O incrível encontro das coisas que não existem
Há no Brasil uma sobreposição de imagens em relação à sua autorrepresentação na estética, que resulta em uma espantosa câmara de vozes. Todavia essas vozes se contradizem, inclusive pelo jogo das forças de mercado, do “Brasil BRIC”, o que exige um ouvido apurado para perceber os limites e as possibilidades das ações desenvolvidas no campo da cultura brasileira. E, se a seta estiver correta, as experiências culturais ganham corpo e plenitude, sem, entretanto, a pretensão de constituir um todo orgânico, centrado em um ponto fixo de identidade. Por esse motivo, prioridades defendidas até bem pouco tempo no campo das ações culturais são rejeitadas, e em seu lugar outras primazias são aplaudidas. O Brasil hoje começa a enfrentar novas migrações populacionais com a intensificação da internacionalização multilateral, principalmente com a integração econômica e cultural com o Pacífico (China). A alteração na geopolítica da cultura tende a se acentuar na próxima década. Nos últimos tempos, o Brasil virou rota de festivais e shows internacionais. Concomitantemente, o mundo do trabalho com a cultura passou a receber muitos produtores, curadores e artistas vindos de vários cantos do mundo. É ainda fundamental considerar nesta reflexão novos conflitos surgidos no campo da cultura no país e que são constitutivos das profundas alterações nos mercados da música, a partir da sua desmaterialização, e das artes plásticas, com a hipervalorização da produção contemporânea brasileira. Será que os milionários brasileiros vão querer construir novos “Inhotins”? Quanto às recorrências temáticas na arte contemporânea produzida no Brasil, como será sua manifestação nos próximos dez anos? Até lá como resistirão os pequenos trabalhadores da cultura? O empresário Eike Batista, em entrevista publicada pelo diário britânico The Guardian em 2010, afirmou: “O Rio será inacreditável em 15 anos”. O canto da sereia de Batista soa como uma estranha profecia. É possível pensar que a Itália foi um país extremamente criativo até o fim da década de 70, e hoje vive como num sobressalto, num momento de supressão artística. As imagens da RAI representam não só o país como todo o legado político do ex-Primeiro Ministro Silvio Berlusconi. Dada a pluralidade das questões que se colocam no campo das ações culturais, em 2010 a plataforma Produção Cultural no Brasil – producaocultural.org.br foi ao ar, propondo um ponto de partida para a reflexão e a discussão sobre cultura no Brasil e, principalmente, sobre a complexa cadeia que está por trás de uma produção até que esta chegue ao público. Como se produz um filme? Um livro? Uma música? Um disco? Um programa de TV? Quem financia? Por quê? Como criar uma política pública para a cultura do país? Qual a importância dos orçamentos públicos aplicados à cultura? O objetivo da plataforma Produção Cultural no Brasil é tornar público o pensamento e as ações de importantes agentes da cultura brasileira, que muitas vezes executam seu trabalho quase sem aparecer. O projeto também se propõe a registrar saberes e experiências, o que o presente, com toda sua pressa, tenta apagar. No decorrer de alguns meses foram realizadas 100 entrevistas, mas que poderiam ser um milhão. Os depoimentos ganham força na medida em que revelam as distintas esperanças dos entrevistados. Expectativas diversas contribuem para motivações específicas, e parecem orientar esses agentes para as práticas das quais participam. O formato depoimento permitiu explorar as resistências, os limites e as potencialidade dos entrevistados e assim observar como essas personalidades da cultura manifestam maneiras de pensar que se refletem em suas próprias experiências. A opção para a escolha dos entrevistados foi a de contrapor, sobrepor e misturar universos tão diferentes quanto os do cineasta Luiz Carlos Barreto e do cozinheiro de set Sergipe; do ex-Secretário de Cultura do Maranhão, João Batista Ribeiro Filho, e da Diretora de Patrocínio da Petrobrás, Eliane Costa; ou ainda do produtor musical André Midani e da restauradora de obras de arte Florence White. Também na lista, os três últimos Ministros da Cultura no Brasil, Francisco Weffort, Gilberto Gil, Juca Ferreira, entre tantos outros. Contudo, os diferentes depoimentos alcançam um grau de imbricação, o que possibilita, por meio da leitura do conjunto de entrevistas, uma reflexão com base em diferentes posicionamentos sobre o trabalho com a cultura. Em virtude da complexidade das questões que o panorama cultural oferece, as inquietações e as dúvidas não cessam de se fazer presentes através das vozes dos entrevistados. Que Brasil é este? Mais do que isso, de que forma no Brasil, país ainda hoje carregado de desigualdades, a cultura é entendida como um direito do cidadão? Quais os equívocos que ocorrem quando os poderes públicos, por escassez de recursos, deixam as decisões sobre o que se produz em cultura nas mãos de financiadores? Como é possível produzir cultura inovadora e experimental no Brasil? Quanto às linguagens diversificadas da cultura brasileira, que elementos elas fornecem para a produção artística? A pesquisadora Heloisa Buarque de Hollanda propõe, entre tantos outros subsídios para uma reflexão em torno das vicissitudes político-culturais que colocam as favelas de um lado e o mundo acadêmico de outro, a criação de novos caminhos, novas articulações e conexões. Hollanda enfatiza a ideia de que quando a universidade acumula conhecimento, ela já tem produção intelectual, portanto é hora de entrar no laboratório, que é com a sociedade. A criação da Universidade das Quebradas é um exemplo dessa nova forma de articulação entre a universidade e a periferia. Esse projeto não nasceu de um modelo pré-estabelecido, pois, como afirma a pesquisadora, a vida toda trabalhou em tentativa e erro. Seu objetivo é completar saberes, trocar ideias entre pesquisadores e professores da UFRJ e de outras instituições com os intelectuais da periferia. “Não sei. Tenho paixão por erro. Tudo para mim que deu certo começou errado. Não pode ter medo de errar. Não podemos saber exatamente como vai ser daqui a dez anos, mas o impulso tem que ser nesse modelo. Tem que poder transitar, fazer conexões, articulações. É preciso dar espaço para articulações: municipal, federal, estadual e universidade. Precisamos de um mapa articulado. E, não, seccionado.” Fernando Faro, criador do programa Ensaio, da TV Cultura, como Heloisa