A conversa com José Celso Martinez Corrêa é, antes de tudo, performance, teatro de referências, libertinagem. Para o ator, autor e diretor, comandante do Teatro Oficina, em São Paulo, a grande revolução “foi o desbunde”. “A minha geração, de qualquer maneira, jogou com o corpo. Alguns foram para luta armada, porque não aguentavam mais e arriscaram o corpo. Outros foram para o desbunde.”
O Teatro Oficina é símbolo de resistência política e cultural. Em 1967, após um incêndio, o teatro foi reformado e reaberto com a antológica peça O Rei da Vela, de Oswald de Andrade. Era tempo de ditadura. A montagem foi vanguarda do tropicalismo. José Celso, contudo, detesta a palavra “resistir”. “O correto é ‘re-existir’. Não concordo com essa ‘resistência’. Se existe um obstáculo, você inventa um jeito. Morre e nasce de novo”, diz.
Sua arte está no método e na mística. Questiona os diretores de teatro que negam os prazeres da vida a seus atores. “Quero que os atores tomem drogas, que os atores amem entre si, vivam e sofram experiências da vida, porque só assim eles vão se autocoroar. Tento que sejam divas e ‘divos’, craques e jogadores, pessoas que sabem de si. Eu sou pelo teatro-poesia, como tem o futebol-poesia.”
Qual o poder do teatro?
O teatro e a poesia são as coisas mais importantes do mundo. Foram as artes mais descartadas, menosprezadas, nesse período todo do neo-liberalismo. No entanto, o poder está no teatro e na poesia. O teatro é exatamente o “apoderamento” da espécie humana, do seu poder de carisma, de presença, de intervenção na vida. E, agora, estamos partindo para as dionisíacas, para o teatro de estádio, das multidões. Nós temos uma tradição maravilhosa no Brasil: o carnaval. Tudo fica de ponta-cabeça. O teatro é o rito da cultura, da tribo humana, o que nos faz retornar aos índios, aos africanos, aos gregos da Antiguidade. A cultura dos ancestrais dá um valor enorme ao que não é positivista, ao que não está enquadrado, ao que não está classificado. Por exemplo, o Vinicius de Moraes fez o link entre o carnaval, o candomblé e a Grécia em Orfeu da Conceição. Ele nos fez descobrir o valor que tem a cultura africana, o poder que tem o exu, a pomba-gira, todos os orixás. É o mesmo poder que tem Apolo, Dionísio, Hera e Eros. Nós sabemos disso porque nós herdamos a cultura dos africanos, dos índios. A cultura brasileira é uma cultura de babel, que deu certo no suingue, no balanço do corpo, do quadril. Deu certo nisso.
Walt Whitman escreveu no poema Canto a mim mesmo: “Eu não enontro gordura mais doce do que a inserida em meus próprios ossos”. Um artista tem que se conhecer dessa forma para poder se expressar?
Ele tem toda a razão. O artista que não está envolvido na sua obra é um artista que não existe. Conheço vários artistas sobre os quais não se sabe nada, porque a obra não passa pelos seus corpos. Não só o corpo subjetivo, mas o físico, que é muito importante também, e o corpo sem órgãos, aquele corpo que se liga pelos sentidos com o todo, o cosmos. Como disse Oswald de Andrade: “Eu no cosmos, o cosmos em mim” . O artista é como uma ideia do Einstein. Ele sugere que, ao estudar um fenômeno, já se interfere nele, passa-se a fazer parte dele. O artista objetivo não existe. Ele está envolvido totalmente na criação. A função dele é mesmo envolver todos, inclusive ele mesmo, no cosmos, que é a criação permanente. As pedras criam e desejam, as plantas, os animais, os bichos, tudo. Você tem que entrar nesse circuito de desejos, na música do cosmos. Uma vez, em 1974, tomei um ácido, estava em Portugal, exilado, e fazia Galileu Galilei [texto do alemão Bertold Brecht, encenado no Teatro Oficina, em 1968]. Estava muito envolvido com astrologia. Na viagem daqueles ácidos maravilhosos, eu percebi que temos todo o cosmos dentro de nós, todo o sistema plane- tário, milhares de outros dentro de nós. Como dizia Rimbaud: “Eu é um outro”. Esse outro é o artista.
O Whitman também falava que era preciso cantar o corpo elétrico …
Principalmente. Eu estou fazendo Cacilda Becker. Escrevi quatro peças sobre ela, porque é uma atriz que tinha o corpo elétrico. É muito difícil passar isso. É o corpo que a cultura chinesa conhece, que se comunica eletricamente com as energias cósmicas. A Cacilda Becker era uma atriz que entrava em cena, no meio daqueles atores impostados e dirigidos por diretores italianos, e realmente mudava a ambiência elétrica do lugar. O corpo dela estava eletrificado. Cultivei também essa eletricidade no meu corpo. No livro Primeiro Ato, uma biografia que a minha sobrinha fez [livro organizado por Ana Helena Camargo de Staal, publicado em 1998 pela editora 34], o Roberto Piva escreveu assim no prefácio: “Eu tenho um amigo e esse amigo é um corpo elétrico”. O poeta percebe isso. E fui desenvolvendo por causa da Cacilda Becker. Quis estudá-la, escrever 900 páginas e quatro peças sobre ela, já montei duas. Tento passar isso para os atores, o poder da eletricidade que a gente tem, o poder que faz a transformação do mundo e, afinal, a si mesmo.
O que é necessário para o corpo elétrico ser difundido na cultura brasileira?
Esse corpo elétrico tem que penetrar em toda sociedade brasileira. Em nós. É a única coisa revolucionária que existe. A grande revolução não foi a luta armada, nada disso, foi o desbunde. Foi fundamental o fato de você desmontar seu corpo careta, pequeno burguês, patriarcal, formado com essa noção de cabeça separada do resto do corpo. Começar a perceber por meio das viagens de ácido, de mescalina, das orgias, da liberdade e do paganismo. Ali houve uma revolução: a da mulher, a do gay, enfim, a da percepção do corpo. As transformações verdadeiras vieram do desbunde. A minha geração, de qualquer maneira, jogou com o corpo. Alguns foram para luta armada, porque não aguentavam mais, e arriscaram o corpo. Outros foram para o desbunde, para a experiência do corpo, não quiseram pegar em armas. Mas quando a gente se reencontrou no exílio foi um choque. Eles estavam completamente caretas e nós, tresloucados. Hoje isso tudo está superado, a mudança faz parte da natureza. A coisa mais natural é a mudança, a transformação é a morte. Mesmo que você não queira se transformar, você se transforma. O corpo elétrico faz parte da natureza. Por isso que há um retorno, em um certo sentido, ao homem primitivo. A antropofagia de Oswald de Andrade é um retorno à percepção do corpo primitivo, do corpo indígena, para quem tudo é sagrado. O animismo é maravilhoso, está à frente de nós. É a vida.
O conflito com Silvio Santos é um paralelo com o filme O dragão da maldade contra o santo guerreiro, do Glauber Rocha? Zé Celso é um fetiche?
Não há fetiche, nem existe Zé Celso. Zé Celso é um outro. Eu sou o Zé e o Zé é um outro. Zé Celso é um personagem que me é muito estranho. Não tenho absolutamente nada a ver com ele.
Mas você é contra o Silvio Santos, está na briga contra o capitalismo que destrói a cultura…
Não sou contra Silvio Santos, sou a favor. E nem sou “contracultura”. A contracultura foi um equívoco enorme, ela não é “contra a cultura”. O sistema que estabeleceu o que é contra a cultura. E, para a cultura sobreviver, reagiu contra ele. Houve uma revolução muito grande na minha percepção quando compreendi que, no capitalismo, a infraestrutura é a macroeconomia, mas na vida a infraestrutura é a vida. A economia, a gente inventa. Faz os sistemas que a gente quiser. Mas a infraestrutura é a vida e a cultura é o cuidado da vida, a coisa mais importante. Cultura é o cultivo da sua própria vida, inclusive do seu corpo, da sua saúde, da vida do seu semelhante, como da vida dos bichos, das plantas, daquilo que você cria. O grande problema é que essa cultura, que nós chamamos erroneamente de contracultura, que é a verdadeira cultura, o cultivo da vida, topa com um tipo de monoteísmo – seja ele judaico, cristão, maometano – que organiza um Estado patriarcal, de economia fundamentalista, capitalista e especulativa. Ela impõe essa ideia que Marx denuncia em O Capital. É muito mais uma denúncia dessa infraestrutura do que propriamente um fetiche. Se você não mexer na economia, você não mexe em nada. Você só mexe na economia, se você tiver o poder humano, o poder que a cultura dá. Mas depende de você assumi-lo. O poder das armas, do sistema, do direito romano, da propriedade, da pater familias, todos eles se impõem no corpo da humanidade. Isso venceu em um determinado período da história, mas a humanidade é indomável. Ela corrompe e devora esse sistema. Compreendo mais que nunca uma coisa que Mao Tsé-Tung dizia: “O imperialismo é um tigre de papel” . Ele não é nada diante da grandeza da vida humana. Basta a possibilidade de você acordar, se libertar dessa escravidão de ser classificado pelos sistemas todos, pela família, pelo papai, pela mamãe, como o “pederasta inato”, como diz o Antonin Artaud. De repente, você descobre o seu corpo, sua subjetividade. Começa o poder que substitui progressivamente a máquina de castração pela máquina do desejo. Em 1967, minha geração reatou o elo perdido com Oswald de Andrade, exatamente ligado com a antropofagia. Isso fez com que a gente se voltasse àquela cultura arcaica, primitiva, devoradora. A minha geração retornou à cultura afro-brasileira, à cultura de todos os erros e acertos da cultura pop, e, realmente, superou a visão colonialista e o modelo do teatro de Anchieta, em que tudo vinha de um palco italiano, de uma cátedra. Essa geração que criou a tropicália se identificou por meio da antena do Oswald de Andrade, um integrante do movimento modernista, mas que, em 1928, declarava que não era mais modernista, mas o “primeiro pós-moderno do mundo”. E falou isso textualmente: “Eu sou antropófago”.
Além da modernidade, outra questão se coloca para ser superada: o herói romântico, que, em um confronto com a sociedade opressora, se destrói. Devemos nos recriar, portanto?
A violência, quando é muito grande, faz com que as pessoas pensem em sacrificar sua vida e se submeter. É o caso das mulheres e dos homens-bomba. A situação é tão insustentável que eles preferem morrer. Eu não sou fundamentalista, jamais faria isso. Eu jamais faria o papel de Sócrates em O Banquete. Não tomaria cicuta de jeito nenhum. Quer dizer, só se eu quiser, eu mesmo, sozinho. Mas se me impuserem cicuta, direi: “Afasta de mim esse cálice”.
Qual a sua visão sobre o Centro de Pesquisa Teatral (CPT), do Antunes Filho?
O Antunes Filho é um artista que não se coloca. É um artista muito interessante, mas eu não conheço o Antunes. Posso ver 30 peças dele e não tenho a menor ideia de quem é essa pessoa. Sei que ele é muito importante, que ele transforma os atores, que ele dá disciplina, que ele dá uma certa sabedoria, mas isso não me fixa nada. Nós somos opostos. Tenho um respeito por ele, mas não tenho adoração de artista por ele. Não vejo a interpretação na obra que ele faz, no sentido que o Withman fala. Ele tem uma noção de cultura como alguma coisa fora dele, como uma transcendência, não como uma imanência. Eu não devia dizer isso, mas eu digo com o maior amor, com a maior franqueza. É o que penso realmente. Ele forma os atores, tem disciplina, só que ele não deixa os atores namorarem, não deixa os atores tomarem droga, não deixa os atores serem amigos íntimos. Eu faço tudo ao contrário. Quero que os atores tomem drogas, que os atores amem entre si, vivam e sofram experiências da vida, porque só assim eles vão se autocoroar. Tento que sejam divas e “divos”, craques e jogadores, pessoas que saibam de si. Eu sou pelo teatro-poesia, como tem o futebol-poesia.
O Teatro Oficina traz em si a própria questão do persistir e resistir…
Não. Detesto essa palavra “resistir”. O correto é “re-existir”. Não concordo com essa “resistência”. Se existe um obstáculo, você inventa um jeito. Tem que morrer e nascer de novo, você tem que “re-existir”. Com isso, encontra caminhos novos. Em Cuba, por exemplo, se eu fosse amigo do Fidel, não seria hipócrita, como foi o Lula e o García Márquez. Cuba é um mito, um tabu. Tem que dizer: “Fidel, você quer passar à história como o Fulgencio Batista? Vai morrer como um ditador? Abre esse troço, cara! Isso não está com nada. Abre Cuba, que a cultura do país é muito forte”. Jamais Cuba vai se submeter ao imperialismo americano. Jamais! Nem aos que estão em Miami. A nova geração de Miami não tem esse ressentimento. E o que Celia Sánchez, Che Guevara e Fidel levaram para Cuba – o essencial da revolução cubana – está lá. É só tramitar a liberdade e fazer o desbloqueio americano. Se o Obama desbloquear, Cuba se transforma por si. E acaba essa coisa de resistência. Isso dói.
Voltando ao teatro, como avalia os legados do russo Constantin Stanislavski e do polonês Jerzy Grotowski? São referências para a sua arte?
O Stanislavski foi a primeira pessoa que pensou a atuação. Mas Vsévolod Meyerhold foi mais longe. Ele passou Stanilavski, fez A Gaivota, no papel do Treplev, exatamente o personagem inovador do teatro – o filho da atriz Arkadina, estrela do teatro realista. E ele era contra o teatro da mãe, ele era de um teatro dionisíaco. E, graças a uma tradução do Meyerhold, de 1966, eu fiz O Rei da Vela. Me iluminou demais. Agora, estou lendo um trabalho extremamente bem feito da Maria Thaís sobre o Meyerhold . Estou apaixonado de novo por ele. Mas, voltando à sua pergunta, a cada nova geração do Oficina eu faço Stanislavski. Porque é como o Freud, você pode até superar coisas, mas tem que ler Stanislavski, porque ele te dá a interiorização, o estado de alma. No fundo, Stanislavski trabalha o lado animista, a percepção do inconsciente, tudo que o ator precisa em cena. Desperta o inconsciente e aquilo se espalha pelo espaço todo. Supera a quarta parede do palco italiano. E Grotowski é outra coisa muito boa. Em Roda Viva, do Chico Buarque, eu o interpretei à minha maneira. Uma coisa que ele iria odiar, se visse. O Grotowski fala da autopenetração como forma de buscar as coisas dentro de si. Mas ele é muito cristão. Lembro que saí da prisão, da tortura, e fiquei puto com ele. Conheci-o no Ruth Escobar e ele parecia um monge. Ele pensou que eu tivesse sido preso por tomar drogas. O que, na prática, tanto faz. Para mim, tomar drogas era uma virtude política também. Se eu fosse preso por drogas, estaria muito orgulhoso também, não tem problema nenhum. Mas ele falou assim: “Tomar drogas não pode”. Ele me deu uma repreensão, me olhou com um olhar de inquisidor. Fiquei com horror dele. O Grotowski tem livros muito interessantes, mas ele se fechou em uma seita. O meu caminho é o oposto, gosto de multidão. Então, apliquei as teorias dele no paganismo, que surgiu em 1968 com aqueles jovens que invadiram o palco, a plateia, o ator, o espectador, os jovens que tocaram o público e fizeram essa revolução de se tocar fisicamente.
E o Teatro da Experiência, do Flávio de Carvalho? Qual sua relação com a obra dele?
Ele tem muita importância. Infelizmente, ele não pôde realizar suas obras porque foi muito censurado. Até sou fisicamente muito parecido com ele (risos). Gosto muito de O Bailado do Deus Morto. É uma peça que ele escreveu e encenou com uma série de negros, introduzindo a macumba em cena, fez uma espécie de “boi-bumbá macúmbico”. Significava a morte do touro e, ao mesmo tempo, a diversão do touro. A obra do Flávio de Carvalho cultua Dionísio. Ele construiu a casa dele, por exemplo, como um templo dedicado a Nietzsche – ele contou isso à Cacilda Becker, porque eles foram amantes por seis meses. Eles viveram juntos e ela recebeu dele toda uma cultura das artes plásticas, que ele tinha, pois era um homem muito rico e viajado. Quando ele viu a Cacilda fazendo a dança do fogo, disse: “Eu vou fazer um templo para você, que você pareceu a deusa do deus que dança. Vou fazer um templo para Nietzsche”. E fez uma casa maravilhosa, com pé-direito alto. Quando tinha orgias lá, ele levantava uma bandeira, aliás uma bandeira de arco-íris, a cor gay. O que eu gostaria de fazer na bienal é simular um intestino, fazer com que o público entre dentro de um corpo, do intestino, que isso passe dentro das entranhas. Isso porque ele trabalhou muito a antropofagia ligada à fome, à comida. É um gênio.
Uma coisa curiosa, Bacantes levou 12 anos para ser montada?
Treze.
Treze para fazer Bacantes e, para tombar o Teatro Oficina, foram 30 anos de luta?
Não. O Teatro Oficina foi tombado, mas até hoje não está resolvido, existe um impasse. Mas, na semana passada, a gente fez Bacantes em um teatro superlotado, quando a orgia foi replantada. O público de hoje é diferente do início de Bacantes, que estreou em um teatro de Ribeirão Preto. Quando entrou o Dionísio em cena, com o Marcelo Drummond, e sem o público nem saber quem era, houve uma ovação. Ele só falou: “Cheguei”. E foi uma ovação, parecia um deus brasileiro, parecia que todo mundo conhecia. Em São Paulo, foi um sucesso. Mas até hoje, no teatro, têm meninos que dizem assim: “Prefiro que tirem o meu sangue a tirar a minha roupa”. Fizemos uma reunião outro dia, porque ficava essa barreira. A gente abriu isso. Tem o cara que tem muito ciúme, porque namora uma atriz do grupo e ela, totalmente livre é atriz. E o sujeito é maravilhoso, mas ainda tem uma mentalidade meio provinciana. Mas o fato de abrir o assunto, já fez com que ele começasse a se abrir. Então, no domingo passado, teve uma orgia maravilhosa, doce, delicada. Não é aquela coisa que antigamente, aquela agressão, é completamente diferente. O público aceita Dionísio totalmente. Claro que tem público que nem aparece, que morre de medo. Minha geração não vai. A minha geração recuou, é muito careta, não sabe o que está perdendo.
Uma das pessoas que mais gostaríamos de entrevistar para o projeto Produção Cultural no Brasil era o Augusto Boal para falar do Teatro do Oprimido…
Detesto o Teatro do Oprimido. Detesto. Eu adoro o Boal, mas o Teatro do Oprimido cerceou o artista dele. Teatro do Oprimido não existe. Todo mundo é oprimido. Porque você faz o teatro da libertação. O teatro da libertação, porque é ideológico. E o Boal era um puta artista. A encenação que ele fez com o Gianfrancesco Guarnieri é memorável. Ele é um gênio. Mas aí ele foi para psicanálise e para o Teatro do Oprimido. Eu acho um equívoco, não ensina as pessoas a se libertarem. Eu adoro o Boal, aprendi muito com o Boal, foi meu mestre, fui assistente dele, senti muito a morte dele. Ele faz muita falta, mas o Teatro do Oprimido não. Detesto essa visão que a esquerda tem do oprimido, acho que isso é antipopulismo. Eu sou populista, mas eu sou pelo populismo carnavalesco. Essa história do povo sofrido é demais. Não, não, não!
Zé Celso, cite atores e atrizes que passaram por sua vida e que você considera inacreditáveis…
Ah, eu trabalhei com tanta gente, inclusive com pessoas maravilhosas que ninguém conhece. O Henrique Nurmberger, por exemplo, era um oficial do Gracias, Señor e que atuava de uma maneira maravilhosa. No Roda Viva, o Samuel Costa, que fazia o coro e aquela aglutinação pagã. Rincão e Samuel foram precursores desse teatro de coros, do coro protagonista, do coro “time de futebol” – não da figuração –, mas do coro agente principal do espetáculo. Eles enlouquecerem, porque não puderam mais exercer esse saber, que foi absolutamente proibido. Claro, também tem o Renato Borghi, que fez O Rei da Vela, que é magnífico, e, agora, finalmente será remasterizado e relançado. Vocês vão ver a maestria desse ator fazendo Oswald de Andrade. Tem ainda o Eugênio Kusnet, que me ensinou muito. Ele era russo e foi contra a Revolução Russa inicialmente, mas ele era, ao mesmo tempo, tão patriota que ficou apaixonado pela revolução. Foi o meu grande mestre. Também Madame Morineau, uma mulher maravilhosa, que veio para o Brasil porque os nazistas invadiram Paris. Uma francesa artaudiana que ensaiava descalça. Depois, tive a Renée Gumiel, que tinha 97 anos mas dizia que tinha 92. Ela não conseguia andar, só conseguia dançar. Quando o ator atinge isso, é porque ele está em um grau superior.
O teatro sempre necessitou do atual, da presença. Ao mesmo tempo, aparecem as novas mídias. Charles Olson dizia que a poesia é a energia colocada em um papel para ser desprendida pelo leitor. É possível que essa presença e essa atualidade reinventem novos caminhos pelo virtual e pelas novas tecnologias?
É o seguinte. Eu não sabia que era poeta, fui saber que era poeta quando eu montei, aos 70 anos, uma peça que eu tinha vergonha. Foi a primeira peça que eu escrevi, O Vento Forte para Papagaio Subir. Foi considerada, na época, uma peça psicológica, pequeno-burguesa, uma peça simbolista. Ficou em cartaz só três dias, mas ela inaugurou o Teatro Oficina. E eu, com vergonha da peça, fui encontrá-la depois, quando fui escrever Cacilda Becker. Quando eu fui montar a peça, eu falei: “Pô! Eu sou poeta”. Isso me deu uma força humana, percebi que, hoje em dia, o poeta é uma coisa importantérrima. Ser poeta me radicalizou, inclusive, no caminho do teatro poético, ou seja, o teatro de poder. Eu acho que o teatro tem um potencial extraordinário, como fala Walt Whitman. Sinto que a poesia é a coisa mais forte que existe, porque ela é tudo que não foi dito esses anos todos de dominação. Tudo explode em “não-ditos”. Poesia é exatamente o que não está escrito. É o que está por trás do que está escrito, é a possibilidade da palavra ser a palavra-chave, mântrica, que te coloca em um universo. Tenho relido muito Rimbaud, estou apaixonado de novo por ele. As traduções são péssimas. Fiz com o Marcelo Drummond e com o Zé Miguel Wisnik, a tradução de O Soneto do Olho do Cu, de De Paul Verlaine e Arthur Rimbaud. É maravilhoso.
É a tradução sem música a que se faz geralmente…
É pudico, sem respiração, sem interjeição, sem ar. É cerebral.
Mas o corpo pode ser reinventado pelas novas mídias? A presença, essencial no teatro, pode ser reinventada? Você acredita nessa possibilidade ou não?
Acredito. Não tem coisa que propicie mais encontro do que a internet, inclusive sexual. O encontro humano, todo mundo quer. Claro que têm pessoas que ficam no virtual e não querem sair dele, que é uma espécie de doença, de fundamentalismo. Qualquer fundamentalismo é uma merda. Aliás, qualquer “ismo” é uma merda, não está com nada. Não, mas merda é bom, merda é ótimo. Aliás, eu tenho muito apreço pela merda, é a palavra de sorte no teatro. Vejo todo dia ela sair, eu contemplo, eu gosto quando ela sai bela; eu sofro quando ela não sai. Tomo supositório, a merda é muito importante (risos).
As novas mídias são uma arma para o mundo?
Para mim, são. Hoje, ler Os Sertões não tem mais problema. No Google, tem as informações todas. É uma delícia ler e buscar informações, imagens, tudo. Por mais falsas que sejam, por mais superficiais que sejam, elas conduzem a uma informação mais rápida. No Teatro Oficina, a gente vê sol, lua e chuva naquela arquitetura da Lina Bo Bardi, a escultora do concreto. E, além de trabalhar com os quatro elementos da natureza – terra, fogo, ar e água –, a gente trabalha com a tecnologia. A revolução digital é uma cúmplice maravilhosa nossa, que permitiu a gente agora fazer cada vez mais e com mais apuro. Os Sertões serão lançados agora em DVD, em formato high definition. É uma coisa espantosa, uma outra maneira de ver o teatro!
Cultura e BRIC [Brasil, Rússia, Índia e China]. Isso faz sentido para você?
O BRIC é o fim do império americano. Ele já acabou, mas ainda domina, porque tem o poder armamentista, do dólar e da especulação. Mesmo o Obama precisa fazer concessões homéricas. Teve que tirar a questão do aborto para fazer passar a lei da saúde. Teve que manter a guerra no Afeganistão. Mas ele foi eleito pelo desejo de mudança mundial. O Bush teve um papel importantíssimo na história: ele expôs o programa do Partido Republicano e o mundo inteiro disse: “Não quero! Sai! Some!”. Lula também foi eleito por essa vontade de mudança. O mundo está em evolução. Gosto do que o presidente do Equador fala: não é época de mudança, é mudança de era. A gente já está em uma outra era, queira ou não. Mas tem ainda uma coisa velha: domina quem tem o poder do armamento. Por isso que tem que fazer cultura no meio dos armamentistas. Tem que corromper com a cultura e com a beleza da cultura, fazer eles olharem para si mesmos, menos deslumbrados com os armamentos. Eu adoraria fazer peças em quartéis, em bolsa de valores, no mundo dos agronegócios, nos lugares onde, enfim, a cultura não vai. Porque a única maneira de transformar é através da cultura, não tem outra. Ideologia? Não acredito. Religião? Não acredito. Agora, a vida, os ensinamentos trágicos, cósmicos, o prazer corroem essas defesas todas. As castas, os castelos e apartheids precisam ser invadidos por bacantes e por safos poderosos para cobrar, com o sentido de fazer as pessoas se descobrirem. Elas não podem ficar atrás das armas, como diz o Artaud. Os americanos são muito fortes, mas eles têm atrás deles aquelas milhões de armas. E o cara que está lá atrás é um coitado, não sabe nada vezes nada de si. O Artaud, enquanto estava entre os índios que tomavam peiote, viu um ritual e viu a potência que existia naqueles corpos. Comparou com a Europa e ficou envergonhado. Em Cuba, deram uma espada de Ogum a ele. Então rumou à Islândia, para tentar levantar o povo islandês. Ele acreditava que aquele povo tinha uma energia, mas se enganou. Foi capturado e o botaram em um hospício, onde ele ficou durante toda a 2a Guerra Mundial.
O que você falaria para quem tem medo de trabalhar com cultura, mas quer fazer isso da vida?
Quem tem medo de trabalhar em cultura tem medo de si mesmo, tem medo da potência que possui. Quando você descobre a potência que você tem, essa percepção é assustadora. É o que aconteceu em 1968: “Estou aqui e agora! Sou livre! Estou aqui e agora. Não estou esperando ficar rico, não estou esperando ir para o céu, não estou esperando uma sociedade socialista. Estou aqui agora e posso fazer mil coisas contigo, com quem quiser, aqui e agora. Estou livre”. Quando eu li Sartre, fiquei louco com a liberdade daqueles romances, como Os Caminhos da Liberdade. Aquilo me dava vertigem. Tinha uma atração e um pavor pela liberdade. Mas você pode relaxar, gozar, soltar a franga, porque a liberdade é maravilhosa. Não é uma utopia, é uma realidade física, concreta, e se manifesta no gozo de tudo que pode acontecer na vida. A vida é tragicômica e orgiástica. É por isso que o Teatro Oficina foca na tragicomédia e na orgia há alguns anos. É tragédia! A gente morre, sofre, mil coisas acontecem, mas tudo é muito engraçado. A vida é um tesão, cara.
Entrevistadores: Fabio Maleronka Ferron e Sergio Cohn, em
15 de maio de 2010. São Paulo.
Para assistir esta entrevista em vídeo:
https://producaocultural.procomum.org/2010/08/03/jose-celso-martinez-correa/