“Depois de escrever,
vamos para a luta,
vamos produzir, ver
quem está escrevendo,
juntar turmas para
formar um exército.”
Quando o escritor Marcelino Freire encontrou o poema O Bicho na gramática do irmão mais velho, descobriu que queria ser poeta. “O bicho, meu Deus, era um homem”, escreveu Manuel Bandeira. “Descobri que Bandeira era pernambucano também, falava de ruas que eu conhecia, Rua da União, Rua da Aurora, falava do Rio Capibaribe.” Nascido no ano de 1967, em Sertânia (PE), Marcelino é de família grande e pobre.
Estudou e chegou ao curso de letras. Largou o trabalho de bancário para se dedicar a conhecer escritores pernambucanos. “Eu queria interlocutores, queria um diálogo, queria saber como o meu texto batia no ouvido do outro”, afirma. Em São Paulo, a carreira literária de Marcelino foi impulsionada pela mesma inquietação. Reuniu novos escritores para trocar ideias, incentivar pequenas editoras, publicar livros e organizar antologias. Por esse caminho, acabou por afirmar a existência de uma nova geração literária.
Entre seus livros publicados estão Angu de Sangue (2000), Contos Negreiros (2005) e Rasif: mar que arrebenta (2008). Há cinco anos organiza a Balada Literária em São Paulo, evento que reúne dezenas de escritores nacionais e internacionais. “Digo sempre que enquanto outros fazem eventos com um milhão, eu faço com ‘hum-milhação’ ”, brinca. Sobre política cultural, defende a adoção de intercâmbios, residências artísticas, bolsas de criação e circulação de escritores nas universidades.
Como a literatura chegou até você no interior de Pernambuco?
Eu nasci em Sertânia, no sertão de Pernambuco. Sou o caçula de uma família de nove filhos. Uma família que não tinha biblioteca em casa, não tinha livro, não tinha água. Então, como é que eu me interessei por literatura? Como eu tive vontade de ser escritor em uma casa que não estava cercada disso, que não era movida por isso? Foi quando eu li um poema do Manuel Bandeira em um livro da escola do meu irmão mais velho. Eu estava com nove para 10 anos de idade, li um poema chamado O Bicho [“Vi ontem um bicho / Na imundice do pátio / Catando comida entre os detritos. / Quando achava alguma coisa; / Não examinava nem cheirava: / Engolia com voracidade. / O bicho não era um cão, / Não era um gato, / Não era um rato. / O bicho, meu Deus, era um homem” (1947)]. Pensei que queria fazer o que aquele cara fazia, queria ser poeta. Descobri que ele era pernambucano também, falava de ruas que eu conhecia, Rua da União, Rua da Aurora, falava do Rio Capibaribe. Ele não queria ser engenheiro, pedia desculpas ao pai por ser um poeta menor. Eu queria ser esse poeta menor. Minha família era sertaneja e queria que seus filhos estudassem, mas para ser engenheiro, médico, advogado. Nunca vi uma mãe dizer que queria que o filho fosse poeta. De certa forma, Manuel Bandeira me ajudou a não ser econômico, no sentido de pensar minha vida economicamente. Comecei escrevendo alguns poemas,imitando o Bandeira, querendo ser doente como o Bandeira, tuberculoso, comecei até a ensaiar umas tosses. Juro! Quando tinha mais ou menos 10, 11 anos, descobri que tinha sopro no coração. Isso foi minha glória literária! Ia pelos hospitais, pelos corredores. Bandeira abriu essa porta, me deu a vontade de ser escritor.
É meio ficcional essa tuberculose do Bandeira. Que tuberculoso fuma dois maços de cigarro por dia e sobe ladeira em Santa Teresa (risos)?
Tem um crítico literário que encontrou Manuel Bandeira um dia na rua e disse: “Você é uma fraude! Desde muito tempo você disse que ia morrer e não morre nunca!”. Eu gostava muito dessa figura. Meus irmãos iam jogar bola, andar de bicicleta, mas eu nunca quis saúde não. Gosto do Bandeira porque ele me doutrinou a ser doente. As pessoas vão atrás de saúde, eu não. Quanto mais um artista me deixa doente, mais eu gosto dele.
Como foi esse começo de vida de escritor? A vivência em Pernambuco e a vinda para o Sudeste?
Escrevia e participava de grupos de poesia. Fiz curso de letras, mas não terminei. E tinha um amigo que sempre me chamava para vir para São Paulo. Eu dizia: “Ah, o que eu vou fazer em São Paulo?”. Eu trabalhava em um banco como revisor de textos, era uma carreira no banco que estava se apresentando, eu fui office boy, escriturário, revisor. Mas eu disse: “Não quero banco. Cadê o Manuel Bandeira, cadê minha poesia, cadê os escritores dessa cidade?”. E aí eu deixei o banco e passei dois anos conhecendo os escritores do Recife: Raimundo Carrero, Ronaldo Correia de Britto, Wilson Freire. Eu fui conhecer todos eles e fazer cursos, encontrar esses escritores na cidade, esses artistas, poetas. Quando o dinheiro acabou, aceitei o convite de vir para São Paulo.
Mas como foi a procura pelos escritores no Recife?
Eu queria interlocutores, queria um diálogo, queria saber como o meu texto batia no ouvido do outro, que não o do meu irmão, que não o do amigo. Assim que eu saí do banco, tinha uma oficina de criação literária, que era a primeira oficina que o Raimundo Carrero ia fazer no Recife. Foi lá que eu o conheci. Além dele, conheci outros escritores que estavam ensaiando seus primeiros romances, seus primeiros livros de contos. Era uma necessidade de interlocução mesmo, para não ficar sozinho, acuado. Nesse sentido, eu já fazia teatro também, comecei muito novo, com 10 anos de idade. O teatro deu muita força para o meu trabalho, para o meu texto. Eu escrevia peças e também produzia. Com 14, 15, 16 anos, eu montava meu próprio texto e levava em temporada na escola, em teatros na cidade, sem absolutamente dinheiro nenhum, mas com muita vontade de fazer alguma coisa. Quando eu fui fazer a oficina do Raimundo Carrero, fui para encontrar esses interlocutores e para saber também o real peso ou o fracasso do que eu fazia.
Naquele momento, você considerava que já tinha uma voz própria ou estava a procurando?
Encontrei quando vim para São Paulo. Eu cheguei em 1991, zerado de tudo. Descobri aqui, por exemplo, que eu tinha sotaque. Isso é um caminho para você descobrir que tem uma voz. Descobri que eu tinha muita saudade, um banzo imenso da minha família, do barulho da casa. Você começa, de alguma forma, a se agarrar nas suas raízes para poder enfrentar essa cidade, que tem tudo para te atropelar. Então comecei a descobrir que tenho sotaque, que tenho Sertânia dentro de mim, que eu não achava que tivesse. Aí comecei a escrever uns textos. Depois eu verifiquei que os textos que eu publicava no Recife tinham essa voz, mas lá era uma voz costumeira. Uma forma de falar, de escrever, pontuar, de cantar um texto, muito peculiar do Recife, de quem mora lá. O Joca Reiners Terron, que é um escritor radicado aqui em São Paulo, foi a Recife não tem muito tempo e voltou dizendo: “Encontrei vários ‘Marcelinos’ lá no Recife! Você é igual ao poeta Miró, você imita o poeta Miró de Muribeca!”. E eu disse: “Joca, você estava na minha terra. Lá você ia encontrar várias pessoas falando como eu, no mesmo desespero, no mesmo registro de vexame”.
O choque cultural é uma experiência fundamental para o artista. Essa vinda para São Paulo foi isso?
Para mim foi fundamental. Só escrevi Angu de Sangue – primeiro livro que fiz por uma editora –, porque eu vim morar em São Paulo. Um angu que deixou de ser o angu da tradição – de milho – para ser um angu de sangue! Sou uma pessoa preguiçosa, mas muito preguiçosa, se me deixassem com um suco de maracujá no Recife, eu ia morrer lá. O que eu quero mais? Suco de maracujá, sol, descanso, família por perto, não é verdade? (risos) Então, São Paulo foi importante porque me acordou para forças que eu julgava não ter, forças de luta mesmo, de inserção.
Na sua chegada, a cena literária de São Paulo estava quase estagnada. Com a sua geração, houve um ressurgimento. Como foi perceber que vocês construiriam algo?
As pessoas aperreadas demais com a arte, com aquela vontade visceral de fazer, se sentem vazias em determinados momentos e dizem: “Algo precisa ser feito”. A mesma coisa que me impulsionou a sair do banco lá no Recife me fez, já morando aqui, sair em busca dos escritores da cidade, dos meus contemporâneos. Ouvia falar do Marcelo Mirisola, do Luiz Ruffato, do Nelson de Oliveira, que tinham publicado livros, mas eu não conhecia ninguém. Eu moro na Vila Madalena e trabalhava como revisor em uma agência de propaganda. Vivia correndo de lá para cá, trabalhando muito, aquela chatice, até altas horas da madrugada. Então, eu resolvi reservar o sábado e o domingo para passear pelo meu bairro. Andava nas livrarias, tomava um café, ia até os sebos. Tinha uma necessidade de encontrar uma turma, de, mais uma vez, encontrar interlocutores. Um dia, passando pela Rua Teodoro Sampaio, vi um sebo chamado Sagarana, e se o dono coloca esse nome, no mínimo ele gosta de Guimarães Rosa. Então eu entrei e conheci o dono, que é o Evandro Affonso Ferreira. Vi que ele escrevia maravilhosamente bem e ele me convidou para uma reunião com escritores, uma coisa que eles estavam tentando retomar. Nos encontramos em um café da Praça Benedito Calixto, mas era um lugar muito barulhento, você não conseguia ouvir as pessoas, então me propus a conseguir outro lugar. Nas minhas andanças pela Vila Madalena, conheci o Iuri Pereira, que é um dos donos da editora Hedra, e então ele falou de um café que tinha no bairro, próximo da sede da Hedra, e ofereceu também o próprio espaço da editora. Assim, acabamos nos reunindo em um lugar mais silencioso. O Evandro, como conhecia muita gente por causa do sebo, começou a convidar alguns escritores para que fossem lá tomar um café com a gente. A ideia era que o escritor fosse lá, conversasse um pouco e depois lesse algumas coisas. Foi lá que eu conheci o Marçal Aquino, Fernando Bonassi, Glauco Matoso, passou por lá também o João Alexandre Barbosa, um grande crítico literário, que era rato de sebo e comprava livros com o Evandro. Ele esteve lá, conheceu um texto meu, disse que tinha gostado muito e me indicou para o Ateliê Editorial. Depois, ainda escreveu o prefácio do livro Angu de Sangue. Mas foi a partir dessa necessidade de interlocutores que nos reunimos. Todos estavam exatamente com a mesma necessidade. O Ruffato tinha publicado o primeiro livro, o Nelson tinha feito o segundo, o Evandro estava preparando o primeiro, eu também estava preparando o primeiro. Costumamos dizer que foram os livros que se encontraram. Mas tinha um vazio também. O Nelson falava da editora do Joca Reiners Terron, a Ciência do Acidente, o Marcelo Mirisola falava do pessoal da Livros do Mal, uma editora do Rio Grande do Sul, do Daniel Galera e do Daniel Pellizzari, todos fazendo alguma coisa. Então, a partir daí resolvemos fazer uma antologia. Uma antologia da geração 90, porque saiu a antologia 100 Melhores Contos Brasileiros do Século, organizado pelo Ítalo Moriconi, um trabalho extraordinário, pontual, para trazer o conto de volta à cena, mas quando chegava na geração 90 ficava um vazio. Nesses encontros descobrimos que tinha muita gente boa espalhada pelo Brasil. Foi aí que o Nelson de Oliveira organizou as antologias Manuscritos de Computador (2001) e Os Transgressores (2003). Era essa necessidade de interlocução. E era uma fase em que você tinha grandes editoras dominando os jornais e nós éramos de pequenas editoras, era a Ateliê Editorial, a Boitempo, a Azougue. Mas então, de repente, eles começaram a ouvir falar dos novos escritores, a se perguntar que escritores eram esses.
Você fala da inquietação dos escritores e das pequenas editoras… Além dessas, quais outras características da geração 90?
Era exatamente essa coisa de produzir um texto e dizer: “Olha, estou aqui”. Falava-se muito pouco da Livros do Mal, da Azougue, da Boitempo, da Ateliê. Nós não nos sentíamos ouvidos ou vistos. Mas, para que fôssemos ouvidos e vistos, tínhamos que fazer texto, produzir. Tinha gente produzindo muito bem, fazendo texto bom. Tinha que participar também, mas participar fazendo! Por isso, fomos fazer nossas antologias. Em 2003, eu e Nelson de Oliveira organizamos a PS SP, uma revista um pouco tardia para o encontro que havia na Hedra, porque o grupo já não se encontrava tanto, mas foi uma forma de registrar esses escritores. Fizemos a PS SP, que significava o Post Scriptum São Paulo, que vinha depois do que estava escrito em São Paulo.
Vocês conseguiram se impor na cena e nos cadernos literários. Talvez a última vez que os cadernos tiveram uma importância na formação de público…
Concordo plenamente. O Jornal da Tarde tinha um caderno de literatura muito bom. O caderno Ideias, do Jornal do Brasil, era maior. E o Prosa & Verso, do jornal O Globo, resistia. Eu lembro que o Angu de Sangue foi resenhado em vários cadernos literários. Temos uma fase também da revista Cult, quando ela pautava, assinava, mostrava o que estava acontecendo na literatura. Depois esses veículos foram perdendo espaço. Veio a internet, a Cronópios, tudo mudou.
Hoje, qual é o caminho para a formação de leitores?
Tem uma coisa que pontua a literatura para uma nova frente de batalha: a Festa Literária Internacional de Paraty (Flip). Ela inspirou muitas outras festas, encontros. A Jornada Literária de Passo Fundo faz isso há 25 anos, com a Tânia Rösing [entrevistada no livro 3]. O escritor está cada vez mais saindo do casulo, aprendendo a apresentar sua fala em outras mídias. Adaptações para o teatro, vídeos no YouTube, trailers. Têm tantas frentes para tornar a literatura mais dinâmica. Ouvi uma vez uma escritora falar: “Eu escrevia porque eu não sabia falar. Agora, para continuar escrevendo, tenho que falar”. É isso mesmo. Tem que circular bastante. Faço isso muito. Vou na periferia, por exemplo, e não vou só por ir, eu enturmo. Vem da mesma vontade de encontrar meus pares, de encontrar quem é que está fazendo literatura e tirando a literatura do casulo, tirando a literatura das academias, tirando a literatura da naftalina. Vou para os saraus da periferia e conheço o trabalho vigoroso que os poetas fazem. Esse agrupamento tira a palavra um pouquinho da gaveta e joga para o outro. Essa é a formação de leitor! É o que o Sérgio Vaz faz no Sarau da Cooperifa há oito anos, toda quarta-feira, faça chuva ou faça sol. E 300, 400 pessoas param para ouvir poesia na periferia de São Paulo! Aquilo modificou a geografia daquele lugar. Os moleques leem poesia e isso muda a maneira como eles encaram a literatura, que, muitas vezes, é dada de forma chata na escola, de forma burocrática. Nesse sentido, essas festas para a literatura são importantes, porque estamos em uma fase de muita concorrência com outros apelos. Hoje, as pessoas têm iPod, DVD, internet, é muita coisa. Me perguntaram agora há pouco o que eu acho do iPad. Eu tenho que estar, quase mensalmente, respondendo questões sobre essas novas tecnologias. É importante que elas apareçam, o escritor tem que estar discutindo os diretos autorais do iPad. Mas, ao mesmo tempo que existe o iPad, tem gente aqui que “ipede” esmola. Ainda estamos formando bibliotecas e temos que ficar respondendo sobre tecnologia. Eu não sei onde isto vai parar, mas vamos embora, o que se pode fazer? A literatura tem que estar atuante, porque senão desaparece.
E você se tornou um agitador da literatura em São Paulo…
Quando me interessei pelo teatro, descobri que podia ser ator, escrever o texto, produzir e dirigir. Quando estava na escola, eu já pegava almofadas e jarros da casa da minha mãe para poder fazer cenário de peça, produzir alguma coisa e sair da impossibilidade. Não era porque eu não tinha dinheiro para o cenário que eu não ia fazer teatro. Ia me sentindo capaz de realizar.
Aos 18 anos de idade produzi uma peça chamada A menina que queria dançar, uma peça infantil que escrevi aos 14 anos para que a Patrícia França – uma atriz que depois veio fazer Globo e hoje está na Record – fizesse a personagem principal. Ela fez com 14 e eu com 18 anos. Eu queria a peça encenada no principal teatro da cidade, o Teatro de Santa Isabel. As pessoas me perguntavam como eu ia colocar a peça lá, porque era o melhor. As pessoas já colocavam um “não” antes mesmo de tentar. Na época, eu trabalhava no banco e fazia esse tráfego entre meu trabalho formal e o que eu queria fazer, então produzi os folhetos na gráfica do banco, fiz um bom programa, um projeto bem feito, chamei fotógrafo profissional. De fato, eu pensava sempre mais do que eu poderia fazer. E era pensando assim que eu tirava um pouco da minha pequenez. Aí fui no teatro, consegui a temporada, que foi vitoriosa, linda, e fez a Patrícia França ganhar o prêmio de atriz revelação. A partir daí, abandonei o teatro, queria mesmo a literatura. Estava insatisfeito, cansado de Recife, e veio o convite para vir para São Paulo. Mantive a mesma postura quando vi aqueles prédios imensos na Avenida Paulista. Eles tinham tudo para me sufocar, eu vinha de longe e pensava que tinha que ver aqueles prédios de igual para igual. Tinha essa força de transformar. Dizem que a Avenida Paulista é o centro da cidade, o centro do Brasil, a principal avenida da América Latina e eu pensava que não podia estar longe dela. Então, eu consegui trabalho ali. Com a literatura foi a mesma coisa. Conversava com Nelson sobre a revista PS SP e ele sempre falava que não tínhamos dinheiro, enquanto eu dizia que dinheiro não era problema e o instigava para fazer. Mesmo depois de lançar meu segundo livro e estando dentro de uma editora, a Ateliê Editorial, eu não esquecia meu lado amador. Em 2002, na Ateliê, fiz uma coleção chamada 5 Minutinhos, para ser distribuída gratuitamente. As pessoas dizem que não têm tempo para ler, então eu fui fazer a coleção 5 Minutinhos, que você lê no cabeleireiro, enquanto espera o ônibus, e de graça. O Plínio Martins, editor da Ateliê, meu amigo até hoje, foi quem me ajudou nessa empreitada. Peguei o Manoel de Barros, João Gilberto Noll, Millôr Fernandes. Mas, antes, já me perguntavam se eles iam aceitar. E eu dizia: “Eu ainda nem perguntei para eles!”. É uma teimosia, uma vontade de fazer, de sair da mesmice. Hoje, publico pela editora Record, mas fico sempre envolvido em projetos que eu possa começar do zero, que eu possa me sentir confortável. Tem
muita coisa para fazer na literatura, muita coisa para divulgar, faço a Balada Literária, que chegou ao quinto ano em 2010. Eu digo sempre que enquanto outros fazem eventos com um milhão, eu faço com “hum-milhação”. No sentido humano mesmo, de pedir força e ajuda a essas pessoas. Eu conheço muitos escritores, que são meus amigos e sabem que eu faço coisas para tirar a literatura desse casulo, dessa chatice acadêmica, e transformar em um movimento vivo, que participe da cidade, da geografia da cidade, que modifique tudo ao seu redor. Eles sempre que podem estão dispostos a participar. Se eu colocar dinheiro como primeiro plano, eu não vou fazer nunca! Eu gasto meu dinheiro e graças a Deus eu posso gastar. A cada edição da Balada Literária, eu fico falido, mas, no entanto, eu encontro parceiros: o Sesc Pinheiros, a Biblioteca Alceu Amoroso Lima, a Mercearia São Pedro, o Ó do Borogodó. Então, desenho uma programação com o apoio dos parceiros. Tem a parceria dos escritores também, quando eu digo: “Não tenho dinheiro, pelo amor de Deus!”. E eles vão mesmo assim. No ano passado, eu encontrei, em Porto Alegre, o Fabiano dos Santos, que cuida da parte de literatura do Ministério da Cultura, e ele falou assim: “Marcelino, eu vi no jornal que vai ter a 4a edição da Balada Literária, por que você ainda não nos procurou?”. E eu disse: “Fabiano dos Santos, por que você ainda não nos procurou?”. Acho que o Ministério da Cultura também tem que ter um olhar. Não é só dizer: “Manda um projeto!”. Que inferno da porra! Eu sei que tem que mandar projeto, mas ou eu faço projeto ou eu faço a Balada Literária. Um projeto é uma burocracia danada. Pede documento daqui, pede documento dali, parece um crediário das Casas Bahia, uma pergunta atrás da outra. Tem hora que é tanta pergunta, tanta papelada no meio do mundo, que eu não aguento. Estou me profissionalizando, mas o ministério tem que ter essa vontade que mostrou, de ir atrás. Agora eu tenho uma pessoa que já está fazendo o projeto para ter um pouco de descanso, no sentido de infraestrutura mesmo. E de pagar os autores e de pagar todos igualmente.
Não dá para ficar submisso ao incentivo público, às políticas públicas. Como fomentar esse agito? Tem que se pensar isso, não é?
Tem que se pensar. Esse governo, inclusive, abriu muito o diálogo para a literatura. Não lembro de nenhuma outra fase em que eu tenha ido várias vezes à Brasília para responder ou para saber o que está acontecendo. Mas é aquela coisa, tem que mandar o projeto. Eles não estão olhando ainda. Em Belém, estão produzindo a duras batalhas e o governo poderia ajudar, perguntar o que eles estão precisando para poder continuar produzindo, que é importante para a literatura. Eu faço parceiros, amigos. É um jogo de futebol. Você joga a bola para o outro, o outro pega, vaivém. É uma parceria, um exército contra a mesmice, contra essa concorrência desleal com as grandes mídias e as grandes tecnologias. Vem um monte de gente falar do Kindle, do iPad e não acaba! Mas não faço parte dessa discussão tecnológica no seu extremo. Faço parte, claro, da discussão sobre os direitos autorais. Até então, as editoras estão nos escrevendo para discutir como serão os direitos autorais desses livros que estão sendo digitalizados. Acho que o que não pode é pagar apenas 10% para os autores. Se pagavam 10% no livro impresso, no livro digitalizado não tem sentido pagar só 10% ao autor. Não tem distribuidor, papel, não tem tinta, não tem transporte, como é que pode o autor só receber 10%? Essas discussões são importantes.
Você lançou dois livros por conta própria e lançou livros por editora. Qual o papel da editora no processo de criação, de qualificação do livro?
Fiz meus primeiros livros por conta própria, Acrústico, de 1995, e EraOdito, de 1998. Depois veio Angu de Sangue, pela Ateliê. A editora é importante no sentido do profissional, da capa, de pensar o projeto, de distribuir. São pessoas que têm armas para trabalhar com isso, conhecimento para trabalhar. Os dois primeiros livros foram importantes para eu sair da gaveta, para ter uma atitude diante daquilo em que eu acreditava. Para não ficar aquele rancor de achar que o mundo está contra mim. A diferença entre eu e aquelas pessoas que dizem: “Como é que aquele Marcelino Freire, que escreve aquelas merdas, consegue que as pessoas falem dele e eu estou aqui com o meu texto?”, é que eu faço! E isso para mim é fundamental. Por outro lado, eu cresci muito trabalhando com o Plínio, que é um super editor, discute capa, distribuição, conversa. Quando você está em uma editora, os livros são recebidos nas redações de forma diferente, não é um livro independente, já passou por uma filtragem. O Angu de Sangue saiu pela Ateliê Editorial com um prefácio de João Alexandre Barbosa. Já era uma filtragem naquelas pilhas e pilhas que os jornais recebem diariamente. Nesse sentido, de recepção do seu trabalho, você vai para um outro patamar. Quando recebi o convite da Luciana Villas-Boas para ir para a editora Record, conversei com o Plínio e ele falou: “Vai embora porque a Luciana vai conseguir fazer coisas com você que eu, como pequena editora, não consigo”. E fui. Mas quando cheguei para conversar com a Luciana, já tinha esse histórico de diálogo. Eu dizia para ela que a única coisa que eu não queria na Record era ficar diluído, porque eles publicam muito, e não quero ser só mais um livro publicado. Eu quero, por exemplo, acompanhar a capa, quero ter esse diálogo, essa conversa. Com Rasif: mar que arrebenta, de 2008, foi a mesma coisa. Ela me deu carta branca e eu acompanhei todo o processo, dialogando, sugerindo revisão e outras tantas coisas. Você dialoga com o profissional da área e isso ajuda muito na continuação da sua trajetória, a continuar amadurecendo naquilo que você faz.
E sobre o momento atual? Como ajudar os movimentos que estão saindo do casulo? Quais as necessidades de fomento e de políticas públicas hoje?
Quero conhecer quais são os meus vizinhos latinoamericanos e dos países que falam a língua portuguesa, eu quero esse intercâmbio. Quero ir para lá e que eles venham para cá, quero antologias, residência dos escritores. Isso não rola ainda. O escritor tem que circular pelas universidades do Brasil quando lança um livro, para discutir com os seus leitores. Mas tem que circular com as universidades preparadas para recebê-los, saber quem eles são, o que eles estão fazendo ali. Eu sinto muito a falta dessa integração maior da língua portuguesa. E quando eu digo língua portuguesa ou latinoamericana é porque tem muita coisa ainda para conhecer dos nossos vizinhos em língua, vizinhos em território. É lógico que também quero conhecer o inglês, o americano, o francês, mas acho que se começasse em uma articulação com essas pessoas que falam a nossa mesma agonia, seria um ponto positivo demais. Coisas também de políticas públicas, de verbas para o setor criativo, é uma briga longa. Com o movimento Literatura Urgente – junto com Ademir Assunção, Ricardo Aleixo, Sergio Fantini –, já conseguimos ter bolsas de criação que a Petrobras está dando. Quando se fala em políticas públicas para essa área, se fala muito no livreiro, no editor, no distribuidor, mas e o autor?
Estive em Brasília para uma reunião da câmara setorial e conferência nacional. É uma coisa que vai definir uma política do Fundo Nacional de Cultura, do destino das verbas. Os livreiros estão lá, mas os escritores, não. Ficava eu lá me esgoelando, mas conseguindo mudar a redação de alguma coisa. É uma briga constante. Agora, repito, isso é pontual, porque nunca o Ministério da Cultura deu essa abertura de diálogo. Mas a gente tem que estar o tempo todo cutucando. Tem quem diga que o escritor só precisa de um papel de pão e uma caneta na mão. Mas que visão romântica é essa? Poeta não come, não tem família? O poeta Manoel de Barros disse uma coisa maravilhosa: “Minha poesia não gosta de dinheiro, mas o poeta gosta!”. Você precisa viver.
O escritor precisa ser um empresário da própria obra? Mobilizar, divulgar, cuidar?
Eu publico um livro a cada três anos. Eu não escrevo tanto, mas sou uma pessoa muito inquieta, não sou aquele escritor no casulo. Aí vou aprendendo com esses irmãos de batalha, com o que Ivam Cabral e os Satyros fizeram na Praça Roosevelt, com o Sérgio Vaz na Cooperifa. Aprendo com eles o que o Glauco Mattoso uma vez falou: “É preciso interferir na geografia das coisas”. O Manoel de Barros fala outra coisa que eu acho ótima: “É preciso esfregar pedras na paisagem”. Nesse sentido, tenho um trabalho, sim. Tenho o criativo, a coisa artística, que é o que me basta como artista. Aquilo que quero resolver como sufoco, como agonia, como vingança, eu já resolvo artisticamente. Depois de escrever o meu continho, vamos para a luta, vamos produzir livro, ver quem está escrevendo coisa nova, ver como juntar essas turmas todas para formar esse exército, esse grupo. Não dá para ser escritor em uma redomazinha. Não sou desse tipo, eu não me aguento. Essa teimosia da minha mãe, que saiu do sertão semi-analfabeta, é o que me guia para qualquer coisa. O escritor que não se envolve socialmente, não se articula com as pessoas, está de brincadeira. Ele está achando que é um Deus, um santo? É Vaticano agora? A coisa se resolve é na luta, é no dia-a-dia.
Entrevista realizada por Aloisio Milani e Sergio Cohn no dia 2 de maio de 2010, em São Paulo.