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O incrível encontro das coisas que não existem

Há no Brasil uma sobreposição de imagens em relação à sua autorrepresentação na estética, que resulta em uma espantosa câmara de vozes. Todavia essas vozes se contradizem, inclusive pelo jogo das forças de mercado, do “Brasil BRIC”, o que exige um ouvido apurado para perceber os limites e as possibilidades das ações desenvolvidas no campo da cultura  brasileira. E, se a seta estiver correta, as experiências culturais ganham corpo e plenitude, sem, entretanto, a pretensão de constituir um todo orgânico, centrado em um ponto fixo de identidade. Por esse motivo, prioridades defendidas até bem pouco tempo no campo das ações culturais são rejeitadas, e em seu lugar outras primazias são aplaudidas. O Brasil hoje começa a enfrentar novas migrações populacionais com a intensificação da internacionalização multilateral, principalmente com a integração econômica e cultural com o Pacífico (China).  A alteração na geopolítica da cultura tende a se acentuar na próxima década. Nos últimos tempos, o Brasil virou rota de festivais e shows internacionais. Concomitantemente, o mundo do trabalho com a cultura passou a receber muitos produtores, curadores e artistas vindos de vários cantos do mundo. É ainda fundamental considerar nesta reflexão novos conflitos surgidos no campo da cultura no país e que são constitutivos das profundas alterações nos mercados da música, a partir da sua desmaterialização, e das artes plásticas, com a hipervalorização da produção contemporânea brasileira. Será que os milionários brasileiros vão querer construir novos “Inhotins”? Quanto às recorrências temáticas na arte contemporânea produzida no Brasil, como será sua manifestação nos próximos dez anos? Até lá como resistirão os pequenos trabalhadores da cultura? O empresário Eike Batista, em entrevista publicada pelo diário britânico The Guardian em 2010, afirmou: “O Rio será inacreditável em 15 anos”. O canto da sereia de Batista soa como uma estranha profecia. É possível pensar que a Itália foi um país extremamente criativo até o fim da década de 70, e hoje vive como num sobressalto, num  momento de supressão  artística. As imagens da RAI representam não só o país como todo o legado político do ex-Primeiro Ministro Silvio Berlusconi. Dada a pluralidade das questões que se colocam no campo das ações culturais, em 2010 a plataforma Produção Cultural no Brasil – producaocultural.org.br foi ao ar, propondo um ponto de partida para a reflexão e a discussão sobre cultura no Brasil e, principalmente, sobre a complexa cadeia que está por trás de uma produção até que esta chegue ao público. Como se produz um filme? Um livro? Uma música? Um disco? Um programa de TV? Quem financia? Por quê?  Como criar uma política pública para a cultura do país? Qual a importância dos orçamentos públicos aplicados à cultura? O objetivo da plataforma Produção Cultural no Brasil é tornar público o pensamento e as ações de importantes agentes da cultura brasileira, que muitas vezes executam seu trabalho quase sem aparecer. O projeto também se propõe a registrar saberes e experiências, o que o presente, com toda sua pressa, tenta apagar. No decorrer de alguns meses foram realizadas 100 entrevistas, mas que poderiam ser um milhão. Os depoimentos ganham força na medida em que revelam as distintas esperanças dos entrevistados. Expectativas diversas contribuem para motivações específicas, e parecem orientar esses agentes para as práticas das quais participam. O formato depoimento permitiu explorar as resistências, os limites e as  potencialidade dos entrevistados e assim observar como essas personalidades da cultura manifestam maneiras de pensar que se refletem em suas próprias experiências. A opção para a escolha dos entrevistados foi a de contrapor, sobrepor e misturar universos tão diferentes quanto os do cineasta Luiz Carlos Barreto e do cozinheiro de set Sergipe; do ex-Secretário de Cultura do Maranhão, João Batista Ribeiro Filho, e da Diretora de Patrocínio da Petrobrás, Eliane Costa; ou ainda do produtor musical André Midani e da restauradora de obras de arte Florence White. Também na lista, os três últimos Ministros da Cultura no Brasil, Francisco Weffort, Gilberto Gil, Juca Ferreira, entre tantos outros. Contudo, os diferentes depoimentos alcançam um grau de imbricação, o que possibilita, por meio da leitura do conjunto de entrevistas, uma reflexão com base em diferentes posicionamentos sobre o trabalho com a cultura. Em virtude da complexidade das questões que o panorama cultural oferece, as inquietações e as dúvidas não cessam de se fazer presentes através das vozes dos entrevistados. Que Brasil é este? Mais do que isso, de que forma no Brasil, país ainda hoje carregado de desigualdades, a cultura é entendida como um direito do cidadão? Quais os equívocos que ocorrem quando os poderes públicos, por escassez de recursos, deixam as decisões sobre o que se produz em cultura nas mãos de financiadores? Como é possível produzir cultura inovadora e experimental no Brasil? Quanto às linguagens diversificadas da cultura brasileira, que elementos elas fornecem para a produção artística? A pesquisadora Heloisa Buarque de Hollanda propõe, entre tantos outros subsídios para uma reflexão em torno das vicissitudes político-culturais que colocam as favelas de um lado e o mundo acadêmico de outro, a criação de novos caminhos, novas articulações e conexões. Hollanda enfatiza a ideia de que quando a universidade acumula conhecimento, ela já tem produção intelectual, portanto é hora de entrar no laboratório, que é com a sociedade. A criação da Universidade das Quebradas é um exemplo dessa nova forma de articulação entre a universidade e a periferia. Esse projeto não nasceu de um modelo pré-estabelecido, pois, como afirma a pesquisadora, a vida toda trabalhou em tentativa e erro. Seu objetivo é completar saberes, trocar ideias entre pesquisadores e professores da UFRJ e de outras instituições com os intelectuais da periferia. “Não sei. Tenho paixão por erro. Tudo para mim que deu certo começou errado. Não pode ter medo de errar. Não podemos saber exatamente como vai ser daqui a dez anos, mas o impulso tem que ser nesse modelo. Tem que poder transitar, fazer conexões, articulações. É preciso dar espaço para articulações: municipal, federal, estadual e universidade. Precisamos de um mapa articulado. E, não, seccionado.” Fernando Faro, criador do programa Ensaio, da TV Cultura, como Heloisa

Entrevista completa com Chacal, para o Produção Cultural no Brasil

Ricardo de Carvalho Duarte, o Chacal, é uma das referências da poesia marginal brasileira. Nascido em 1951, publicou seu primeiro livro de poesia, Muito Prazer, aos 20 anos. Envolvido com a contracultura, o rock and roll e a poesia beat, Chacal considera ter sido uma epifania a sua leitura de Oswald de Andrade. “Eu falei: ‘Cara, isso pode ser poesia?’ Essa coisa sintética, bem humorada?” Na década de 70, também foi integrante do grupo Nuvem Cigana, com Charles Peixoto, Bernardo Vilhena e outros artistas da poesia contemporânea. Chacal também é produtor cultural. Aliás, afirma que não vê “tanta diferença entre a poesia e a produção cultural”. “Da mesma forma que você trabalha um poema, escolhe uma palavra, corta um verso e faz um poema ficar em pé, você precisa trabalhar uma produção, pensar em um elenco, pensar as formas de produzir, de divulgar.” Criou, nos anos 90, o Centro de Experimentação Poética (CEP 20000) com a colaboração do também curador Guilherme Zarvos. É um “grande hangar de visionários”. Para Chacal, as feiras e bienais estão muito focadas no mercado editorial. “Acho uma coisa até meio nociva, porque a literatura passa a valer diante do que ela vende.” Em 2002, aproveitou o mote de seus 50 anos para publicar A Vida É Curta pra Ser Pequena. A poesia brasileira historicamente nunca teve suporte de grandes editoras. Você faz parte de uma geração que precisou chutar a porta para produzir. Como foi isso? Tive sorte de viver em um período, em um contexto histórico que era propício ao “do it yourself”. Os movimentos hippie, de contracultura, do rock, a negação de uma série de valores, permitiam viver isso no final dos anos 60. Como eu estava imerso nesse caldo cultural, não foi uma coisa tão difícil. Existiam os modelos alternativos da contracultura, então eu segui mais ou menos esse caminho. Com 16, 17 anos, eu estava vivendo Beatles, Rolling Stones, Jimi Hendrix, todo aquele estouro pop, Godard, novas experiências e experimentações. Fora isso, tinha toda a poesia beat, os manifestos contra a guerra no Vietnã, a ditadura no Brasil e o movimento estudantil. Era muita informação diariamente. Tinham os ácidos lisérgicos e tudo mais. Para o lado bom e para o lado ruim também. E eu tinha uma necessidade quase física e vital de dialogar com o mundo naquele período, senão eu ia implodir diante daquela avassaladora quantidade de informações. Diferente de hoje, quando somos invadidos toda hora por uma série de informações desnecessárias, sem critérios. Naquele período não, a informação estética era muito forte. Você via um filme do Godard, do Glauber e não saía o mesmo, saía diferente. Isso tudo não podia ser absorvido sem dialogar com a informação. A poesia veio para a minha vida por meio de Oswald de Andrade, que foi para mim um grande facilitador da expressão poética. Veio também com o tropicalismo, onde se mistura com o Oswald em O Rei da Vela, encenado por Zé Celso Martinez, e também com as letras de música. Eu percebi que aquela era a forma com a qual eu podia dialogar criativa e artisticamente com o mundo. Eu já gostava de ler Monteiro Lobato, contos de fada, aquela literatura junkie de Carlos Castaneda, Hermann Hesse, um pouco depois o Guimarães Rosa. Então já tinha esse prazer da leitura. Daí para escrever poesia foi um passo. Como eu estava imerso nesse caldo da cultura, daquele “do it yourself”, não foi difícil fazer o livro em mimeógrafo. Como era o ambiente poético nos anos 70? Naquele período teve meu grupo formador, com quem eu comecei, que foi o Charles Peixoto e o Guilherme Mandaro [integrantes do grupo marginal Nuvem Cigana]. Era uma turma da escola de comunicação que vivia se drogando, escrevendo poesia, ouvindo rock e consumindo essa contracultura. A poesia era, nesse período, pelo menos para o nosso entendimento, uma coisa que estava ligada à música. Ou seja, era tropicalismo, um pouco a bossa nova e, principalmente, o rock. O ambiente poético daquele período estava dividido entre a poesia concreta e a poesia engajada do Centro Popular de Cultura (CPC), da União Nacional dos Estudantes (UNE). Não era uma coisa muito atrativa para a gente. Fomos por esse lado mais intuitivo, não tinha ninguém de letras, eram todos de comunicação, história e filosofia. Queríamos ser cantores de rock, ou pelo menos de iê-iê-iê, porque eram nossos grandes mitos – o palco, aquela aparelhagem, milhares de pessoas na plateia. Até hoje acho isso interessante. Eram os nossos modelos, porque modelo de poeta a gente não tinha. Isso que foi uma dificuldade, como fazer aquela poesia do jeito que a gente queria fazer e como afirmar aquilo como poesia mesmo, em livro, em texto. As referências do modernismo eram vagas. Nós éramos classe média de Copacabana, não tinha essa coisa de letras e nem de intelectualidade. Eram sexo, drogas e rock and roll. O início de fato, concreto, foi quando no meio dessa contracultura caiu nas minhas mãos, por meio do Charles Peixoto, companheiro desse início de poesia, um livrinho do Oswald de Andrade, da editora Agir. Era uma coletânea feita pelo Haroldo de Campos. Aquilo foi como a Virgem de Lourdes, foi uma epifania. Eu falei: “Cara, isso pode ser poesia? Essa coisa sintética, bem humorada?”. Totalmente diferente da concepção de poesia que você aprende na     escola, dos parnasianos, dos clássicos. Então juntei a fome com a vontade de comer. Juntei o meu desejo e prazer em escrever com uma forma que me interessava: sintética, experimental, cinematográfica. Aí eu comecei a escrever muito próximo do Oswald. Ia anotando em cadernos, manuscritos, às vezes  com um desenhozinho. Caneta Pilot colorida fazia parte do universo psicodélico da época. Colagem e desenhos a Pilot. Aí fui mostrando para os amigos que  frequentavam minha casa, eu morava com Guilherme Mandaro, que na época era professor de história em curso pré-vestibular. E os amigos liam aquilo e achavam bacana, perguntavam por que eu não publicava. Mas eu achava um bicho de sete cabeças

Entrevista completa com José Celso Martinez Corrêa, o Zé Celso, para o Produção Cultural no Brasil

A conversa com José Celso Martinez Corrêa é, antes de tudo, performance, teatro de referências, libertinagem. Para o ator, autor e diretor, comandante do Teatro Oficina, em São Paulo, a grande revolução “foi o desbunde”. “A minha geração, de qualquer maneira, jogou com o corpo. Alguns foram para luta armada, porque não aguentavam mais e arriscaram o corpo. Outros foram para o desbunde.” O Teatro Oficina é símbolo de resistência política e cultural. Em 1967, após um incêndio, o teatro foi reformado e reaberto com a antológica peça O Rei da Vela, de Oswald de Andrade. Era tempo de ditadura. A montagem foi vanguarda do tropicalismo. José Celso, contudo, detesta a palavra “resistir”. “O correto é ‘re-existir’. Não concordo com essa ‘resistência’. Se existe um obstáculo, você inventa um jeito. Morre e nasce de novo”, diz. Sua arte está no método e na mística. Questiona os diretores de teatro que negam os prazeres da vida a seus atores. “Quero que os atores tomem drogas, que os atores amem entre si, vivam e sofram experiências da vida, porque só assim eles vão se autocoroar. Tento que sejam divas e ‘divos’, craques e jogadores, pessoas que sabem de si. Eu sou pelo teatro-poesia, como tem o futebol-poesia.” Qual o poder do teatro? O teatro e a poesia são as coisas mais importantes do mundo. Foram as artes mais descartadas, menosprezadas, nesse período todo do neo-liberalismo. No entanto, o poder está no teatro e na poesia. O teatro é exatamente o “apoderamento” da espécie humana, do seu poder de carisma, de presença, de intervenção na vida. E, agora, estamos partindo para as dionisíacas, para o teatro de estádio, das multidões. Nós temos uma tradição maravilhosa no Brasil: o carnaval. Tudo fica de ponta-cabeça. O teatro é o rito da cultura, da tribo humana, o que nos faz retornar aos índios, aos africanos, aos gregos da Antiguidade. A cultura dos ancestrais dá um valor enorme ao que não é positivista, ao que não está enquadrado, ao que não está classificado. Por exemplo, o Vinicius de Moraes fez o link entre o carnaval, o candomblé e a Grécia em Orfeu da Conceição. Ele nos fez descobrir o valor que tem a cultura africana, o poder que tem o exu, a pomba-gira, todos os orixás. É o mesmo poder que tem Apolo, Dionísio, Hera e Eros. Nós sabemos disso porque nós herdamos a cultura dos africanos, dos índios. A cultura brasileira é uma cultura de babel, que deu certo no suingue, no balanço do corpo, do quadril. Deu certo nisso. Walt Whitman escreveu no poema Canto a mim mesmo: “Eu não enontro gordura mais doce do que a inserida em meus próprios ossos”. Um artista tem que se conhecer dessa forma para poder se expressar? Ele tem toda a razão. O artista que não está envolvido na sua obra é um artista que não existe. Conheço vários artistas sobre os quais não se sabe nada, porque a obra não passa pelos seus corpos. Não só o corpo subjetivo, mas o físico, que é muito importante também, e o corpo sem órgãos, aquele corpo que se liga pelos sentidos com o todo, o cosmos. Como disse Oswald de Andrade: “Eu no cosmos, o cosmos em mim” . O artista é como uma ideia do Einstein. Ele sugere que, ao estudar um fenômeno, já se interfere nele, passa-se a fazer parte dele. O artista objetivo não existe. Ele está envolvido totalmente na criação. A função dele é mesmo envolver todos, inclusive ele mesmo, no cosmos, que é a criação permanente. As pedras criam e desejam, as plantas, os animais, os bichos, tudo. Você tem que entrar nesse circuito de desejos, na música do cosmos. Uma vez, em 1974, tomei um ácido, estava em Portugal, exilado, e fazia Galileu Galilei [texto do alemão Bertold Brecht, encenado no Teatro Oficina, em 1968]. Estava muito envolvido com astrologia. Na viagem daqueles ácidos maravilhosos, eu percebi que temos todo o cosmos dentro de nós, todo o sistema plane- tário, milhares de outros dentro de nós. Como dizia Rimbaud: “Eu é um outro”. Esse outro é o artista. O Whitman também falava que era preciso cantar o corpo elétrico … Principalmente. Eu estou fazendo Cacilda Becker. Escrevi quatro peças sobre ela, porque é uma atriz que tinha o corpo elétrico. É muito difícil passar isso. É o corpo que a cultura chinesa conhece, que se comunica eletricamente com as energias cósmicas. A Cacilda Becker era uma atriz que entrava em cena, no meio daqueles atores impostados e dirigidos por diretores italianos, e realmente mudava a ambiência elétrica do lugar. O corpo dela estava eletrificado. Cultivei também essa eletricidade no meu corpo. No livro Primeiro Ato, uma biografia que a minha sobrinha fez [livro organizado por Ana Helena Camargo de Staal, publicado em 1998 pela editora 34], o Roberto Piva escreveu assim no prefácio: “Eu tenho um amigo e esse amigo é um corpo elétrico”. O poeta percebe isso. E fui desenvolvendo por causa da Cacilda Becker. Quis estudá-la, escrever 900 páginas e quatro peças sobre ela, já montei duas. Tento passar isso para os atores, o poder da eletricidade que a gente tem, o poder que faz a transformação do mundo e, afinal, a si mesmo. O que é necessário para o corpo elétrico ser difundido na cultura brasileira? Esse corpo elétrico tem que penetrar em toda sociedade brasileira. Em nós. É a única coisa revolucionária que existe. A grande revolução não foi a luta armada, nada disso, foi o desbunde. Foi fundamental o fato de você desmontar seu corpo careta, pequeno burguês, patriarcal, formado com essa noção de cabeça separada do resto do corpo. Começar a perceber por meio das viagens de ácido, de mescalina, das orgias, da liberdade e do paganismo. Ali houve uma revolução: a da mulher, a do gay, enfim, a da percepção do corpo. As transformações verdadeiras vieram do desbunde. A minha geração, de qualquer maneira, jogou com o corpo. Alguns foram para luta armada, porque não

Entrevista completa com Antonio Albino Rubim, para o Produção Cultural no Brasil

Definir papéis dentro dos meandros da produção cultural no Brasil não é tarefa simples. Antonio Albino Rubim considera que a especialização do setor ainda engatinha no país. Para ele, o produtor não é necessariamente um criador, papel mais afeito aos cientistas, artistas, intelectuais. “O produtor não está vinculado a esse momento da criação, mas ao momento da organização da cultura, ainda que ele possa ser uma pessoa criativa.” Rubim, que é sociólogo e professor de política cultural na Universidade Federal da Bahia (UFBA), diz que a dificuldade de identificar competências no setor se dá em função do descaso do país no tratamento da cultura como política prioritária. “No Brasil, quem assumia a organização da cultura era o filho do político tal, que gostava de poesia e, assim, se tornava o gerente do centro ou da fundação cultural.” A carência no campo da formação estimulou Rubim a montar um curso específico na UFBA. Um recente mapeamento coordenado por ele para o Sistema Nacional de Cultura identificou quase 700 cursos – de extensão até pós-graduação –, mas a maioria é o que ele chama de “cursos Walita”, de uma semana no máximo. “Nossa área está infestada de cursos para pessoas botarem dinheiro no bolso”. E conclui: “Na hora que você deixa só o núcleo consistente, sobram no máximo 30 cursos. Pouquíssima coisa.” O que é produção cultural? É um termo muito ambíguo, têm vários sentidos. No sentido mais clássico, é tudo que se produz culturalmente, quer dizer, o que a cultura produz. E, no Brasil, particularmente, produção cultural virou sinônimo de um determinado tipo de atividade dentro da cultura, dentro de um âmbito geral de sua organização. A cultura  precisa ter elementos de organização, como precisa ter elementos de criação, preservação e fusão. Dentro disso existe a gestão, existem aqueles que são os formuladores das políticas culturais, e também o pessoal de produção. Produção no Brasil virou sinônimo de um momento da cultura, e de um determinado tipo de profissional. É uma coisa singularmente brasileira. E as diferentes profissões que estão dentro da mesma palavra: produtor criador, produtor executivo? Há ambigüidade na palavra “produção” quando analisamos áreas culturais diferentes. Se fala de produção em cinema, não é exatamente igual ao produtor em outra área. Não acho que o produtor seja necessariamente um criador. A criação é outro momento do sistema cultural. Os criadores são os cientistas, os artistas, os intelectuais. O produtor não está vinculado a esse momento da criação, mas ao momento da organização da cultura, ainda que ele possa ser, no momento da organização, uma pessoa criativa, inovadora. Além de executar o projeto, o produtor tem a capacidade de formular, de bolar e de apresentar projetos. Houve mudança do papel do produtor a partir das leis de incentivo? No Brasil, existe uma certa hegemonia da figura do produtor e da produção cultural. Ao dialogar com outros países latino-americanos, por exemplo, as pessoas não conseguem entender muito o produtor como ele existe aqui. Inclusive, o termo “produtor” não é muito usado. No Brasil, houve um longo período em que o Estado era responsável pela relação com a cultura, por seu financiamento. Nesse momento, que vai dos anos 30 até talvez o governo Sarney, infelizmente não se desenvolveu o que havia em outros países: a figura do gestor cultural. A pessoa que cuida da organização da cultura. No Brasil, quem assumia a organização da cultura era o filho do político, porque ele gostava de poesia, então virava o gerente, o diretor do centro cultural, da fundação cultural, da secretaria estadual. A relação do Estado com a cultura era absolutamente amadora – no sentido ruim da palavra. Temos um déficit quanto à função do gestor cultural. Quando a lei de incentivo começa no período Sarney, o produtor passa a ter ênfase também no âmbito da organização da cultura. Houve o deslocamento do eixo, por exemplo, das instituições que organizam a cultura para o eixo daquele cara que produz um seminário, um evento. A lógica da lei de incentivo foi tão forte no Brasil que ela levou a uma predominância imensa dessa figura do produtor cultural. Desse modo, os primeiros cursos que foram criados nas universidades eram de produção cultural, não de gestão cultural. Até hoje, são pouquíssimos os cursos de gestão cultural no Brasil. No governo Collor, quando a Lei Sarney acabou, a lógica do Estado financiador não foi retornada porque o Collor não seguia essas idéias na política e na economia. A lógica da lei de incentivo então se expandiu para estados e municípios. Uma coisa perversa. Mesmo setores de esquerda, quando pensaram como resolver a questão do financiamento da cultura, da produção cultural no Brasil, recorreram à lei de incentivo. Em Salvador, a lei municipal de incentivo à cultura, que se chamava Lei Javier Alfaya, foi proposta pelo vereador do PCdoB que tinha sido presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE). Se o Estado não está intervindo na cultura, a lógica predominante é a lógica da lei de incentivo. Todo mundo começa a pensar a partir dessa lógica. O Estado sempre acha que a relação dele com a cultura é de dirigismo. O próprio pessoal da cultura não acha que o Estado brasileiro tem que ser responsável e bancar determinadas atividades culturais, coisa que os cientistas do Brasil não têm nenhuma dificuldade de  reconhecer. Quer dizer, os cientistas sabem que determinado tipo de pesquisa vai ser financiada pelo Estado ou não será por ninguém. Quem é que vai financiar ciência pura no Brasil? Em torno de 80%, 90% da pesquisa nacional é bancada pelas universidades públicas, portanto, pelo Estado. Os cientistas não têm dificuldade com isso. E não acho que, por isso, eles estão sendo dirigidos, que o Estado é dirigista. Existem os argumentos de que devemos regulamentar as leis de incentivos para que não sejam concentradoras e possam bancar um determinado projeto com os índios da Amazônia ou a cultura popular do Nordeste. Lei de incentivo não foi feita para isso, para bancar a diversidade da cultura brasileira. Não

Entrevista completa de Yakoff Sarkovas ao Produção Cultural no Brasil

  Ele era um apaixonado por música quando, aos 17 anos, ouviu de um amigo que para vender discos, uma canção precisava ser executada nas rádios. Yakoff Sarkovas teve, então, um insight empreendedor: fazer rádio-escuta para registrar as músicas tocadas e vender os relatórios estatísticos às gravadoras. Esse foi o embrião do modelo de acompanhamento do Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad). “Eu era odiado pelos divulgadores, porque denunciava se o trabalho deles tinha sido benfeito ou não.” Foi assim o início desse filho de imigrantes russos na chamada “indústria cultural”, na qual atuou em diversas frentes. Depois do segmento de discos, migrou para a cena teatral nos anos 80, em uma época em que começa a se destacar uma safra notável de nomes como Gerald Thomas, Antônio Nóbrega e Bia Lessa. Por meio de uma empresa que fundou em 1985, a Articultura, Sarkovas passou a desenvolver ações culturais associadas à comunicação empresarial. “Na minha trajetória profissional, o método de pensar uma ação cultural por uma encomenda de um briefing empresarial evoluiu para o planejamento de toda política cultural de marca.” Foi graças ao trabalho dele que a Petrobras repaginou sua política de patrocínios, elevando o nome da companhia ao status que hoje ostenta. “Até 1999 ninguém sabia o que a Petrobras fazia em cultura porque ela ficava brigando com os seus patrocinados para que a citassem.” Como você começou a trabalhar com cultura? Você começou como um braço do mercado fonográfico? É uma longa história. Sempre fui apaixonado por cultura, particularmente pela música. Tentei guiar minha trajetória profissional por essa paixão. Queria fazer engenharia eletrônica para trabalhar com isso, mas desde os 15, 16 anos, comecei a me envolver um pouco com pessoas ligadas ao mercado fonográfico. Aos 17 anos, conheci um produtor, Cesare Benvenuti, o responsável por aquelas bandas com nome inglês que faziam sucesso nos anos 70, no Brasil. Lee Jackson era uma, Sunday era outra. Acabei ficando amigo do Cesare. E ele falava: “Música vende se tocar no rádio”. Era assim na época e ainda é um pouco até hoje, embora muito menos, com a internet. As gravadoras investem muito esforço e dinheiro. Comecei a pensar a esse respeito e fui fazendo o colegial junto com a eletrônica. Comecei a pensar em um sistema de rádio-escuta, de como se poderia controlar as músicas que tocavam no rádio para gerar estatística para as companhias de disco. Montei um modelo de fazer isso aos 17 anos. A gente conseguiu um sócio capitalista, o Paulo Junqueira que, por acaso, era um cara também ligado à musica, dono de uma rede paulista de lojas de disco, a Cash Box. Então, montamos uma empresa chamada Informa-Som. Abandonei a faculdade e virei empresário, um empreendedor com 18 anos de idade. Eu tocava a empresa, o Cesare, a partir das relações que ele tinha com o mercado de disco, abria as portas para tentar vender esses relatórios nas gravadoras, e o Paulo fazia a administração financeira. O primeiro cliente nosso foi a Odeon, que comprou os relatórios. A gente emitia relatório diário, assim, das 7h às 19h, música por música, marcando hora, minuto, intérprete, gravadora. Fazíamos estatísticas semanais e mensais. Mas essa empresa começou com muita dificuldade, porque o volume de gravadoras que passou a assinar esse boletim ainda não era suficiente para pagar o custo operacional. O Cesare já tinha uma outra atividade e foi se afastando, e eu acabei sobrando com a empresa na mão. A partir de um determinado momento, ela se estabilizou razoavelmente. As principais gravadoras assinavam esse folhetim. Virou um sistema de rádio-escuta, temido pelos divulgadores, porque algumas gravadoras passaram a pagar as bonificações, os salários dos divulgadores com base na performance do Informa-Som. Então, eu era odiado pelos divulgadores, porque denunciava se o trabalho tinha sido benfeito ou não. Paralelamente a isso, em pleno regime militar, havia um grande movimen- to de músicos brasileiros em relação aos direitos autorais que, na época, ainda eram controlados pelas velhas sociedades que eram articulações políticas que vinham desde os anos 40, 50. A primeira sociedade de direitos autorais no Brasil foi a Sociedade Brasileira de Autores (SBAT), que era dos autores teatrais. Ela tinha um departamento de música. Então, as primeiras arrecadações de direito autoral no Brasil foram eles. Esse povo saiu e fundou a União Brasileira de Compositores (UBC), acho que em 1920. Aí começou uma série de dissidências. Naquela altura, existiam seis ou sete sociedades de direito autoral, cada uma representando interesses distintos. E toda essa geração que surgiu pós-bossa nova não via a cor do dinheiro. De João Gilberto para cá, passando por toda aquela safra que surgiu nos anos 60, no Festival da Record, ninguém recebia direito autoral. Por mais que tocassem no rádio. O dinheiro não chegava para Caetano Veloso, Chico Buarque, etc. Então, começou a haver uma articulação para moralizar o direito autoral no Brasil. Você está falando das reuniões na casa do produtor Hermínio Bello de Carvalho, do movimento da Sombrás? Essas histórias vão se juntar exatamente aí. Quando comecei a entender o problema de direito autoral no Brasil, eu, ingenuamente, comecei a bater na porta dessas sociedades para propor um novo sistema. Criaria uma base estatística para fazer a distribuição. Depois, entendi que os caras não queriam isso porque ali era um rateio. Era uma ação entre amigos. E cheguei até o pessoal da Sombrás. As pessoas que estavam mais à frente disso eram o Vitor Martins, o Ivan Lins. O presidente da Sombrás era o Tom Jobim. Chico Buarque participava de vez em quando. Eles elegeram o meu modelo como ideal, baseado em amostragem estatística para distribuição de direitos autorais. A classe artística cultural era uma das mais atingidas pela ditadura militar, mas havia uns conluios. Em uma daquelas bolhas de relação entre o meio cultural e o regime militar, o governo resolveu moralizar o direito autoral. Baixaram na época aqueles decretos com força de lei e refizeram a revisão completa da legislação. Foi criado o Conselho Nacional de

Entrevista completa de Sergio Rodrigues, ao Produção Cultural no Brasil

A vida fez de Sérgio Rodrigues um artista da madeira dentro do modernismo concreto da arquitetura. Carioca, de jeito manso, tornou-se uma das grandes expressões do design brasileiro. Suas criações estão presentes em espaços culturais, lojas especializadas, residências e prédios públicos. Seus móveis são como objetos de arte, quase sinônimos dos anos 50 e 60. Rodrigues trabalhou com Oscar Niemeyer, Darcy Ribeiro e Israel Pinheiro. Ajudou a definir o estilo dos interiores de Brasília. Sobrinho do escritor e dramaturgo Nelson Rodrigues, Sérgio lembra que uma das poucas vezes que cobrou uma cadeira de uma pessoa próxima foi justamente de seu tio. Na época, sua peça de maior sucesso era a poltrona Mole, premiada na Bienal Internacional de Cantu, na Itália, em 1961. Hoje, um clássico. Como homenagem, suas cadeiras serviram de base para a maioria dos entrevistados deste projeto Produção Cultural no Brasil. Sobre a poltrona Mole, o jornalista Sérgio Augusto escreveu: “Ah, a poltrona Mole! Quem nunca se sentou em uma, não sabe o que é. Perdão. Nele, não se senta, refestela-se, repimpa-se, repoltreia-se. É um regaço de jacarandá, tiras de couro e almofadas, que entrou para história do mobiliário brasileiro da mesma época, com a força mais expressiva da bossa nova”. Foi, sem pretensão, a contraposição à famosa escola vanguardista Bauhaus. O jornalista Sérgio Augusto escreveu assim sobre sua obra: “A poltrona Mole foi a resposta que tínhamos para dar à tirania da Bauhaus, um Garrincha de quatro pernas driblando o racionalismo teutônico”. Você concorda? Sérgio Augusto é maravilhoso, incrível, tem boas ideias e as transmite. Acho maravilhosa a comparação da tirania da Bauhaus. O pessoal diz que eu tenho falsa modéstia, mas acho um pouco de exagero a maneira que falam de mim e do meu trabalho. Eu sei qual é o valor que tem. Se eu fosse fazer uma análise dos meus trabalhos, saberia perfeitamente o nível, em relação aos designers do exterior e os designers brasileiros. Agora, essa intervenção do Sérgio Augusto é maravilhosa, dá para ser entendida por qualquer leitor. O Gilberto Freyre uma vez também comparou a poltrona Mole com a cultura brasileira. Quando desenhei e criei a poltrona Mole, não pensava absolutamente no sucesso que ela teria aqui e que teve no exterior. Aliás, custou a ter aqui. Foi criada em 1957. No ano seguinte, foi apresentada em uma exposição. Eu ouvi pessoas falarem: “Ah, interessante! que coisinha engraçada!”. Mas a maioria das dondocas que passavam lá criticavam: “Olha, essa firma começou tão bem, e agora entrou no esculacho, fazendo essa porcaria de cama de cachorro, um ovo estalado em cima de quatro pés de madeira!” (risos). Na realidade, primeiro criei um sofá e, depois, mais tarde, é que veio a poltrona. A poltrona ficou um ano na vitrine da loja e não teve sucesso nenhum. Até que começaram a aparecer pessoas com certa cultura. A Niomar Muniz Sodré, então diretora do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, comprou dois sofás e colocou no living dela, onde estavam todas as obras de arte, em uma posição de realce. Fiquei emocionado, não tenha dúvida. Então, apareceram outras figuras. O decorador do Roberto Marinho estava fazendo o iate dele e comprou duas poltronas. Imagina? O que é que eu ia dizer? “Isso aí não foi criado para iate!” Não tinha o que dizer (risos). Depois, o Carlos Lacerda comprou, o Adolpho Bloch também. Quando o Darcy Ribeiro comprou uma poltrona, ficou alucinado. Me chamou para trabalhar, fazer alguns trabalhos lá na Universidade de Brasília, onde ele era o reitor. O próprio Carlos Lacerda, quando foi governador do Rio, recebeu um convite da Itália para representar o Brasil na Bienal Internacional do Móvel de Cantu. E o Lacerda apareceu lá no meu estúdio e disse: “Eu queria que você mandasse a poltrona. Gostei muito dela e acho que vai ganhar”. Eu disse: “Ô, governador, o senhor está brincando? Quatro pés de madeira e um almofadão de couro para ser julgado junto com 400 designers do mundo inteiro não é brincadeira. Eles estão usando material de primeira, fundição de alumínio, criando uma porção de novidades, baseado no surgimento desses materiais novos e tudo”. E ele: “Você vai mandar de qualquer maneira!”. Falava assim com certa rigidez. “Tá bom. Vamos mandar. Então, está bem”. E mandamos as plantas. Uma semana depois, vem um telegrama de lá, dizendo que lamentavam muito, achavam a peça interessante, mas a questão era que a peça já era conhecida na Itália. Isso, em 1961. Mas o Lacerda não se conformou: “Você tem que criar uma poltrona de qualquer maneira e mandar. Você vai ganhar. Tenho certeza disso”. Bom, não se cria uma poltrona em 10 minutos, não é? E ele pedindo: “Faz de qualquer maneira!”. Peguei a primeira poltrona Mole e fiz pequenas alterações na estrutura, mantendo o mesmo almofadão. Ele não percebeu e mandamos. Um mês depois, recebemos o diploma de primeiro lugar. E, confesso, não entendi o porquê naquele momento. Por que é que deram o primeiro lugar a uma coisa que foi feita absolutamente sem intenção nenhuma de estar concorrendo com o mundo? Fui saber o porquê anos depois, na Itália, na fábrica que comprou os direitos de fabricação. Eles disseram: “Essa foi a primeira manifestação pós-moderna”. Certamente, o Sérgio Augusto também não percebeu esse detalhe. É coisa de designers. A Bauhaus foi criada em 1919, e os produtores, designers e arquitetos de lá foram todos utilizando materiais novos da época, que eram tubos de aço, aquelas coisas todas. As principais peças foram feitas assim. Esses móveis começaram a ser aceitos depois de 1940 e introduzidos no mercado. E viraram a vanguarda. Assim, a poltrona Mole estava marcando uma nova fase na parte de criatividade do design de produto. O móvel passou a ter uma nova fase, que era aquelas peças gordas de madeira, que o pessoal da Bauhaus não usava. Nos anos 50, quando aparece a Mole, é quando surgem os primeiros grandes designers: o Alexandre Wollner, o Aloísio Magalhães… e a ar- quitetura moderna

Entrevista completa com Leandro Knopfholz, para o Produção Cultural no Brasil

O Festival de Teatro de Curitiba foi pioneiro no Brasil e tornou-se vitrine da produção cultural. Em 1992, um grupo criou e dirigiu o primeiro festival. Não eram atores de teatro, tampouco diretores. “Como o festival nasceu na era pós-Collor, existia um ceticismo enorme, a economia não ia bem, ninguém investia. A gente estava indo na contramão”, lembra Leandro Knopfholz, administrador e diretor do festival. Em quase duas décadas de história, mais de 1,5 milhão de pessoas já assistiram a cerca de três mil espetáculos nas diversas edições do festival. “Ele impactou a produção e o consumo de teatro na cidade.” O símbolo físico do evento é o Teatro Ópera de Arame, construído pela prefeitura e inspirado no Ópera de Paris, feito em metal e vidro. O patrocínio do Banco Bamerindus deu impulso ao encontro. Com mestrado em indústrias criativas pela City University, em Londres, Knopfholz avalia que há avanços na política cultural e cita as linhas de crédito do BNDES para o setor. Contudo, critica o atual modelo das políticas de fomento. “As leis estão investindo na ponta errada. Acho que falta entender a cultura como uma atividade econômica produtiva como qualquer outra”, afirma. Como nasceu o festival de Curitiba? Vocês eram atores, gente do teatro? Começou com uma percepção de que Curitiba tinha uma boa estrutura física de salas e pouca oferta de espetáculos. Com este diagnóstico, alguns amigos se tornaram sócios e começaram a agilizar para conseguir sensibilizar patrocinadores privados. Assim a gente fez o primeiro evento. Mas ninguém era ator. Minha formação é em administração, o outro sócio era engenheiro, o outro, sociólogo. Mas havia um fato importante de registrar. O momento era diferente. Não existia internet, a informação não corria como corre hoje. A gente não tinha nenhuma ligação específica com o teatro. A gente se conhecia da comunidade judaica e, em nossas conversas, percebemos que havia muitas salas vazias na cidade. E veio a ideia: “Já que têm tantas salas vazias vamos preenchê-las. Devia ter um festival de teatro aqui. Vamos fazer, vamos fazer!”. E um ano depois a gente conseguiu viabilizar. Depois do início do festival, a oferta de peças teatrais na cidade aumentou? Criou-se um público em Curitiba? Chegaremos à 20a edição do festival. Tem uma geração de jovens, pós-adolescentes, para a qual o festival sempre existiu. O teatro se tornou um marco importante na comunidade curitibana e o festival impactou tanto a produção como o consumo de teatro na cidade. O que é o festival? Quais são as várias partes do festival? O festival começou como uma reunião de espetáculos. A ideia era trazer para Curitiba o que não chegava. Então, trouxemos 12 espetáculos para as salas de cinco teatros e dois para a rua. Isso era o festival. O evento foi crescendo e uma série de necessidades foi mudando a cara dele. Como ele nasceu na era pós-Collor, existia um ceticismo enorme, a economia não ia bem, ninguém investia. O Collor tinha desmontado o mecanismo estatal cultural e a gente estava indo na contramão. A gente conseguiu um patrocínio privado em um banco, nenhum patrocínio público, mas a prefeitura se comprometeu a construir um teatro, que é o Ópera de Arame. Neste primeiro ano, a gente conseguiu reunir muitos encenadores e diretores. A gente tinha uma curadoria e entendeu que o encenador era a figura central do teatro naquele momento. Eram só nomes nacionais. E como eu já disse, não tinha essa profusão de informação. A dificuldade logística era gigantesca. O fato de termos reunido tantas pessoas importantes do meio, em um contexto absolutamente desfavorável, fez com que o festival chamasse a atenção e extrapolasse a cidade. A gente conseguiu chamar a atenção do país. E daí começamos a ter mais demandas. Só reunir essas pessoas já não era mais suficiente. O festival começou a potencializar e catalisar estréias nacionais, passou a interessar a mídia nacional, os programadores nacionais e internacionais passaram a vir para Curitiba para ver o que acontecia no teatro brasileiro e levar para fora, para suas cidades. Uma coisa levou a outra, o fato de a gente ter programadores, diretores de festivais e mídia fez com que outros espetáculos não programados começassem a se apresentar em Curitiba na mesma época. Eram espetáculos curitibanos. A cena local começou a se organizar para isso. Em 1998, a gente organizou uma situação que era simultânea ao festival de teatro e chamamos de Fringe, no modelo do Festival Internacional de Edimburgo, na Escócia. Fringe quer dizer “franja” ou “margem”, em inglês. A ideia era colocar um guarda-chuva, ou seja, uma marca, e dar visibilidade para espetáculos que não eram selecionados pela curadoria. Nesta época, o festival tinha 15 ou 16 espetáculos e o primeiro Fringe teve sete. No Fringe, não havia envolvimento da curadoria do festival? Os espetáculos já vinham sem curadoria. Em um determinado momento, todos os espetáculos que podiam vir, vinham. Então, tivemos de organizar, decidimos que o espetáculo não podia fazer proselitistismo religioso, senão daria uma cara que a gente não acha certa. E o espetáculo tinha de ser profissional. Esses eram – e ainda são – os únicos dois parâmetros para o espetáculo participar da mostra Fringe. Cresceu de sete, em 1998, para 370 espetáculos. Grande parte dos espetáculos são de Curitiba e 40% são paranaenses. O Fringe permitiu que as companhias e os encenadores de Curitiba ficassem na cidade ou há um êxodo para os grandes centros de cultura? Entendo o Fringe como um propulsor, uma forma de exibição muito grande. Por exemplo, o espetáculo A Vida é Cheia de Som e Fúria [adaptação do texto de Nick Hornby], do Felipe Hirsch, foi encenado no Fringe, em 1999. Dois espetáculos da Companhia XIX, Hygiene e Hysteria, do Luiz Fernando Marques, também foram apresentados no Fringe. A Companhia Espanca, de Belo Horizonte, foi vista pela primeira vez lá. E uma série de outros: A Volta ao Dia em 80 Mundos [adaptação do texto de Julio Cortázar], com o Márcio Abreu; Alice Através do Espelho [adaptação

Entrevista completa com Sérgio Vaz, para o Produção Cultural no Brasil

Para Sérgio Vaz, levar literatura para a periferia das grandes cidades é uma nova etapa do movimento antropofágico, criado pelo poeta modernista Oswald de Andrade. Gosta da expressão “antropofagia periférica” para falar de literatura marginal, e classifica-se como um “vira-lata da literatura”. Nascido em Minas Gerais, em 1964, Vaz mora em São Paulo há mais de duas décadas. Como “sonhador” e “maluco mesmo”, organiza há dez anos o Sarau da Cooperativa Cultural da Periferia, a Cooperifa, e reúne cerca de 300 pessoas toda quarta-feira em um bar na zona sul de São Paulo. “O Sarau da Cooperifa está ‘refundando’ a troca de ideias. Ele funciona como um movimento, virou um movimento dos ‘sem-palco’”, explica. “Antigamente, a gente se mudava da periferia. Agora, a gente quer mudar a periferia.” Seu trabalho estimulou a criação de outros vários saraus de poesia na capital paulista e no Brasil. Já publicou, de maneira independente, os livros Subindo a Ladeira Mora a Noite (1988), A Margem do Vento (1992), A Poesia dos Deuses Inferiores (1995), Pensamentos Vadios (1995), Colecionador de Pedras (2004) e Cooperifa: Antropofagia Periférica (2008). Vaz é avesso a institucionalizar o Sarau da Cooperifa. Teme que o projeto fuja do essencial, que “é cooperar um com o outro”. Quando precisa apresentar o que você faz com a literatura na periferia, o que você diz? O que é a Cooperifa? Bom, estou falando da periferia de São Paulo, extremo sul, onde não tem biblioteca, cinema, teatro ou museu. O único espaço público que o Estado deu foi o bar (risos). O Sarau da Cooperifa transformou o bar em centro cultural. Há dez anos a gente ouve e fala poesia na comunidade para uma média de 300 pessoas, todas as quartas-feiras. Era um lugar onde as pessoas tinham que mentir, dizer que não moravam lá para poder arrumar emprego. A literatura elevou a autoestima da comunidade. E isso não foi nenhuma ONG, não foi o Estado, não foi nenhum tipo de governo, não foi nenhum tipo de político que fez. Foi um movimento que surgiu do povo. O Sarau acontece no final da ladeira de Piraporinha, no Bar do Zé. As pessoas vão chegando de todos os lugares, de todas as cores, de todas as dores. A professora Lu atende todos, recebe o nome de quem vai falar. Às 21 horas começa o Sarau e a gente chama os poetas. Há noites com 30, 40, já tivemos noites com 60 poetas. Temos um acordo com a comunidade: começamos às 21 horas e precisamos terminar às 23 horas. Tentamos evitar textos longos, porque queremos associar a literatura a uma coisa bacana e não a uma coisa enfadonha, chata. A pessoa já traz isso consigo, de que literatura é uma arte estranha, é uma arte elitizada. A gente faz com alegria, com entusiasmo, para  que a pessoa seja pega mesmo pela literatura. E aí são textos curtos, de, no máximo, duas páginas. E o que acontece quando o sarau termina? Aí já viu, não é? Cerveja e torresminho do Zé Batidão (risos). Isso é quase tão importante quanto o evento. Se institucionaliza o evento, o ambiente fica asséptico, perde-se muito. O bar para mim é meio que um reduto. A gente fica lá filosofando as agruras do mundo e, no outro dia, volta de novo para falar do mesmo problema. Na Cooperifa, a gente está “refundando” a amizade, que é outra coisa que anda esquecida. Quando você vai a um restaurante é cada turma em uma mesa, mas lá as pessoas ficam todas juntas mesmo. Quando acaba, começam as ideias, as pessoas querem conversar, querem saber o que está acontecendo com as outras. Quem gosta de cinema, fala de cinema, quem gosta de poesia, fala de poesia, depois mistura tudo. A Cooperifa está “refundando” essa troca de ideias. Funciona como um movimento, virou um movimento dos “sem-palco”. As pessoas curtem ir lá porque há novidade no teatro, no Cinema na Laje, um novo livro para ser lançado. O que é o Cinema na Laje? A Cooperifa é um movimento cultural que, entre outras ações, como o sarau, faz o Cinema na Laje, às segundas-feiras. É quando a gente usa a laje do bar do Zé Batidão para exibir documentários e filmes que estão fora do circuito, para que a comunidade tenha outro olhar sobre o cinema. A gente não reproduz filmes de Hollywood. Passamos os filmes da garotada da quebrada, alguns documentários em que as pessoas possam se reconhecer. E é um dia muito bacana também, porque é louco você conhecer pessoas com cinquenta e poucos anos que nunca tinham ido ao cinema. Se eu fosse do governo teria vergonha disso. As pessoas ficam maravilhadas de ver uma tela, mesmo que seja menor do que a do cinema. Uma coisa meio Cinema Paradiso mesmo. As pessoas saem de lá falando: “Puxa vida! Eu nunca tinha ido ao cinema, cara!”. E aí vale a existência, vale o trabalho. Quando uma pessoa fica feliz, a gente percebe que é por isso que estamos lá, é por isso que estamos fazendo aquilo. O escritor Rodrigo Garcia Lopes tem um verso que diz: “Será a poesia a arte da escuta?”. Como é o seu trabalho de formação do público? A literatura é um dos códigos da arte mais difíceis para nós que somos da periferia. Conseguimos chegar na literatura por meio da palavra falada, da oralidade. A comunidade faz a gentileza de ouvir e o poeta faz a gentileza de falar. Assim, as pessoas pegam no livro e ele não mais queima em suas mãos.  Primeiro tivemos que quebrar esse preconceito que o livro tem com o leitor e que o leitor tem com o livro. Aproximamos os dois, leitor e livro, usando a palavra, para que ele pudesse ouvir aquilo que está escrito e se adaptar. Quando começaram os saraus, os textos lidos eram de outras pessoas ou eram os próprios autores que iam lá? Começou como uma reunião de amigos. Enquanto a gente bebia, alguém falava uma poesia.

Entrevista completa de Fátima Toledo, para o Produção Cultural no Brasil

Seu método de trabalho é circundado por histórias romanceadas, outras vezes nem tanto, mas invariavelmente provocativas: alguém que vomitou, outro que teve o nariz quebrado, e assim vai. Fátima Toledo alimenta a própria fama: “Alguns atores da televisão já vêm trabalhar comigo com medo”, assinala. Mas refuta a ideia de que seu treinamentoseja violento. “Tapas a gente toma diariamente e ninguém percebe. Violência é não olhar para a gente”. Pioneira na área, Fátima iniciou a preparação de elenco para cinema no Brasil meio sem querer. Foi quando Hector Babenco a chamou para ajudá-lo em uma oficina com crianças da Febem, trabalho prévio para a rodagem do festejado longa Pixote – a lei do mais fraco, em 1981. Ela queria ser atriz, mas apaixonou-se por um ofício dos bastidores das artes cênicas. Não largou mais. Foi a partir das mãos dela que alguns dos personagens mais luminosos do cinema brasileiro tomaram vida: casos do Zé Pequeno, de Cidade de Deus, e do Capitão Nascimento, de Tropa de Elite. Fátima vai nas vísceras de seus atores. “É desesperador você entender que pode fazer coisas que socialmente seriam terríveis de fazer”, ela explica, sobre a busca do médico e do monstro em cada um, base de seu método. Mas a énfant terrible não é de ferro. Prestes a iniciar na direção, ela admite: “Estou apavorada”. Como começou sua relação pessoal com as artes, de onde veio? Desde pequenininha. Sou do Nordeste, de Maceió. Eu ia passar as férias na casa de uma minha tia e ficava brincando de trapézio, me pendurava. E na escola, a minha professora de História, Dona Deise, sempre dramatizava os fatos históricos que íamos estudar. E eu que dirigia as cenas. Isso já veio comigo de algum jeito. E quando foi que você se tornou preparadora de elenco? Devo isso ao Hector Babenco. Eu trabalhava na Febem, com os garotos, com teatro. Para fazer Pixote, o Hector foi atrás dessas pessoas que trabalhavam lá. A gente era chamada de monitor dos meninos. E ele pegou várias pessoas e deu para cada uma de nós um grupinho. Depois de 15 dias, ele foi olhar o resultado do trabalho e me escolheu. Aí eu falei: “O que eu vou fazer nesse filme?”. E ele disse “Você vai fazer coach, preparar essa moçada para fazer o filme”. E como foi fazer Pixote? Aterrador! Eu não sabia o que eu estava fazendo ali, como preparação, o Hector que inventou isso na minha vida. Agradeço até hoje, porque amo isso. Eu queria ser atriz e quando eu descobri a preparação, me apaixonei. Lembro que o Fernando [Ramos da Silva, o personsagem-título do filme] teve um problema no primeiro dia de filmagem. Nós não trabalhávamos com câmera nos ensaios. Então, no primeiro dia, com aquela parafernalha de equipamento, fiquei apavorada! O Fernando idem! Ele emudeceu. O Hector me deu cinco minutos para “trabalhar o garoto” e voltar. Levei o garoto junto com os outros para uma sala e não lembro o que eu fiz, porque eu estava em pânico. Era a minha primeira vez no cinema. Acabou que ele voltou e acabou fazendo. No final, o Hector disse: “Apostei em você e ganhei”. Só que depois do Pixote, fiquei dez anos sem fazer cinema, porque preparação de atores não existia. Adorei fazer cinema e me tiraram o doce rapidinho. Depois de dez anos, fiz Brincando nos campos do senhor , com Babenco. Então eu voltei para o teatro: trabalhando como atriz, dando aula, estudando. O que faz uma boa preparadora? Um bom preparador tem que ser a sombra. Nós não podemos ser o centro de nada. É quase um agente invisível que vai fazer o ator percorrer o caminho dele. E hoje tem mercado ou é restrito a alguns nomes? Hoje há vários preparadores, já não estou sozinha, o que é maravilhoso. Hoje pelo menos eu tenho com quem discutir, trocar. Tem muita gente trabalhando com  preparação. É comum um filme chamar um preparador, o que não era antigamente. Tenho um estúdio que dá aula de cinema a quem está interessado, ofereço estágio. Estou formando umgrupo de preparadores dentro do meu método de trabalho. O que é o seu método? É uma loucura ( risos) ! É ir até o ator, respeitá-lo e voltar com ele para o projeto. Quer ver? Vou te falar uma história rápida. Uma amiga minha era fonoaudióloga e, no primeiro trabalho dela, levaram um menino autista, que já tinham ido a milhões de lugares e não teve resultado. Ela fez de tudo com o menino: pulou, trouxe brinquedo e nada, nada, nada. Por ser o primeiro trabalho, ela estava muito motivada para dar certo,tinha muita garra. E ela não conseguiu. Ela sentou e disse: “Eu estou tão cansada”. E o menino falou: “Eu também”. O momento em que você chega na pessoa, há um encontro. E esse encontro produz um trabalho, um processo. Esse é o meu método. E você já fez muitos filmes. De Pixote a Cidade de Deus, qual o melhor? Pixote para mim foi muito marcante, não vou esquecer jamais. Quando via aquelas crianças do elenco, é como se elas ainda tivessem chance. Elas sonhavam ainda. Lembro que tinha uma cena do Pixote que reflete muito bem isso, que é quando o garoto fala: “Vou pegar uma prancha e vou…”. Ele tem o sonho de que vai conseguir surfar. Depois de 21 anos, quando faço Cidade de Deus, eles não pensam mais que têm chance. Então esses dois filmes são marcantes. Em Pixote, havia uma esperança. Em Cidade de Deus, parece que as pessoas precisam sobreviver. Fale de um ator com quem você gosta de trabalhar. Falo de dois, ok? Wagner Moura e Irandir Santos, com quem trabalhei agora no Tropa de Elite 2. São dois dispostos a pular no abismo. Atores que não têm muitas regras, que estão inteiros! Sem medo, sem rede! Acho que o momento mais bonito da minha vida como preparadora foi no último dia de ensaio de Tropa de Elite 2,

Entrevista de Eroltides Alves dos Santos, o Sergipe, ao Produção Cultural no Brasil

   Xuxa gosta de fruta-do-conde, Pedro Bial não fica sem uma salada verde e com Chico Anysio não tem tempo feio: o que tiver na mesa está ótimo. Conhecer essas idiossincrasias gastronômicas faz parte da rotina de Erotildes Alves dos Santos, conhecido como Sergipe, o risonho e autointitulado “sergipano-carioca” que inovou o cinema brasileiro ao oferecer serviço de alimentação num set de filmagem, a partir do filme Bar Esperança, de Hugo Carvana, em 1983. Sua iniciação na sétima arte, no entanto, se deu três anos antes, como motorista da equipe de Glauber Rocha em A Idade da Terra. Foi ali que Sergipe visualizou a dificuldade da produção quanto à alimentação. “Eu via o pessoal precisando almoçar e o Glauber, apaixonado por uma câmera, querendo filmar sempre mais.” A primeira refeição que fez foi uma carne que, ele lembra, saiu “branquinha”. Nunca havia cozinhado antes. Hoje, a empresa especializada de Sergipe é capaz de alimentar uma equipe do tamanho que for, de 30 ou mil pessoas. O serviço, no cinema, é conhecido pela palavra catering. Tem o projeto de montar um ônibus-cozinha para facilitar o trabalho pelos cafundós do país. Sergipe atribui o salto de qualidade do cinema nacional contemporâneo à maciça presença feminina nas produções. “As mulheres como diretoras-executivas são mais organizadas e unidas. O homem tem aquela coisa de medir força, e força não se divide.” Sergipe, qual o seu prato preferido? É filé de frango. Mas a primeira comida que eu fiz foi para Bar Esperança,do Hugo Carvana, em 1982. O primeiro filme em que trabalhei foi A Idade da Terra, de Glauber Rocha, em 1976, na Bahia. No filme, o Cacá Diniz me contratou para dirigir uma kombi. Mas o que eu gosto de fazer é falar, ficar no meio de gente. Comecei a dirigir e, se tinha que chegar no hotel às 7h, eu chegava às 4h, ajudava a fazer o café. Como eu era guia na Bahia, carregava o Jece Valadão, a Norma Benguel. O pessoal gostou do meu trabalho e eu me senti em casa. Fiz o filme todo. E por que eu mudei de motorista para a cozinha? Porque eu via a dificuldade da produção. A média de uma equipe nos anos 70 era de 60 pessoas. Eu via o Cacá Diniz querendo levar o pessoal para almoçar e o Glauber Rocha, apaixonado por uma câmera, queria filmar sempre mais. Aí eu pensei: “no próximo filme eu vou cozinhar. Vou facilitar a vida da produção, vou ganhar um dinheiro, o que não faz mal para ninguém”. Terminamos de fazer o filme em 1976 e o Jece Valadão me convidou para ir para o Rio trabalhar de motorista. Conta como era o Glauber dirigindo cinema? Era um apaixonado. Nesse filme teve uma cena que era para ser feita em um museu e o diretor do lugar tinha proibido. Glauber falou: “Ninguém vai me proibir, porque eu estou fazendo cinema, que é cultura”. Ele não terminava uma cena e ia embora. Parava onde estava a equipe e falava com todos antes de ir. Ele não era aquele diretor que fazia, entrava no carro, ia para casa e não queria ver ninguém. Era uma pessoa muito tranquila. Tanto é que eu fiz o filme em 1976 e, em 1978, quando ele me encontrou em Ipanema, parou e ficou boquiaberto: “Pô, Sergipe, você aqui no Rio!”. Ele era um diretor que gostava de manter contato com a equipe. Mas, voltando, eu vim para o Rio para trabalhar com Jece Valadão. Quando cheguei, porém, ele já tinha motorista. Eu fui trabalhar no estúdio, fazendo faxina. E à noite eu ia trabalhar na casa da Vera Gimenez. Eu não sabia ler e a Vera Gimenez disse que ia pagar para eu estudar e eu trabalharia para ela aos sábados, domingos e feriados. E fui. Em 1982, Hugo Carvana foi fazer Bar Esperança e o produtor executivo era o Cacá Diniz. Ele me disse: “Agora, Sergipe, pega a sua ideia de cozinhar no set e bota em prática”. Eu não tinha dinheiro, eu só tinha 25 cruzeiros para pagar meu aluguel. Ele disse para usar o dinheiro do aluguel, ir na produtora, pegar um dinheiro e pagar o meu aluguel. “Se o pessoal gostar, você continua. Se não gostar você ganhou um dinheiro”. Eu fiz uma carne assada que ficou assim da minha cor, branquinha. Mas ficou gostosa, ficou bem temperada. E fiz pelo que deu na minha cabeça, eu nunca tinha feito comida. Fiz como veio na minha cabeça na hora: “É a que mamãe fazia”. Deu certo. Hoje, no Rio, devem ter umas 20 pessoas que fazem o mesmo serviço. Hoje, eu faço mais eventos. Faço cinema quando me chamam porque sou apaixonado. No ano passado, participei de um projeto, o longa-metragem Dores e Amores, do diretor e produtor Ricardo Pinto e Silva. Como era a história de quando você cozinhou para 60 pessoas e tinha só 20 pratos? 65 pessoas e 20 pratos, imagina? Imagina você ter que dar comida para 65 pessoas em 20 pratos! Perdi a noção do que eu ia fazer. O pessoal do estúdio viu o meu sufoco e começou a lavar pratos. O encarregado do estúdio morava no terceiro andar, foi na casa dele buscar pratos. Hoje eu sirvo para mil pessoas. No carnaval chego a servir 1.500. No Bar Esperança perdi a noção, se fosse para servir sozinho eu não conseguiria. O arroz ficou empapado (risos). Gostoso, mas empapado. A carne e o frango brancos, estou sendo sincero. Até hoje minha carne assada faz história. Eu também faço um feijãozinho gostoso. A gente sabe que todo mundo precisa de dinheiro para sobreviver. Só que eu não faço só pelo dinheiro. Quando eu faço comida é como se eu estivesse fazendo para os meus filhos. Hoje, faço mais eventos e é tudo garotada, a maioria garotas. O cinema brasileiro melhorou muito depois que as mulheres tomaram conta. Se tirarem as mulheres da organização, o cinema cai de novo. O cinema hoje

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