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Entrevista completa com Adhemar Oliveira, para o Produção Cultural no Brasil

Adhemar Oliveira gostava de exibir filmes no colégio. Logo, virou cineclubista. Início nada surpreendente para aquele que é hoje um dos mais bem-sucedidos empresários do ramo de exibição, sócio-diretor das redes Espaço Unibanco/Unibanco Arteplex. “Um programador é aquele que conhece, que viu, que experimentou”, diz. “Desenvolvi um senso bom de programação, juntando à sociologia que fiz e também a um feeling sobre o gosto das pessoas.” São muitas as encruzilhadas que, segundo Adhemar, precisam ser resolvidas no circuito exibidor. O próprio esmagamento dos cinemas de rua, ele crê, acompanhou um refluxo dos cineclubes. “O cineclubismo dos anos 70 era uma arma política, mais do que uma arma cultural.” Para ele, o fim da ditadura acabou com os filmes proibidos, o que fez minguar a figura do cinéfilo cineclubista. Mas Adhemar aposta na retomada dos cinemas de rua. “Porque advém da insegurança, o maior inimigo do cinema. Só que a existência do cinema devolve a segurança.” Adhemar aponta várias causas para o achatamento do circuito exibidor – de 5 mil salas, nos anos 70, para cerca de 2 mil, atualmente. Uma delas é o DVD, que de certa forma acabou com as reprises no cinema. Outra é a ideia de que cinema tem que existir necessariamente em shoppings. Mas, como perspectiva, ele aposta que a superação da película pelo digital tende a fazer com que o cinema consiga se expandir mais. “Aquele custo de fazer cópia, de transportar para Maranhão, Manaus, vai desaparecer.” Como começou a sua relação com o cinema? Exatamente pela exibição. Fiz o colegial em Ourinhos, na divisa de São Paulo com o Paraná. E lá, eu batalhava para alugar filmes e passar na quadra de esportes do colégio. Quando vim para São Paulo e entrei nas ciências sociais da USP, tinha um cineclube chamado Cineclube Barracos. Comecei a participar ali. Prestei um concurso e entrei no Banco Central do Brasil, no prédio da Avenida Paulista. Montei um cineclube lá dentro, passando filmes de 16 milímetros. Quando terminei a faculdade, queria ir embora do país e pedi demissão. Estava com 24 anos, cabeça feita, sonhando em fazer pós-graduação no México. Um amigo me convidou para dirigir o Cineclube Bixiga, que ele havia montado há seis meses. Era um negócio que estava dando certo, mas as contas estavam todas bagunçadas. Peguei o Cineclube Bixiga em 1981, se não me engano, e o dirigi durante um ano. Era o primeiro no Brasil com uma postura independente, não era vinculado a escola, a igreja ou ao sindicato. Existia na rua. Era um cinema, mas no formato de cineclube. Aprendi ali a projetar, programar em 35 milímetros. Depois de um ano, dei as chaves, saí de São Paulo e fui para o Rio de Janeiro. Fiquei escrevendo textos, ganhei dois prêmios em textos para teatro, tinha um envolvimento com o teatro, mas sempre olhando os navios para ir embora do país. Aí foi ficando menor a ideia de ir embora, porque me envolvi na Federação de Cineclubes, com o Cineclube Macunaíma, da Associação Brasileira de Imprensa (ABI). Programei ali durante dois anos e meio, virei meio band leader da turma. E parti para criar um cineclube maior que o Bixiga, que foi o Cineclube Estação Botafogo. Nesse histórico de USP, Bixiga e depois Rio de Janeiro, como é que você desenvolveu a programação em cinema? Sempre gostei muito de ver filmes, de tudo quanto é tipo. Na época não existia o CineSesc, o cinema do Sesc era no Teatro Anchieta, onde passavam filmes peruanos e outras coisas. O Museu da Imagem e do Som (MIS) de São Paulo passava filmes brasileiros. Todos bem baratinhos ou de graça, para estudantes. Eu corria atrás e via quase tudo. Por leitura, você sabia de mais coisas que não via. Não chegavam coisas que você queria ver. Um programador é aquele que conhece, que viu, que experimentou. Não adianta falar de um programador que não experimentou. Por que um filme dá certo e o outro não? Eu desenvolvi um senso bom de programação, juntando com a sociologia que fiz e também com um feeling sobre o gosto das pessoas. Programação é um jogo de sedução. Você pode apostar todas as fichas em um filme, mas se você não olhar com o olhar do espectador, você está programando para você. Normalmente, você programa para o outro, então você sempre tem que estar se travestido de espectador para programar. Isso eu aprendi primeiro indo ao cinema. É preciso pensar na formação de público, mas também trazer o novo, induzir aqui, colocar algo estranho ali. Como fazer esse jogo? Falando mais do próprio Bixiga e do Cineclube Macunaíma: naquele momento, eu não criava plateia. Porque na verdade a plateia já existia. O que não existia era inteligência, sabedoria, discernimento, de quem estava do lado da proposição. Existia um público para as reprises. Lembro que em 1981, no Cineclube Bixiga, passamos toda a nouvelle vague, Bergman, com um sucesso enorme. Tinha um bando de jovens querendo conhecer. Na época, não tinha nem VHS e nem DVD. Essa percepção de que já existe uma plateia formada foi o que deu o insight de dizer: “Dá para apostar”. Na época, eu não era empresário, não sabia como levantar. Para montar, por exemplo, o Estação Botafogo, o nosso patrocínio foi um empréstimo de cerca de US$ 50 mil para pagar em doze meses, do Banco Nacional. Nesse momento, a gente talvez estivesse criando plateia, mas o primeiro ponto – e daí a noção do sucesso da coisa – foi que nós estávamos atendendo a uma demanda que já existia, pessoas que queriam ver aquilo. Na sequência é que trabalho para uma formação de plateia, porque começo a ir ao Festival de Cannes: “Já que vocês não compram, vou lá comprar os direitos dos filmes e trazer”. Chegou um momento em que a gente lançava filmes aqui que Nova York e Paris não tinham ainda. Isso a partir do apoio dos consulados da França, da Alemanha, do Japão, do Instituto Goethe, ou coisa

Entrevista completa com Thomaz Farkas, para o Produção Cultural no Brasil

Aos 86 anos, Thomaz Farkas fala pouco e se queixa da própria memória. Nascido na Hungria, imigrou aos seis anos com a família para o Brasil, na década de 1930, e tornou-se um dos grandes nomes da fotografia moderna. A história começa com o seu pai, fundador da loja Fotoptica, especializada em equipamentos fotográficos. Farkas vivia entre profissionais e conciliava o curso de engenharia com a paixão por imagens. Ainda trabalhando na loja do pai, Farkas reuniu amigos conhecidos para uma ideia simples: documentar lugares e pessoas pelo Brasil, uma espécie de biblioteca em imagens da cultura popular, em fotos e vídeos. “Esse era o princípio da coisa: como é o Brasil do Norte, como é o Brasil do Sul, como posso ilustrar isso? Os filmes são do Brasil inteiro. A proposta era estudar, correr e documentar o país, em diversas fases.” Para isso, usava dinheiro do próprio bolso. De acordo com o também fotógrafo Maurice Capovilla, “Farkas foi o mecenas e o arquiteto de um novo cinema documentário que nasceu em São Paulo no início dos anos 60”. O jornalista Luiz Zanin Oricchio completa: “Não existe nenhuma incoerência em dizer que um húngaro nascido em Budapeste é o mais brasileiro dos brasileiros.” Farkas registrou um sem-número de lugares e pessoas, incluindo o gênio Pixinguinha e o rastro de Francisco Julião. Sua obra hoje está no acervo da Cinemateca Brasileira, que foi fundada por seu amigo e, na época, estudante de filosofia Paulo Emilio Salles Gomes, junto com Decio de Almeida Prado e Antonio Candido de Mello e Souza. Diversas publicações reúnem seu trabalho: Thomaz Farkas, fotógrafo (Melhoramentos, 1997), Thomaz Farkas (Edusp/Imprensa Oficial, 2002), Thomaz Farkas – Coleção Senac de Fotografia – volume 10 (Senac, 2005) e Thomaz Farkas, notas de viagem (Cosac & Naify, 2006). Como era fazer a Revista da Fotoptica? Entrei na Fotoptica e já estava na Escola Politécnica. Ia para a loja trabalhar e atender à clientela. A revista nasceu comigo. Começamos a fazê-la porque era um meio de promover a fotografia. Fizemos cento e tantos números. Era uma espécie de propaganda da Fotoptica. Era mensal, se não me engano. Era muito interessante e produtivo, a revista era universal, dada à fotografia, à ótica, ao cinema – que era o que nós trabalhávamos. Fazia fotografia e cinema ao mesmo tempo. Desde os nove, dez anos, eu mexo com fotografia. O cinema entrou logo em seguida, porque a Fotoptica tinha equipamento e eu comecei a trabalhar, filmar, revelar. Era preto e branco, depois veio o colorido. Me dediquei muito ao que existia no Brasil, tanto às pessoas como aos lugares. Eram reportagens que eu fazia, uma coisa muito pessoal. A Caravana Farkas surgiu desse interesse? A Caravana Farkas corria o Brasil inteiro. Eu tinha uma caminhonete Chevrolet C-14 com uma plataforma em cima. Percorremos o país todo filmando, fotografando e fazendo uma espécie de cobertura interessante sobre as pessoas, os costumes e os usos. Como é que era o Brasil do ponto de vista cultural, econômico e físico. Éramos três pessoas que se revezavam nesse trabalho. Tinha o motorista do carro, que geralmente fazia o som, tinha um fotógrafo e eu, que fazia a direção. Por que você quis fazer filmes sobre os costumes do Brasil? Eu tinha uma preocupação política. Nessa época, todo mundo tinha uma preocupação política na vida. Eu era estudante na Politécnica. Os filmes tinham viés político, tinha um viés de estudar o que acontecia nos lugares, como as coisas aconteciam. O conhecimento do Brasil era muito interessante. Esse era o princípio da coisa: como é o Brasil do Norte, como é o Brasil do Sul, como posso ilustrar isso? Os filmes são do Brasil inteiro. A proposta era estudar, correr e documentar o país, em diversas fases. Por isso fizemos tantos filmes. Como foi a escolha dos lugares? Tivemos a assessoria de um professor de geografia humana. Havia uma espécie de preparação sobre o que acontecia em cada lugar. Nunca fui a nenhum lugar sem uma assessoria, sem uma pesquisa prévia feita com vários geógrafos. Tínhamos várias propostas: do Norte e Nordeste até São Paulo; do interior até o Sul etc. A gente tinha mobilidade e filmava desde a geografia física até geografia humana, que era a coisa mais interessante que havia. Eu tinha isso como modelo de vida, a gente se interessava pelo país que vivia. E isso deu um resultado satisfatório. Todos os filmes que fiz me satisfazem muito. Era mais do que o simples gosto pela fotografia. Minha preocupação era a de documentar. Desconfiava o que era o Brasil, mas não tinha certeza. Nós fomos atrás da desconfiança, atrás desse professor de geografia, que nos ensinava: “Olha, nesse lugar tem isso, se faz isso, se faz aquilo”. Em vez de fazer um filme, fazia dois ou três. Tinha essa possibilidade, porque o dinheiro era meu. Não devia nada a ninguém, só a mim mesmo. E não era uma época de coisas caras. Eu podia financiar com o dinheiro que tirava da Fotoptica. Era muito pouco dinheiro em comparação ao que se gasta hoje. E eram quase todos amigos. Era mais uma questão entre amigos, mas era profissional, todos recebiam um salário, ninguém trabalhou de graça. Eu chegava, por exemplo, no Nordeste e dizia: “O que é que se planta aqui? O que acontece nessa cidade? Como é que é a vida?”. Tentei documentar tudo isso por meio dos filmes. Como foram as participações do Affonso Beato e do Maurice Capovilla nesse projeto? O projeto alcançava muita gente. Em cada lugar a gente levava alguém. Se fosse no Nordeste, levávamos alguém de lá; se fosse no Sul, alguém do interior. Eram muitos colaboradores. Como diretor da brincadeira, eu manobrava as coisas, mas não dirigia todos os filmes. Capô (e esse pessoal todo) veio trabalhar conosco. Vocês devem ter vivido muitas histórias… O carro quebrava muitas vezes, assim como a filmadora. Tinha problema de iluminação. A gente fazia as coisas conforme a possibilidade. Como as pessoas reagiam ao serem filmadas?

Entrevista completa com Heloísa Buarque de Hollanda, para o Produção Cultural no Brasil

  Heloísa Buarque de Hollanda é graduada em letras clássicas, mestre e doutora em literatura, com pós-doutorado em sociologia da cultura. Com trânsito livre no meio universitário, suas opiniões sobre a vida acadêmica são contundentes: “Defesa de tese é uma situação patética”, “Pós-doutorado não passa de um projeto de extensão porque não dá grau”, “A universidade está perdidaça”.   Também sócia da editora Aeroplano, Heloísa tem nos estudos culturais seu principal campo de interesse. Nesta entrevista, ela lembra da própria transformação intelectual, desde a idealização da periferia na época do Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes (CPC/UNE), nos anos 60, até recentemente, quando ouviu do escritor Ferréz a frase: “Não vou à universidade, minha miséria é minha e não te dou”. Naquele momento, Heloísa concluiu ter perdido o “emprego como missionária intelectual”. Foi, no entanto, a descoberta de um novo caminho.   O imobilismo das premissas acadêmicas absorve grande parte das preocupações desta pesquisadora. “As regras acadêmicas são completamente paralisantes. Você não pode inovar em uma tese, porque você tem que se defender. E inovação é sempre uma área de risco”, diz. Heloísa está envolvida ainda coma Universidade das Quebradas, um espaço de troca entre a academia e a periferia do Rio de Janeiro, e tem buscado estudar a influência do mundo digital na cultura. Heloísa, como tirar a pesquisa acadêmica do vício das teses? É difícil demais! Fico convencendo os meus orientandos a não fazer tese:“Acabem logo com isso, pula essa fogueira”. É impossível trabalhar com oformato tese. Não há liberdade nenhuma, você não pode mudar sua proposta. Para mudar tem que fazer uma petição, uma explicação, todo mundoconcordar, etc. Você tem um formato que é rígido e que ninguém conseguedriblar. Você tem que colocar a palavra “comunicação” um número “x” de vezes em uma tese para ela ser reconhecida pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). O que você acha disso? É quase impossível. Eu boto logo no título: “Produção de livro e comunicação”. De outro modo, a tese não é reconhecida. A palavra-chave é que vale, não o conteúdo. É uma loucura. As regras acadêmicas são completamente paralisantes. Tese é uma coisa do século 19, do começo do século 20, não foi revista nunca. Tem que acabar com isso. E a defesa de tese? É uma situação patética. A banca tem obrigação de colocar você em uma posição de ré, de defesa. Você escreve uma tese – sei porque tive milhares de orientandos – para se defender. Não para inventar, ultrapassar fronteiras, inovar. Você não pode inovar em uma tese porque você tem que se defender e inovação é sempre uma área de risco. Acaba sendo burrice você fazer uma tese propondo inovação, porque na defesa você não vai ter segurança, não vai saber consolidar. É uma fogueira que você tem que pular por ritual e começar a trabalhar depois. A universidade está engessada? Você sente isso? Na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), tenho um programa chamado Programa Avançado de Cultura Contemporânea (PACC), ligado ao Fórum de Ciência e Cultura. O formato não é o de um centro, instituto ou núcleo. É um programa, o que, na prática, não é nada. É o seguinte: você tem três projetos dentro de um programa. E acaba no dia que acabarem os projetos. Não tem diretor, não tem coordenador, não tem equipe, eu não sou ninguém institucionalmente. Descobri isso depois de ter feito o Centro Interdisciplinar de Estudos Culturais (CIEC). Inventei o PACC, que é um programa, e disseram: “Por que você não quer ser uma unidade orçamentária?”. Porque eu não posso receber dinheiro. Quem recebe é o fórum ao qual estou vinculada. Sou apenas um programa. Se eu abrir essa deixa de receber dinheiro, eu não trabalho! Porque eu vou ter uma dose de controle sobre mim insuportável. Inventei esse programa e junto com ele uma associação de amigos. Quando tem uma verba internacional, uma coisa difícil, eu giro por ali e repasso para a universidade. Olha, para sobreviver na universidade, tem que ter muito macete. Agora, estou feliz com esse último processo. Trabalho com uma desenvoltura que eu nunca tive na universidade: “Não sou ninguém, tenho um programa de pesquisa, mas não tem nada além de um programa de pesquisa”. É uma pesquisa minha, individual. Ridículo que a universidade não possa capitalizar isso: quem capitaliza sou eu. Não pertenço praticamente à universidade, é um absurdo! Nesse programa, eu percebi que as pessoas fazem tese e depois entram em orfandade profunda. Como assim? Até a tese, há a figura do orientador, existe a tal banca, você é uma referência, escreve pensando no que a banca vai perguntar. Então você tem aquele entorno todo que te suporta um pouco. Aí você vira doutor e não tem mais interlocutor na universidade. Não tem espaço nenhum onde você possa discutir ideias. Acabou. Tornou-se doutor e acabou sua carreira. Você não tem mais o que fazer depois, não tem espaço para continuar dialogando.Você vai dar aula, vai ser orientador, vai ser chefe de departamento, um monte de coisa dos conselhos, mas não tem espaço de invenção, é um horror. Você perde o poder de fala com os seus pares. Para fugir disso, eu fiz o programa de pós-doutorado, uma delícia total. Criei um ambiente onde as pessoas vão, se encontram uma vez por mês e falam o que quiserem. Todo mundo opina, é isso, é um ambiente, mais nada. Você não deve entregar nada, aliás, entrega um artigo para poder ter o certificado, que é um certificado também que não vale nada, e faz um verbete para o Wikipedia, que é para divulgar. Tem gente com bolsa de pós-doutorado, só que eles não sabem para onde vão porque não tem nem um programa de pós-doutorado, porque não interessa à universidade. Interessa que você vá para fora. Você pede um pós-doutorado para Paris e ganha, certamente. Se tiver um mínimo de produção, você vai para Paris, para o México, para qualquer lugar, menos ficar no

Entrevista de André Midani ao Produção Cultural Brasil

Depois de passar a infância e a juventude com a família em Paris, o sírio André Midani fugiu na década de 50 para não ter de lutar na Guerra da Argélia. A ideia era se estabelecer em Buenos Aires, contudo o navio ancorou antes no Rio de Janeiro. Encantou-se e decidiu ficar por ali mesmo. Começaria a carreira de um dos ícones da indústria fonográfica, responsável pelo sucesso de grandes nomes brasileiros. De origem síria, e sem falar português, conseguiu emprego em menos de 72 horas na gravadora EMI-Odeon, respaldado apenas pela experiência de balconista que tivera em uma loja de discos na França. Midani descobriu músicos como Carlos Lyra, Roberto Menescal, Nara Leão. Mas quando mostrou a um executivo o disco Chega de Saudade, de um obscuro baiano chamado João Gilberto, ouviu a avaliação de que aquilo não passava de “música para viado”. Septuagenário, Midani acompanhou in loco o alvorecer e a derrocada da indústria de discos. Conhece, portanto, os mecanismos que regem a dinâmica que determina o sucesso – ou não – de um artista. Critica o jabá por uma questão moral. “Depende para que você o utiliza.” Midani surpreende ao afirmar que pagou para que artistas sob sua alçada tocassem nas rádios. “Se você usa um jabá porque o programador é uma pessoa sem gosto musical e você tem um artista de valor, é um bom investimento.” Como começou o seu trabalho como empresário de música no Brasil? Aconteceu meio por acaso. Eu estava na França, comecei a trabalhar na indústria fonográfica, em postos modestos, mas com muito entusiasmo e, um dia,veio a Guerra da Argélia. Todas as guerras são estúpidas, mas essa tinha um conteúdo mais estúpido do que muitas outras. Sendo eu metade árabe, achei incongruente fazer uma guerra contra os árabes. Então desertei. Peguei um navio, pensava em ir para Buenos Aires, mas quando ele entrou na Baía da Guanabara, achei que era a coisa mais bonita que eu já tinha visto na vida. Não conhecia ninguém, não falava a língua, mas procurei trabalhos em companhias de disco. Três ou quatro dias depois comecei a trabalhar. Minha função, durante certo tempo, foi selecionar o que se chamava de “repertório internacional”. Em paralelo, um fotógrafo me apresentou a um grupo de jovens, amigos dos seus filhos, me dizendo: “Olha, eles fazem música, não sei se ela é boa, mas são ótimas pessoas e tenho certeza que o senhor vai se dar bem com eles”. Marcou-se um dia para nos encontrarmos e entraram Roberto Menescal, Carlinhos Lyra, João Bosco, Nara Leão, essa gente toda. Tocaram e eu achei fantástico! Pouco depois, por coincidência, eu conheci o Tom Jobim, o João Gilberto. Ali se formou o que seria chamado depois de bossa nova. Você menciona em seu livro que a gravadora não conseguia alcançar esse público. Como foi essa questão? O difícil era se comunicar com a juventude brasileira de então. Porque toda  a estrutura de jornais, rádio e televisão estava organizada confortavelmente para lidar com as grandes vozes que, já naquela época, eu chamaria “do passado”. Quando o João Gilberto saiu do estúdio tendo gravado o Chega de Saudade, fui à São Paulo poucos dias depois para mostrar essa maravilha. Toquei o acetato para um gerente comercial da Odeon. Ele chamou os vendedores, porque eu tinha dito que ia apresentar uma coisa monumental. No fim, ele tirou a agulha, pegou o acetato, jogou no chão e disse: “Isso, meu filho, é música para viado! Nunca vai tocar! Nunca vai vender!”. E ele não fez isso de maldade. Então, o que a gente fez foi passar por cima de todas as mídias. Tanto no Rio quanto em São Paulo, a gente ficava na saída dos colégios e distribuía o Chega de Saudade em 78 rotações. Não milhares, mas várias centenas aqui e outras centenas no Rio. Os meninos que ganhavam os discos gostavam, recomendavam aos amigos. Eles se tornaram os divulgadores. Telefonavam para as estações de rádio, queriam que elas tocassem isso, tocassem aquilo. E a gente organizou concertos em colégios e faculdades. O resto da história, vocês conhecem. Quem é André Midani na cena musical brasileira? É um camarada que não era nem músico, foi um péssimo baterista, mas adorava a música. Trabalhou feito um danado o tempo todo para ser o melhor empregado possível a serviço do artista. E quando digo “a serviço do artista” não é de uma forma demagógica. Fui adequado e capaz para um número substancial de artistas. E a sorte é que eles ficaram muito conhecidos posteriormente. Devo ter sido excepcionalmente rigoroso, decepcionante e rude com outros artistas com os quais eu não tinha uma grande afinidade ou confiança. André Midani é esse. Naquela época, os empresários – meus colegas de companhias de disco – tinham por missão ou vocação fazer com que a fábrica fosse bem administrada, que os depósitos estivessem bem sortidos, que os estúdios de gravação fossem rentáveis. Havia esta tradição no mercado de discos de que o patrão era uma pessoa que cuidava dos ativos da companhia. Eu, muito cedo, entendi que o melhor ativo de uma companhia de discos são os seus artistas. Porque uma fábrica e um estúdio, ou você tem ou você aluga. Agora, você não vai alugar um artista! E não é uma fábrica que vai te fazer vender discos. É o artista e o marketing sobre ele – essa palavra que todo mundo acha horrorosa. Marketing é uma palavra cujo uso e abuso a tornaram vulgar, mas inicialmente é uma coisa indispensável e honrada se você a utiliza bem. Então, tentei te responder quem é o tal André Midani (risos). Você se vê como um empresário da música? O que é isso, afinal? É um privilégio, porque é um desafio a busca do equilíbrio. Você tem o lucro de um lado e o artista do outro. Existem artistas de qualidade e lucro de qualidade. Isso é uma coisa que não é tão fácil. Você pode ter lucro formidável com artistas que

Entrevista completa com Marcelino Freire, para o Produção Cultural no Brasil

“Depois de escrever, vamos para a luta, vamos produzir, ver quem está escrevendo, juntar turmas para formar um exército.” Quando o escritor Marcelino Freire encontrou o poema O Bicho na gramática do irmão mais velho, descobriu que queria ser poeta. “O bicho, meu Deus, era um homem”, escreveu Manuel Bandeira. “Descobri que Bandeira era pernambucano também, falava de ruas que eu conhecia, Rua da União, Rua da Aurora, falava do Rio Capibaribe.” Nascido no ano de 1967, em Sertânia (PE), Marcelino é de família grande e pobre. Estudou e chegou ao curso de letras. Largou o trabalho de bancário para se dedicar a conhecer escritores pernambucanos. “Eu queria interlocutores, queria um diálogo, queria saber como o meu texto batia no ouvido do outro”, afirma. Em São Paulo, a carreira literária de Marcelino foi impulsionada pela mesma inquietação. Reuniu novos escritores para trocar ideias, incentivar pequenas editoras, publicar livros e organizar antologias. Por esse caminho, acabou por afirmar a existência de uma nova geração literária. Entre seus livros publicados estão Angu de Sangue (2000), Contos Negreiros (2005) e Rasif: mar que arrebenta (2008). Há cinco anos organiza a Balada Literária em São Paulo, evento que reúne dezenas de escritores nacionais e internacionais. “Digo sempre que enquanto outros fazem eventos com um milhão, eu faço com ‘hum-milhação’ ”, brinca. Sobre política cultural, defende a adoção de intercâmbios, residências artísticas, bolsas de criação e circulação de escritores nas universidades. Como a literatura chegou até você no interior de Pernambuco? Eu nasci em Sertânia, no sertão de Pernambuco. Sou o caçula de uma família de nove filhos. Uma família que não tinha biblioteca em casa, não tinha livro, não tinha água. Então, como é que eu me interessei por literatura? Como eu tive vontade de ser escritor em uma casa que não estava cercada disso, que não era movida por isso? Foi quando eu li um poema do Manuel Bandeira em um livro da escola do meu irmão mais velho. Eu estava com nove para 10 anos de idade, li um poema chamado O Bicho [“Vi ontem um bicho / Na imundice do pátio / Catando comida entre os detritos. / Quando achava alguma coisa; / Não examinava nem cheirava: / Engolia com voracidade. / O bicho não era um cão, / Não era um gato, / Não era um rato. / O bicho, meu Deus, era um homem” (1947)]. Pensei que queria fazer o que aquele cara fazia, queria ser poeta. Descobri que ele era pernambucano também, falava de ruas que eu conhecia, Rua da União, Rua da Aurora, falava do Rio Capibaribe. Ele não queria ser engenheiro, pedia desculpas ao pai por ser um poeta menor. Eu queria ser esse poeta menor. Minha família era sertaneja e queria que seus filhos estudassem, mas para ser engenheiro, médico, advogado. Nunca vi uma mãe dizer que queria que o filho fosse poeta. De certa forma, Manuel Bandeira me ajudou a não ser econômico, no sentido de pensar minha vida economicamente. Comecei escrevendo alguns poemas,imitando o Bandeira, querendo ser doente como o Bandeira, tuberculoso, comecei até a ensaiar umas tosses. Juro! Quando tinha mais ou menos 10, 11 anos, descobri que tinha sopro no coração. Isso foi minha glória literária! Ia pelos hospitais, pelos corredores. Bandeira abriu essa porta, me deu a vontade de ser escritor. É meio ficcional essa tuberculose do Bandeira. Que tuberculoso fuma dois maços de cigarro por dia e sobe ladeira em Santa Teresa (risos)? Tem um crítico literário que encontrou Manuel Bandeira um dia na rua e disse: “Você é uma fraude! Desde muito tempo você disse que ia morrer e não morre nunca!”. Eu gostava muito dessa figura. Meus irmãos iam jogar bola, andar de bicicleta, mas eu nunca quis saúde não. Gosto do Bandeira porque ele me doutrinou a ser doente. As pessoas vão atrás de saúde, eu não. Quanto mais um artista me deixa doente, mais eu gosto dele. Como foi esse começo de vida de escritor? A vivência em Pernambuco e a vinda para o Sudeste? Escrevia e participava de grupos de poesia. Fiz curso de letras, mas não terminei. E tinha um amigo que sempre me chamava para vir para São Paulo. Eu dizia: “Ah, o que eu vou fazer em São Paulo?”. Eu trabalhava em um banco como revisor de textos, era uma carreira no banco que estava se apresentando, eu fui office boy, escriturário, revisor. Mas eu disse: “Não quero banco. Cadê o Manuel Bandeira, cadê minha poesia, cadê os escritores dessa cidade?”. E aí eu deixei o banco e passei dois anos conhecendo os escritores do Recife: Raimundo Carrero, Ronaldo Correia de Britto, Wilson Freire. Eu fui conhecer todos eles e fazer cursos, encontrar esses escritores na cidade, esses artistas, poetas. Quando o dinheiro acabou, aceitei o convite de vir para São Paulo. Mas como foi a procura pelos escritores no Recife? Eu queria interlocutores, queria um diálogo, queria saber como o meu texto batia no ouvido do outro, que não o do meu irmão, que não o do amigo. Assim que eu saí do banco, tinha uma oficina de criação literária, que era a primeira oficina que o Raimundo Carrero ia fazer no Recife. Foi lá que eu o conheci. Além dele, conheci outros escritores que estavam ensaiando seus primeiros romances, seus primeiros livros de contos. Era uma necessidade de interlocução mesmo, para não ficar sozinho, acuado. Nesse sentido, eu já fazia teatro também, comecei muito novo, com 10 anos de idade. O teatro deu muita força para o meu trabalho, para o meu texto. Eu escrevia peças e também produzia. Com 14, 15, 16 anos, eu montava meu próprio texto e levava em temporada na escola, em teatros na cidade, sem absolutamente dinheiro nenhum, mas com muita vontade de fazer alguma coisa. Quando eu fui fazer a oficina do Raimundo Carrero, fui para encontrar esses interlocutores e para saber também o real peso ou o fracasso do que eu fazia. Naquele momento, você considerava que já tinha uma voz própria ou estava a procurando? Encontrei quando vim para São Paulo. Eu cheguei em 1991, zerado de tudo. Descobri aqui, por exemplo, que eu tinha sotaque. Isso é um caminho para você descobrir que tem uma voz. Descobri que eu tinha muita  saudade, um banzo imenso da minha família, do barulho da casa. Você começa, de alguma

Festival CulturaDigital.Br seleciona projetos por Chamada Pública Internacional

O Festival CulturaDigital.Br, que acontecerá de 02 a 04 de dezembro no Rio de Janeiro, lança Chamada Pública Internacional de Atividades: http://culturadigital.org.br/#!/chamada-publica. Por meio dela, artistas, ativistas, coletivos, redes jás formadas e em formação, realizadores de todo o mundo têm a possibilidade de apresentar seus projetos e iniciativas no encontro.  As propostas serão aceitas até 30 de setembro e, após a data, avaliadas por um time de curadores. Os selecionados terão a ida ao Festival, que acontece de 02 a 04 de dezembro no Rio de Janeiro, viabilizada pela organização do evento. Arte digital, novos arranjos produtivos, comunicação em rede são alguns dos assuntos abordados pelo evento, que tem foco em inovação e produção cultural contemporânea. Inscreva-se e programe a ida ao Rio de Janeiro no primeiro final de semana de dezembro. ———- O Festival Mais do que um evento para exposição de ideias e projetos, o Festival CulturaDigital.Br é um momento de encontro de agentes da cultura digital brasileira com seus pares no mundo. São realizadores, produtores, ativistas que atuam na intersecção entre cultura, política e tecnologia, promovendo inovações. De 02 a 04 de dezembro, o MAM-Rio e o Cine Odeon, no Rio de Janeiro, serão ocupados por palestras, debates, encontros, atividades mão na massa, exibições e performances artísticas. A proposta é articular referências mundiais e redes expressivas, a partir de questões relevantes da conjuntura nacional e global – como a função da propriedade intelectual na era do conhecimento e os avanços do movimento software livre, que integram a essência da cultura digital. A terceira edição do Festival CulturaDigital.Br emerge no cenário de massificação e apropriação das tecnologias por jovens realizadores com um perfil marcante: eles não se encaixam no que compreendemos sobre organizações e nem estão ligados a filiações ideológicas rígidas. Também estão muito mais preocupados com a prática e o processo, descrevendo e transformando a realidade. Neste debate, técnica e política jamais podem ser observadas em blocos separados. Não se trata de um movimento de negação da política, mas de confrontação das estruturas caducas. O Festival CulturaDigital.Br é uma realização da Casa da Cultura Digital, um cluster criativo na cidade de São Paulo, que abriga mais de 15 instituições. ——– Outras Edições Em 2009, quando o termo Cultura Digital era emergente e nem constava na Wikipedia, o Ministério da Cultura articulado com a sociedade civil lançou o Fórum da Cultura Digital, uma plataforma com o objetivo ser um espaço para a elaboração colaborativa de políticas públicas para o Século 21, o século das redes, da informação, da produção pós-industrial. Desse diálogo resultaram ações impactantes em defesa da cultura e do software livre e também o fortalecimento de políticas públicas em favor do compartilhamento do conhecimento, como a ação cultura digital do programa Cultura Viva; a defesa da reforma da Lei de Direitos Autorais (LDA); e a criação do Projeto de lei feito por meio de uma consulta pública colaborativa, o Marco Civil da Internet, enviado pela Presidente Dilma Rousseff ao Congresso, no dia 24 de agosto deste ano. Nas duas edições (2009 e 2010), o público presente foi além do esperado e o encontro extrapolou suas propostas iniciais. A hashtag #culturadigitalbr esteve entre os assuntos mais comentados do Twitter, figurando na lista dos Trending Topics em 2010. Nesse mesmo ano, o público online, acompanhando as palestras virtualmente, superou a audiência presencial. A edição de 2009 contou com 700 pessoas em quatro dias de evento, em 2010 o número subiu para 3.500 em três dias de atividades. Uma grande arena de contatos foi formada e redes representativas do movimento, como o Fora do Eixo, Transparência Hacker e RedeLabs viram suas propostas serem potencializadas pela conexão entre pessoas e redes. As discussões levantadas ainda ressoam na internet, por meio da rede social CulturaDigital.Br, um espaço se propõe a agregar as pessoas e o fluxo de conteúdos de forma inteligente, organizando a participação e documentando o debate, que conta hoje com mais de 8 mil membros ativos e abriga mais de 700 blogs. Uma série de registros abertos contam esse processo. Entre eles, o livro CulturaDigital.BR, o vídeo Remixofagia, o site do Fórum de 2009, o de 2010, uma série de entrevistas sobre digitalização de acervos, o projeto Retalhos, a Linha do Tempo da Cultura Digital, entre outros. Após duas edições na Cinemateca de São Paulo, o evento chega ao Rio de Janeiro e pelo caráter múltiplo de sua programação, se assume como um Festival. Palestras, debates, atividades práticas, encontros, apresentações artísticas, experimentações, inovações e invenções diversas estarão presentes. Programe a sua ida ao Rio de Janeiro!

Velhos demais para virar adultos

Uma reflexão sobre a Casa da Cultura Digital, os peixinhos de ouro e a Emília do Sítio do Picapau Amarelo por Fábio Maleronka Ferron Dia desses a Casa da Cultura Digital fez dois anos. Para quem não nos conhece, a Casa fica em São Paulo, quase no centro da cidade. Posso explicá-la de de várias formas. Tem gente que a chama de cluster criativo. Seja o que isso for, parece ser a definição mais apropriada. Basicamente, no entanto, o que importa é nossa experiência cotidiana. Hoje compõem o coletivo pequenas empresas, agências e produtoras que trabalham em economia de aglomeração cultural. Inauguração da Casa da Cultura Digital from Coletivo Garapa on Vimeo. Quem somos? Volto a dois anos atrás. Em uma manhã, rolou um encontro de um pessoal que estava querendo montar uma experiência. Tínhamos em comum essa coisa de não reproduzir o modelo das Ongs e também de não querer trabalhar na agressividade do mercadão. E precisávamos de um canto, para colocar o computador e a cerveja gelada. Durante uns três meses, a coisa ia e não ia. Estava para acontecer mas num acontecia. Pudera, né, afinal, a gente não tinha nenhum tostão furado – o que por si só é uma contingência importante. Tentamos alugar uma casa na Bela Cintra. Não rolou. Até que o Serjão Gomes, mestre de todos nós, passou pela Vitorino Carmilo e avistou uma placa de aluga-se defronte a um castelinho que serve de portal para uma vila de estilo italiano, um conjunto de sobradinhos, que inclusive serviu de locação do primeiro episódio do Castelo Rá-Tim-Bum. Quando chegamos para ver o espaço, a cara que fizemos foi muito parecida com a dos meninos personagens da série quando avistam o castelo. Naquela manhã, o raio chocou a cabeça do Frankestein. Em dois anos, fizemos muitas coisas: produzimos os fóruns de Cultural Digital; criamos e realizamos o Produção Cultural no Brasil; clonamos o Blog do Lula e organizamos uma comunidade de Transparência Hacker que tem 800 membros; organizamos também uma comunidade de recursos educacionais abertos, que está pautando a questão de forma pioneira; fizemos filmes, fotos, músicas, shows, bugigangas. A lista vai longe: tem comunidade também de vídeo livre, de fotografia digital, de compartilhamento de ciência. O que não falta são coisas sendo feitas. Mas esse texto comemorativo não se pretende a balanço do realizado. Quando chegamos, alugamos duas casas da vila. Agora já são quatro. Encontramos inúmeros parceiros e financiadores. Mas, como no início, continuamos duros. Não buscávamos isso, mas o fato de sermos pequenos, de trabalharmos de forma colaborativa e com inovação de formatos, nos coloca nesse lugar. Talvez seja o preço da autonomia. Sei lá. Peixinhos de Ouro Sempre que me perguntam sobre quem são os habitantes da Casa da Cultura Digital, respondo que vislumbro cinco tipos de perfis, os quais podem ser misturados ao sabor do freguês: jornalistas, artistas, hackers, cronópios e produtores. O espaço está sempre aberto a esse tipo de gente, e isso faz com que, bastante frequentemente, a gente receba um mundaréu de pessoas, movimentos, blogueiros e empreendedores, nacionais ou estrangeiros, que estejam pela cidade. A Casa, pode-se dizer, é um bacana ponto de encontro. De minha parte, nesse período, testei algumas brincadeiras inovadoras, como: recriar o velho Ônibus-biblioteca de Mario de Andrade – uma das mais felizes políticas públicas de cultura já inventadas no Brasil – com leitores digitais no lugar dos livros; produzir uma aranha sonora com a Geralda, do Tato Taborda, de corpo, e músicos fora do eixo conectados às patas; montar um “penetrável” de cinema, na Cinemateca, com o cineclube Mate com Angu dentro. Tem sido legal, porque minha preocupação central pode ser criar e trabalhar. Aliás, essa é um elemento importante. Há uma preocupação política espalhada pela Casa, como não poderia deixar de ser, elemento que fica ainda mais acentuado em momentos de enfrentamento como o que estamos vivendo, quando aparece uma meia dúzia querendo desestruturar importantes políticas culturais. Em geral, também, as pessoas que toleram estar no nosso cluster trafegam pela esquerda, mais para libertárias ou anarquistas. No entanto, essa preocupação política é apenas uma das preocupações, porque o lance, afinal, é criar e trabalhar. Há um ano, montou-se no porão do castelo o Garoa Hacker Clube. Outro dia passei por lá e os caras estavam mexendo no sistema que movimenta uma impressora que imprime objetos. A imagem me remeteu ao Coronel Aureliano Buendia – 32 guerras antes – na sua oficina, fazendo seus peixinhos de ouro, como descreve o clássico Cem Anos de Solidão. Velho demais para virar adulto Dois anos depois, penso no que virá. Sem dúvida, seguiremos com nossas pautas, a inventar uma produção cultural completamente diferente e a estimular as reviravoltas no nó borromeano da cultura digital. A cultura, livre dos anteparos, será ainda mais imaginativa. Por isso, viver uma nova produção é tão importante quanto os objetos, produtos, festivais, sites, shows, plataformas e peças que essa mesma produção produz. Nos resta, então, viver e fazer a “arte como modo de vida” – como diriam os neo-concretos. Esse é o salto mortal da cultura e sua cambalhota inventiva. Estamos na sociedade do remix. Pós-tropicalista. Outro dia, passei em outro canto da casa, e alguém estava manipulando um laptop, misturando trechos de músicas e imagens. A imagem me remeteu à Emília do Sitio do Picapau Amarelo, no episódio da Reforma da Natureza, quando ela pratica o remix nas suas alterações do mundo: o passarinho-ninho; o porco magro; o livro comestível; o pernilongo cantor e a reforma da personalidade das borboletas azuis. É essa a nossa proposta de mundo – o mundo do remix. O Aristóteles usa a ideia de Tiquê como uma causa oculta para a razão humana, para o “acaso”. Acho que foi o tiquê que nos fez estar dois anos juntos, brincando de meta-produção cultural, realizando workshows e vivenciando a internet de raiz. Se tem algo que posso conclamar, em homenagem a esses dois anos felizes, é que sejamos hidráulicos e objetivos. Podem até dizer que amadurecemos,

10 por cento da cultura

Veja os ensaios fotográficos feitos pelo Coletivo Garapa com 10 entrevistados em 8 estados brasileiros. “Os desafios de se produzir um discurso visual para 10% da cultura foram tão grandes e satisfatórios como devem ser sempre os afazeres culturais.”

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