, havia uma esperança. Em Cidade de Deus, parece que as pessoas precisam sobreviver.

Fale de um ator com quem você gosta de trabalhar.
Falo de dois, ok? Wagner Moura e Irandir Santos, com quem trabalhei agora no Tropa de Elite 2. São dois dispostos a pular no abismo. Atores que não têm muitas regras, que estão inteiros! Sem medo, sem rede! Acho que o momento mais bonito da minha vida como preparadora foi no último dia de ensaio de Tropa de Elite 2, quando ensaiei com essas duas pessoas.
A gente correu um risco terrível com esse filme, porque o Capitão Nascimento virou um arquétipo. Começamos o segundo filme muito imbuídos do primeiro, com o sucesso, a grandiosidade daquele personagem. Mas não podíamos ficar contaminados. Aí indiquei o Irandir Santos, que tinha feito comigo Besouro: Nasce um Herói e Quincas (Berro D’Água). E eu me apaixonei por esse homem porque ali existe alguém de verdade, como o Wagner. O processo todo foi de um olhando o outro e tudo acontecia e eu quase não precisei fazer exercício nenhum. Duas pessoas em profundo movimento dentro daquela história. Coloquei os dois se olhando e fiz as minhas motivações. Dois titãs, um duelo de gigantes. A gente esquecia que era um filme. Quando você trabalha e esquece que está fazendo cinema, é maravilhoso.

A relação com diretores, como é?
Antigamente, eles me chamavam e não sabiam exatamente o que eu fazia. Hoje já há um conhecimento da área, já sabem que em um primeiro momento é legal que eles não venham assistir ao processo. Caso contrário ainda fica clara a função de ator, diretor e preparador. Não ficam as pessoas. E o jogo de confiança não acontece, porque aí é uma relação de papéis. O Fernando Meirelles, em um primeiro momento, em Cidade de Deus, disse: “Como assim eu não posso assistir esse primeiro momento?”. E ficou meio bravo. Expliquei que era um momento em que eu e os atores estávamos criando uma confiança para a gente se abrir. É um momento até que eu não gravo. São coisas muito pessoais.

Fisicamente?
É, são exercícios. Não gosto de falar muito. Não tem esse negócio: “Ah, meu pai foi…”, não quero saber! Não sei quem foi seu pai, não sei quem não foi. Eu estou trabalhando partida, abandono, encontro. Não quero saber de quem não tem rosto. Não é memória emotiva. Memória emotiva é a do espectador. A nossa é sensorial. Em um segundo momento, o diretor entra e cria-se uma parceria maravilhosa. Karim Aïnouz é um parceiro e tanto. Karim entendeu o método e começou a me dar coisas novas para meu próprio método. Essa troca é sensacional. Trabalhar com ele foi muito bom, com o Fernando e com o Sérgio Machado também. Eu não estou tomando o espaço do diretor na hora que eu levanto uma cena. E essas pessoas já entenderam isso. Quem não entende é que é difícil. Aí dizem: “Ela está dirigindo, não precisa nem de diretor”. Não é isso. Precisa e muito. Tanto é que eu pretendo dirigir e estou apavorada! E já fiz 42 filmes.

Você vai preparar o elenco do seu longa?
Vou. E eu vou chamar um assistente. Eu não vou ter como, porque o diretor tem tantas áreas para ver, para compor. Tem que estar presente em todas para unificar. E eu não quero deixar nenhuma área sofrer essa ausência.

Agora que você vai ser diretora terá a preocupação com financiamento, produção etc. Como vê a política cultural para o cinema no Brasil?
Estou entrando nesse universo agora. Às vezes dá vontade de não dirigir mais. Tudo é muito difícil, leva tempo. Ainda tem esse problema de ter que colocar “pessoas de nome” no filme para dar certo. Pelo amor de Deus, não é isso que faz um filme dar certo. Mas ainda existe isso em quem financia e patrocina. São empecilhos que me irritam muito. Não sei trabalhar com um ator que eu não quero, não sei fazer esse tipo de venda, de troca. E eu sei que vou ter que me preparar. Ou fazer do meu jeito – e aí não ter muito dinheiro e ter que me virar – ou não fazer de outro jeito. Já estou com medo dessa batalha. Hoje, há mais incentivo, mais  filmes acontecendo. A gente já está na fase de ter filmes bons e ruins, não só o grande filme acontecendo. Hoje a gente tem uma variedade de filmes, de gêneros, bons ou não. Tem o problema da distribuição, porque às vezes você faz um filme com tão poucas cópias e fica pouco tempo em cartaz. Não dá chance de o filme acontecer.

O que é que fazem os preparadores? Qual a diferença entre prepa rador de ator e preparador de elenco?
Tem o casting, que é quem escolhe o elenco, e tem o preparador de ator que é aquele que prepara os atores para viver o universo do filme. Normalmente, eu preparo o elenco. Antigamente, eu preparava um ator, como em Central do Brasil, quando foi só o garotinho [Vinícius de Oliveira,  no papel de Josué]. Agora, eu preparo o elenco, porque dá uma unidade. A gente percebeu isso em Cidade de Deus. O que o preparador faz? Ele vai dois meses antes e faz parte da pré-produção. Começa um trabalho diário com os atores das 10h da manhã às 5h da tarde para entrar no universo do filme. No primeiro momento, descubro quem são as pessoas com quem estou trabalhando, o que que elas têm para me dar. Faço um diagnóstico pessoal e alguns exercícios. Pergunto: “Essa pessoa está resistente ao processo? Está entregue? É agressiva?”. Vou fazendo o meu diagnóstico. Depois, começo as relações do filme e, no terceiro momento, eu faço levantamento de cena. Aí o diretor vem e ajusta dentro da concepção do filme que ele tem. Preparador aqui é isso. Eu trabalhei no Medicine Man – aquele filme que o Sean Connery produziu – e lá é diferente. Lá a atriz Lorraine Bracco tinha preparadora, a coach dela. Então os atores normalmente levam os seus coachs. E eu trabalhei com a coach dela, eu era a coach dos índios… (risos) Brasil, né?. Mas lá, por exemplo, já abriu uma porta, quando o John McTiernan era o diretor. Ele percebeu que eu ensaiava cenas. Então ele começou a pedir isso, começou a entrar close de índio, o que não tinha antes. Perceberam a interferência dessa preparação. Lá, a atriz fica com a preparadora vendo tom de texto, esse tipo de coisa. Aqui no Brasil, tomou outra dimensão. Walter Salles disse que nunca viu esse nível nosso de preparação em nenhum outro lugar.

Mas você acha que faltam “diretores” de atores no Brasil? Falta um modelo parecido com o do Actors Studio aqui?
Não. Falta uma atenção especial ao ator antes da filmagem. Assim como a gente tem a direção de arte que passa um tempo produzindo para filmar depois, o ator também tem que ter essa atenção para entrar no universo do filme. Você não está ensinando ele a atuar, não é isso. Você o prepara para percorrer aquele filme. Tanto é que o John McTiernan começou a assumir isso, ele viu a interferência disso. Você levanta a cena, mas quem vai mostrar, decidir o que mostrar, é a direção. O que que ele quer contar? Onde vai estar essa câmera agora? O que ele está dizendo nesse filme? Você dá a possibilidade para o ator viver algo antes, ir muito mais seguro e, inclusive, contribuir com o filme.

Você estudou Stanislavski para fazer seu trabalho. Como ele te influenciou?
O Stanislavski trabalha com as máximas: “Se eu estivesse nessa situação” ou “se eu fosse”. Para mim, não: “Eu estou” e “eu sou”. É minha diferença. Para mim, não existe personagem naquele momento – não para o ator. É claro que tem o personagem que estou percorrendo durante o filme, estou atrás dele, pelo ator. Mas não faço o ator construir nadadesse personagem, para ele não se cercar. O que eu faço é o ator viver a situação do filme, sendo ele. Ele é ele. Ator. Dentro daquela situação. A situação é fictícia, ele não. Então não tem o “se eu fosse”. Existe o “eu sou” neste momento!

Você também faz casting para cinema?
Só agora a gente está sendo chamado a fazer os testes de casting. Fiz o casting do Linha de Passe e do Tropa de Elite. E a produção de casting aqui no Brasil é muito ruim. Você pede uns atores, mandam outros. Não tem a tradição do casting americano. Meu trabalho fica muito complicado quando há erro nesta etapa. Mas alguns diretores estão começando a me chamar na fase de testes, antes da preparação.

Quando você pega a primeira ideia de um filme, provavelmente antes do roteiro, como é imaginar o que esse ator vai ser?
Eu leio o roteiro, visualizo o filme, mas não sei o que vou fazer. Só percebo quando levanto as cenas, quando vejo os atores. Aí eu começo a perceber que às vezes o roteiro tem falha aqui, ali, que eu não tinha percebido na leitura. Quando ele toma vida, eu falo: “Gente, essa cena não funciona!”. O próprio filme começa a existir a partir da vida que os atores dão. Antes eu não tenho nada, só um papel escrito. Eu sei se é bom ou ruim, se eu quero fazer ou não. Sei se ele me dá possibilidade de dar um depoimento como ser humano ou não. Agora, vê-lo, não vejo. Só percebo à medida que ele vai existindo por meio do trabalho dos atores. Tem momentos em que eu digo: “Ih, gente! O filme chegou!”. Parece uma entidade, que começa a dizer o que funciona, o que não funciona, quem está indo bem, quem não está. É impressionante! Eu juro que é isso que acontece.

Como é trabalhar em um filme como Mutum? Trabalhar com a delicadeza…
Do mesmo jeito que você trabalha com a agressividade, procurando dentro da própria pessoa. Ela tem os opostos: a sombra e a luz. Quem é Capitão Nascimento? A sombra do Wagner Moura. Tanto vai encontrar a delicadeza, como o seu oposto. Não tem um personagem, ele não vai copiar o Nascimento, ele vai buscar pelo próprio medo a sua sombra. E em uma hora dessas eu tenho que estar muito atenta, porque ninguém quer ver sua sombra. É desesperador você entender que pode fazer coisas que socialmente seriam terríveis. Mas é possível, depende de onde você está. Às vezes, existem essas coisas que o pessoal diz que é violência. Para mim, violência é não olhar para a gente. Sinto que as pessoas estão em um transe. Basta acontecer um tapinha no treinamento – e um tapa não é nada diante do que a gente toma diariamente na vida – e aí vira um troço: “Nossa, é terrível o treinamento dela”. Do mesmo jeito que pode ocorrer um tapa, pode ocorrer um abraço. Mas o abraço ninguém vê…

Como é trabalhar a mitologia e o arquétipo no ator? Se você trabalha mãe, pai, inconsciente coletivo, tudo isso já está nas pessoas. O que hoje move uma pessoa?
Medo. Nós estamos na cultura do medo. Você não precisa saber do que tem medo, mas o medo é presente e muito forte. Está no inconsciente das pessoas. Então é óbvio que você vai trabalhar com o que é de todos, só que cada um organiza do seu jeito.

A única arte possível é essa das vísceras?
Para mim, é. Se não, por que que a gente estaria fazendo? O que a gente quer arquivar e deixar nesses filmes? O nosso histórico, o nosso momento. Se não, vamos fazer cinema para quê? É o meu compromisso. Não tenho o compromisso da vaidade. Já tive, mas rompi meu ego, as minhas personagens todas. Óbvio que trabalhei muito nisso. Você se liberta.

Como é preparar criança?
Dentro da criança existe alguém, então não precisa falar com ela como se fosse retardada. Odeio como falam com criança. Ou então quando fazem aquele jogo: “Se você fizer, ganha um doce”. Até no Tainá o povo dizia: “Nossa, como você é má!”. Eu não sou má. A Eunice Baía [ atriz mirim que fez a personagem do filme] sabia a hora de trabalhar e de brincar. Às vezes, eu perguntava se ela queria ir ao banheiro, não queria. Aí, na hora de rodar, dizia: “Quero ir ao banheiro”. Criança é cruel. A criança sente as nossas falhas e as manipula. Criança para mim é um ser humanozinho que está lá, não tem esse negócio de “criancinha”. Trato com muito carinho, mas com seriedade. A única coisa que faço diferente é ajoelhar na altura dela para falar com ela. Aqueles meninos do Mutum, o que têm em experiência de vida, de luta, acordam de manhã, pegam uma enxada, vão para roça. Tem uma vida ali muito mais madura, às vezes, do que eu mesma. Então não faço diferença: índio, criança, não-ator, ator. Se eu fizer diferença, eu me perco.

O que você faz quando determinado personagem não avança?
Ah, tem alguns atores que, vou ser sincera, vêm da televisão e já vão trabalhar comigo com medo. E fica uma coisa meio cool, você dá o exercício e eles fazem. Aí eu falo: “Ah, meu Deus do céu! Lá vem isso de novo!”. Como se aquilo fosse um joguinho. Acontece muito e é tudo parecido. Eu falo: “Tem algum problema com você? Você não está curtindo, prefere não fazer? Por que você está um porre! O que é isso? Vou deixar uma coisa clara: eu não preciso trabalhar com você. Você quer ou não quer?”. Vou assim mesmo. Eu lido muito com essa honestidade. Não tenho paciência, idade e nem tempo de ficar fazendo firula. Ultimamente, eu estou mais rápida. Começa e falo: “Ih, vamos quebrar logo, porque eu não tenho tempo para isso (risos)”.

Quebrar é conversar?
Às vezes, é exercício. Lembro de uma atriz, que eu não vou citar o nome, que já tinha experiência e os outros não tinham, então quando a coisa pegava ela brincava, fazia um jogo e saía. Eu disse: “Isso já está demais!”. Dei um exercício que se chama mesa. Você põe uma pessoa ali e os outros falam tudo. Como era a atriz incomodando, os meninos falaram: “Por que você acha que você é atriz? Por que acha que só você sabe?”. A menina chorou. Às vezes nem percebia o que estava fazendo. Tem vários tipos de exercício. Fala só em último caso. Normalmente eu dou exercício e isso vai quebrando.

Você já disse: “Agora, quando fazemos um filme, está claro que não estamos formando atores”. E o contexto é sobre atores que vêm da televisão. Como que é isso?
Não estamos formando atores porque estamos trabalhando as pessoas para o trajeto de um filme. Então, por exemplo, quando terminou Pixote, pedi ao secretário de Cultura que patrocinasse um trabalho para aquelas crianças aprenderem a fazer arte. Ter aula de voz, aula de corpo. Nós não conseguimos esse dinheiro. Isso foi negado na época. Sabiam que eu tinha preparado o filme, não a pessoa para atuar. Existe uma diferença grande quando você põe uma criança e depois ela acredita que é ator ou atriz. Pixote ensinou isso. O ator de televisão às vezes cai de paraquedas ali dentro. Ele vem, não estudou, não pesquisou tanto, mas tem o carisma. De repente, ele vira uma celebridade, dá autógrafo. Mas vai esquecer de aprender, porque já o consideram um ator. E ele não é necessariamente um. Não é porque fez uma novela que é ator.

O leque de atividades de preparação é grande? Como funciona?
Grande. Uso muito a bioenergética, já fiz inclusive terapia com a bio e ela dá coragem. Afinal, não desce nenhum espírito na gente. A gente tem que estar com o pés no chão e atingir o céu. Trabalho com a bio, com a kundalini [centro de força no yoga]. Isso só de aquecimento, para começar. É um aquecimento emocional-físico, de duas horas e pouco. Muita gente vomita, passa mal. Esses aquecimentos mexem muito com a pessoa. São meus meus assistentes que fazem esse primeiro momento, depois eu chego.

Como são os exercícios? Descreva para nós.
Simples. São exercícios físicos, emocionais, nos quais você coloca os pés plantadinhos no chão, flexiona seus joelhos, solta a sua barriga, solta o seu ânus. Durante os processos de vários exercícios, nessa postura. Aí tem momentos que eu digo: “Se soltem do que vocês quiserem ou de quem quiserem. Eu não preciso saber de quem, cada um sabe”. E eles fazem em uma intensidade maravilhosa. Por exemplo: o Irandir Santos. Tem um exercício que é mamar, você fica mamando. E o Irandir ou o “antagonista” dele, quando faz isso, já começa a babar, a cuspir, a criar um ruído estranho, uma sujeira, uma humanidade. Esses exercícios físicos trazem toda a carga emocional que a gente precisa.

Como você prepara o humor?
Quincas (Berro D’Água) é uma comédia, porque graças a Deus eu também faço comédia, não é só no bate-apanha ( risos). O que é o humor senão o drama feito com seriedade? Charles Chaplin quando come o cadarço do sapato e é macarrão, é macarrão. No Quincas, eles faziam tudo muito sério. Dei muito exercício de corda, para criar ritmo. O tempo é diferente, mas a verdade é a mesma, não muda nada. É só o ritmo. Fazer com seriedade e não fazer para o outro rir. Fazer como se estivesse fazendo drama. Aqueles quatro amigos do Quincas são como o exército de Brancaleone, não é?

Fátima, o que faz de um ator um ator?
Compromisso não só com ele, mas com o lugar em que ele vive, com a sociedade, com o que ele registra, com o que ele arquiva. Alguém que precisa dar um depoimento através de um filme. Ator, para mim, é aquele que está disposto a rever a própria vida todos os dias.

E as celebridades? Isso é diferente com elas?
Ah, é uma bobagem tão grande. Acho uma pena, porque impede as pessoas de crescerem. Tem muita gente que hoje vai para a minha escola para fazer um filme e entrar na televisão, não vai para estudar. Não vai para aprofundar, para pesquisar. A celebridade tornou tudo mais fácil. Usou uma saia curta na escola, amanhã é atriz. Sabe? É um desrespeito com o profissional, com quem busca, com quem investiga, com quem trabalha.

Há preconceito com atores de televisão e com atrizes que eram modelos?
Existe. Mas hoje em dia é menos. A gente está vendo tanta modelo que depois passa para atriz. Não é preconceito. É como eu digo ao ator quando ele vai para o set: “Conquiste o direito de ser essa pessoa, conquiste o direito de fazer esse filme. Não é porque você está, que o filme já é seu”. Então, não é preconceito: simplesmente conquiste esse direito.

A provocação surte efeito? Você usa o “não vai conseguir”?
Claro. Tem dias que eu encerro um ensaio assim: “Então tá, gente, se é isso que vocês têm para me dar, obrigada”. Aí, no outro dia, chego e está todo mundo diferente! (risos). Quando o Babenco queria provocar um ator, ele virava para o outro que estava contracenando com aquele que ele queria provocar, e dizia: “Ótimo, brilhante o que você fez! Você está incrível!”. E o outro começa a pensar: “Estou péssimo, ele não está falando comigo”. Ou seja, está desestabilizando para chegar onde quer. Eu mando o ator para casa por três dias. Eles enlouquecem: “Ela vai me tirar do filme, tenho certeza que é isso”. Você lida com a vaidade, com o ego, quebra essas coisas. Traz a pessoa pura para o trabalho.

Entrevista realizada por Fabio Maleronka Ferron e Lucas Pretti
no dia 04 de maio de 2010, em São Paulo.
Para assistir esta entrevista em vídeo:
https://producaocultural.procomum.org/2010/08/12/fatima-toledo/

 

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Rolar para cima