Entrevista completa com Toninho Mendes, um dos maiores editores gráficos do Brasil ao melhor estilo “Gibis, drogas e Rock’n’Roll”

Ele fala de um jeito desbocado e eletrizante, uma metralhadora verborrágica. É editor gráfico. Passou pelos jornais Versus e Movimento e pela revista IstoÉ, na época da redação “the best”, ao lado de Mino Carta. Seu trabalho como artista na estética do jornalismo era conciliado com suas paixões por quadrinhos. Sua vida era cercada de amigos, humor, tiras, desenhos.

Toninho Mendes era um aficionado por quadrinhos na infância, tendo trabalhado em uma banca quando garoto para poder ganhar gibis de graça. Atuou no meio editorial, tornando-se o editor responsável por lançar uma turma talentosíssima que incluía Angeli, Luiz Gê, Glauco e os cartunistas que fizeram a Chiclete com Banana. Tudo por intermédio da Circo Editorial.

A intensidade com que sempre tocou seus projetos – e a própria vida – talvez seja explicada pela imersão nas drogas, sobre a qual fala com tranquilidade. “A Circo nasceu em uma noite de cheiração de pó na minha casa”, revela. Mendes é rascante, sem meio-termos. Política cultural, ele crê, começa pela boca: onde não se come, não se contam histórias…

Toninho, como você começou? Como empresário, poeta e editor?
Nasci em Itapeva, no interior paulista, e mudei para São Paulo em 1959, quando eu tinha cinco anos. Um detalhe que digo para as pessoas é que me mudei para a Casa Verde. Porque São Paulo são muitas cidades. Se eu tivesse mudado para a Mooca ou Lapa, eu viraria outro ser humano. Mas mudei para a Casa Verde, nas margens do Rio Tietê, um bairro de delinquentes (risos). E eu sou delinquente por natureza. Nasci assim. Eu não durmo, por exemplo. Desde quatro, cinco anos de idade, durmo cinco horas por noite. É o meu limite. Passou disso, eu fico louco. Meu pai tinha um bar em São Paulo. Fui criado dentro de um bar, a minha casa era interligada com o boteco.
A minha história de ser editor tem muito a ver com a infância, porque eu era um colecionador obsessivo de gibis. De certa forma, uma das coisas que eu gostava de fazer era desenhar. Comecei a ler gibi muito cedo: O Fantasma, O Cavaleiro Negro, Batman. Antes de entrar para a escola, eu já sabia ler e escrever, por influência da minha avó, que lia a Bíblia para mim. Começa cedo a minha relação tanto com o desenho quanto com a escrita. Na escola, sempre fui um aluno mediano. Eu era de família classe média para baixo. Nessa época, eu não tinha recurso para comprar a quantidade de gibi que satisfaria a minha vontade, não podia comprar. O universo em torno do gibi é uma coisa que as pessoas não entendem hoje. Você encontrava uma pessoa que tinha o número 12 de O Fantasma e trocava pelo número 8 do Capitão Marvel, mas se você arrumasse um Tio Patinhas poderia trocar por um Almanaque do Fantasma. Assim, fiquei amigo do Manelão, dono de uma banca na Rua Jaguaretê. Ele já tinha uns cinquenta e poucos anos na época, e comecei a trabalhar com ele. Eu chegava na banca às 6h da manhã e, depois, entrava na escola às 7h30. Eu o ajudava a tirar as coisas do caixote e a colocar em cima da bancada. Quando eu saía da escola ao meio-dia, ia ajudar a desmontar a banca. A gente acabou criando uma relação comercial amigável, ele me dava uma ou duas revistas de presente. Aí começa minha relação atávica com gibis. Até cinco anos atrás eu tinha três mil gibis, hoje ainda tenho uns 200. Fui me desfazendo por falta de paciência para guardar, porque eu não virei um colecionador profissional. Não me adaptei à escola. Larguei na quarta série. Comecei a trabalhar três dias depois de completar 14 anos. Eu precisava trabalhar. Era office boy no antigo Banco de Investimentos do Brasil. Eu não quis continuar fazendo a escola porque, por vias tortas, eu tinha lido muito. O seu Carlos, um farmacêutico que eu conhecia, tinha a coleção inteira da editora Saraiva. Ele tinha um carinho com os livros e dizia: “Serão seus quando eu morrer”. E deixou para mim a coleção inteira da Saraiva. Acabei lendo o que eu queria e o que eu não queria. Tive um conhecimento bem desbaratado que me afastou mais ainda da escola. Estou falando de 1968, quando tem um monte de coisa acontecendo no mundo. Uma das coisas que me pegou, e pegou minha geração, foi a música. A outra, as drogas. Comecei a fumar maconha muito novo. Com 10 anos eu sabia o que era maconha, pervitin… cocaína ainda não existia, crack também não e heroína era uma coisa rara. Bebida, maconha e pervitin tinha a rodo. Eu morava do lado do Parque Peruche, ali na Casa Verde, um lugar clássico de banditismo, vagabundagem.

Toninho, como você chegou nas artes gráficas e no jornal Versus?
Antes do Versus, tem a Escola Protec [centro de tecnologia fundado em 1958], eu vou chegar lá. Quando eu tinha 15 anos, eu frequentava a igreja. E tinha um semipastor gay que tentou explicar a um bando de moleques que, se sugerisse a um cara que ele ia virar viado, o cara virava homossexual. Adivinha quem os caras acharam que podia virar viado? (risos). Eu passei algumas dificuldades, porque eu morava em um bairro de delinquentes. Por princípio, eu era um cara delicado de rosto, aquela época dos Beatles, cabelo comprido, não tinha barba, magrinho. Deu muito trabalho administrar isso. Eu fui, dei, fiz tudo que eu tinha direito e disse: “Não gosto de homem, de pinto, do cheiro, da pele, do desenho do caralho, não é o meu negócio”. Então, eu me afastei do bairro. Decidi curtir a coisa do desenho, a influência que veio também do Pasquim. Já era amigo do Angeli desde os 13 anos. Tivemos uma  afinidade imediata. Quando vi o Pasquim eu já gostava muito de desenho, en tão decidi que queria ser desenhista. Fui para a escola Protec, só que eu não    podia estudar à noite, porque minha família queria que eu trabalhasse. Não podia trabalhar no banco e estudar na Protec. Eram coisas incompatíveis. Nessa época, também descobri o livro Cem Anos de Solidão, do Gabriel García Márquez, o poeta Fernando Pessoa e uma porção de desenhistas que eu não conhecia direito, tipo o Maurice Cornelis Escher [artista gráfico holandês]. E aí se você mistura isso com a maconha, 1968, Woodstock, imagina, né? Eu fui para a Protec para estudar desenho publicitário e sai do banco. Para me  sustentar, um professor que foi com a minha cara me botou para fazer pestape de apostilas. Aí minha cabeça muda. Comecei a escrever muito. Eu sou um cara muito influenciado pelo García Márquez e pelo Pessoa. Desenhava, escrevia e fazia pestape. Com uns cinco meses de curso eu descubro que todas as pessoas desenhavam melhor que eu. Todas, absolutamente todas. Mas, ao mesmo tempo, percebia que nenhuma delas pensava como eu. O jeito que eu escrevia, o jeito que eu organizava os layouts. Já tinha ganhado um tesãozinho pelo papel. Um certo dia, vi um anúncio em um jornal: “Editor de pestape na Barra Funda”. Eu tinha de 16 ou 17 anos, fui lá e era a editora Perspectiva, do Moysés Baumstein. Fui “pestapar” coisas que hoje eu não tenho saco para ler e passei oito anos tentando entender (risos). A editora Perspectiva só editava debates, estudos. Acessei um mundo que eu não entendia…

Mas a editora tinha um projeto gráfico inovador justamente nessa época, certo?
Eu nem sabia que tinha projeto gráfico. Descobri que colar papel dava dinheiro. Eu ganhava tão bem colocando e colando papel que foi aí que começou a minha carreira de artista gráfico. Têm duas coisas nessa história: uma que eu sou competente, outra que sou “cu-de-ferro”. As pessoas perguntam para mim o que o cara precisa ser para ser artista, pintor, designer. Para começar, você tem que ter boa bunda. Se não tiver, nem adianta começar a carreira, porque você fica sentado muito tempo (risos). Na editora Perspectiva, fiquei 12 meses e virei a pessoa que eu sou. Eu “pestapei”, revisei, fiz emenda em História Social da Literatura e da Arte, do Arnold Hauser. Um livro que eu jamais leria na vida e eu li obrigado, senão eu não conseguia fazer. Foi assim que eu comecei como artista gráfico e escrevi o poema que publiquei aos 20 anos, que é o Tietê. Foi o que eu me tornei, o que eu virei. Tinha a Praça da República, a maconha, o Pasquim, Woodstock. Em uma revista, vi fotos do Jimi Hendrix, do Jefferson Airplane, aquele pessoal deitado na lama, fumando maconha, uma ebulição. Você também tinha uma repressão na rua, uma repressão política violenta. Eu ainda não tinha 18 anos e, como eu sou louco, casei e tive uma filha com 20. Eu já estava mexendo com essa coisa de imprensa, já tinha passado em estágio pela Folha de S.Paulo e tinha me ligado um pouco no que acontecia politicamente. Soube, então, que sairia um jornal independente do Marcos Faerman. Eu sabia quem ele era. Eu tinha consciência política, aliás, sempre fui anticomunista. E sem saber que eu era.

Mas chegou no Versus assim…
Quando eu entrei no Versus, o Marcão foi logo com minha cara, porque minha filha e a filha dele nasceram muito perto. A filha dele se chama Laura Faerman, não a vejo há 20 anos, e a minha filha, só para você ver como eu era, Verônica Papoula (risos). Fui o primeiro cara a ganhar dinheiro no Versus. Eu fazia pestape, era editor de arte. E o Faerman foi o único cara que eu conheci na vida que tinha esse conhecimento, tinha visão social e sabia trabalhar com essas coisas. Entendia muito das coisas visuais e era um ser humano grandioso. Ele trazia livros para eu ler, porque eu não tinha acesso. Na minha formação como editor, jornalista, diretor de arte, o Faerman foi a pessoa mais importante. Então, Versus foi o jornal no qual eu cresci como profissional.

Você falou que foi a primeira pessoa a ganhar dinheiro no Versus. E o Versus, naquela época da imprensa nanica, tinha 50 mil exemplares. Não se sustentava?
Não, nunca teve isso. Versus tirava 20 ou 30 mil.

E não tinha como escoar isso?
Como escoar tinha, mas distribuía meio “nas coxas” em São Paulo, no Rio. Mas todo mundo trabalhava em outro lugar: o Marcos Faerman, o Tadeu Affonso, Bóris Schnaiderman, o Modesto Carone eram pessoas ligadas à esquerda que viviam do que faziam e faziam um jornal para uma imprensa alternativa. Eu fui contratado para trabalhar no Versus quando a Papoula nasceu. Eu ficava lá o tempo todo. Acabei sendo a recepcionista, o pestape, o varredor, mas fui remunerado. Depois, outras pessoas também foram, mas eu fui o primeiro remunerado. E volto a dizer que é a questão da bunda e da mão, sabe? Porque eu sentava e fazia o jornal praticamente sozinho. Eu “pestapava”, diagramava, negociava com os fornecedores, fazia o espelho, fazia os anúncios, tinham 48 páginas. Trabalhava muito.

E isso tudo ao mesmo tempo do jornal Movimento, certo? O Versus também teve um trabalho com quadrinhos, não é?
Todo mundo que eu conhecia desenhava no jornal Movimento. Mandávamos os sacos para a censura em Brasília. O Movimento, herdeiro do Opinião, era um jornal de cabeça de comunista. Aliás, até hoje eu não sei bem o que é trotskista. Deve ser uma coisa chata, porque todos que se diziam isso sempre eram chatos. Nunca consegui levar essa gente a sério. Mas eu fazia Versus ao mesmo tempo que o Movimento. No Versus, o Marcão trouxe a Crisis [revista argentina editada pelo escritor Eduardo Galeano], o Le Nouvel Observateur [revista francesa de informação e cultura], coisas de fora. Ninguém escrevia melhor que o Marcão. E entendia a força e a expressão do desenho. Jornal tinha de ser grande, ter história, ser aberto, visualmente diferente. Eu era o editor de arte do jornal e, como o Marcão me incentivava, a gente fazia as maiores porra-louquices. Fizemos 12 edições, sendo dois especiais em quadrinhos, que foi até onde eu fiquei. Aí, com o Angeli, Paulo Caruso, Laerte, Luiz Gê, nasce a Circo Editorial.

Naquela época tinha a turma do Pasquim, a turma carioca, com o Jaguar, Henfil, que foram um pouco os pais dessa geração e eram mais tradicionais do que o povo de São Paulo do Versus, não eram?
Era bem diferente. O humor carioca é leve, como o Rio de Janeiro. É um humor muito para fora: praia, sol, Ipanema, bossa nova, bunda, mulher. É muito melhor que São Paulo, sob todos os pontos de vista. São Paulo é um humor mais para dentro, mais reflexivo. E essa geração começou a se firmar comigo, na Circo Editorial. Então, esse pessoal era muito influenciado por gente de fora: Robert Crumb, Jules Feiffer, Georges Wolinsk, Walt Kelly, Alex Raymond, os caras norte-americanos e o pessoal do underground europeu que estava surgindo.

Vocês lançaram a Circo Editorial no dia da votação das diretas. Foi coincidência?
Não. Fiz de propósito. Escolhi data e a hora. Mas antes disso tem outra história. Quando eu saí do Versus fui trabalhar com um importante artista gráfico, o Hélio de Almeida, na IstoÉ, indicado pelo Chico Caruso. Aí eu dou outra virada. Fui trabalhar com uma redação que eu acho “the best”, não vão conseguir montar outra igual porque algumas coisas só acontecem em um determinado espaço de tempo. Era Mino Carta, Silvio Lancelotti, Tão Gomes Pinto, Hélio de Almeida, Nirlando Beirão, Moacir Japiassu, Hélio Campos Mello. Éramos poucos, mas éramos de uma capacidade de trabalho filha da puta. Aí eu abri a minha primeira editora, a Marco Zero, em 1980. Inventei o nome Marco Zero, inspirado no Oswald de Andrade. Fiz sociedade com o Rui Campos, da editora Muro, que hoje é o dono da Livraria da Travessa. A gente fez uma parceria no livro do Chico Caruso, o Natureza Morta e Outros Desenhos. Editei a primeira versão do meu livro Tietê. Aí um poeta chamado Roque de Souza me convenceu a editar o livro dele também, Coisas da Nega Sarará . Foi aí que tudo deu certo, porque já tinha a ideia, a cabeça, tinha um bom autor, que era o Chico Caruso. Aí eu chego na Circo Editorial. Fiquei super amigo do Chico e do Laerte. A Circo nasce em uma noite de cocaína, literalmente. Todos em uma cheiração de pó, com João Peres na minha casa. Cocaína de boa qualidade, vinho, até comer a gente comia, nada brega. E nesse papo eu disse: “Eu estou pensando em abrir uma editora”. Mas eu não tinha dinheiro. E o João Peres disse: “Eu te arrumo dinheiro”. E explicou que a família dele tinha uma empresa. Ele entraria com a parte econômica e eu faria os produtos. Assim foi. Abri a editora com o João Peres, na minha casa, e comecei a fazer os livros do Chico e do Angeli: Não Tenho Palavras e o clássico Bob Cuspe, “esgotadézimo”, um livrinho da capa roxa que completa 26 anos agora. Falei com as gráficas e tudo. Aí entrou o Caio Graco, da Brasiliense, que já me conhecia por causa do Versus e disse: “Eu distribuo os livros para você”. Só que passados quatro, cinco meses, o João Peres saiu da sociedade. Eu estava trabalhando nos livros do Angeli e do Chico Caruso. Não tinha dinheiro, trabalhava na IstoÉ, tocava minha vida sempre com muita modéstia, mas sempre me diverti bastante. Porque se você não se divertir não dá pé. Mas estava enrolado, porque eu já tinha duas filhas, sustentava meus irmãos, meu pai, minha mãe. E eu fazia muito freelance. Não podia cheirar, porque senão ficava muito louco, não podia beber porque a mão tremia, não podia fumar porque ficava disperso. Nessa época que eu estava mais louco, o trabalho me afastou da droga, porque não dava para fazer aquilo com nenhum tipo de droga. E eu acentuo a história da droga porque isso tem muito a ver com o meu trabalho, com a minha vida e com a Circo Editorial. Então, o Chico Caruso sai do Jornal do Brasil e é contratado pelo Roberto Marinho ganhando dez vezes mais. Ele me liga e fala: “Faça os dois livros” – o dele e o do Angeli. Por isso que eu falo que tudo é mágico. O Angeli foi um puta sucesso. O livro do Chico vendeu bem e a editora começou a andar.

A Circo Editorial seguia em paralelo com seus trabalhos…
Isso. Eu saí da revista IstoÉ, porque não aceitei o substituto do Hélio de Almeida. Fui então para a revista Afinal, com o Fernando Mitre e o Gustavo Cubas. Eles estavam precisando de um diretor de arte. Na edição, estavam  o Anélio Barreto, o Mitre e o Sandro Vaia. Eles desenhavam e eu executava. Era uma loucura. Mas aí eu editei o Quadrinhos em Fúria, do Luiz Gê, e Grilo, do Rubem Grilo – já era o quarto livro da editora. Depois, O Tamanho da Coisa, do Laerte, e, em dezembro, o livrinho da capa verde da Rê Bordosa, do Angeli. Tudo distribuído pelo Brasiliense, com a genialidade do logotipo do Hélio de Almeida, tudo vendendo…

A Circo chegou a vender 100 mil…
Chiclete com Banana vendeu mais. Chegamos a 120 mil. Os livros foram para segunda, terceira, quarta edição. Só que isso não sustenta uma empresa, não sustenta uma família. Então eu continuei na Afinal até que eu me desentendi comigo mesmo. Entrei em pânico: “Não dá para viver no meio dessa gente, vou ter que buscar outra cartada”. Resolvi que ia ter um estúdio por conta e tentaria fazer da editora uma coisa viável. Ainda fazia composição na Circo, não tinha computador. Angeli e eu trabalhávamos no mesmo espaço físico. Teve uma hora que o Angeli saiu daquela temática mais política e entrou na coisa dos costumes. Ele se encontrou e aí nasceram os primeiros personagens mais inocentes. Nessa época, o Hélio de Almeida me colocou em contato com o Arlindo Mungioli, meu ex-colega de Movimento e de Versus. Trabalhei com ele em uma revista de moda na editora Análise. Ele me perguntou: “Mas como é que você trabalhou no Movimento se você não era comunista?”. Eu disse: “Sempre achei tão importante derrubar o governo militar que até trabalhar com militares eu trabalharia se fosse para derrubá-los”. Foi aí que o Arlindo conheceu meus livros. Ele é um comunista chique, é touro que nem eu, mas o tesão que ele tem pela grana eu tenho pelas mulheres, pela arte, pelo vício. E ele falou: “Toninho, preciso colocar alguma coisa na banca, fazer uma experiência, você não tem nenhuma ideia?”. Levei dois projetos escritos para ele: uma revista com os personagens do Angeli e outra com todo mundo, chamada Chiclete com Banana. Fizemos a Chiclete com Banana para ver o que acontecia. Fizemos o contrato, que é o melhor que já tive na minha vida. Cada um teria uma participação: Angeli, Arlindo e eu. Se a revista não se pagasse, nós não receberíamos, mas três edições iriam para a banca. O Arlindo fez uma conta enorme, o cara é foda, nunca vi uma conta tão bem feita. E vendeu 50 mil a edição da Chiclete e nós procuramos a distribuidora Dinap, naquela época em que tínhamos aquele marasmo político, o país estava naquela “broxice”. Era 1985. O Tancredo Neves tinha conseguido morrer antes de assumir. O cara realmente era de uma incompetência fenomenal, esperou 70 anos para morrer. E no dia de assumir. Você não imagina a tragédia pessoal que foi para nós. Porque a gente sabia a merda que vinha pela frente. Aí saiu a Chiclete com Banana, com Bob Cuspe para prefeito, um escracho total. Essa gente não era levada a sério pelos militares. Se os militares estavam no poder, foda-se, os políticos são uns filhos da puta. E a Chiclete veio e deu uma porrada de cada lado. Ela nasceu com 30 mil de tiragem e 50 mil de venda. Depois, 60 mil de tiragem, 40 mil de venda. A revista ia bem, o Arlindo cuidava do dinheiro, eu fazia o que eu queria: a arte. O Angeli só desenhando e a gente ganhando dinheiro suficiente. Um dia ele me chamou para conversar sobre a Chiclete. Ele disse: “Toninho, eu nunca imaginei que vocês incomodassem tanto, estou pasmo! O que já ligou de gente aqui dizendo que eu sou irresponsável, direitista, militarista”. E nós fazíamos para encher o saco mesmo, para provocar. E todo sem jeito falou: “Sabe, Toninho, eu sou uma pessoa que tem uma ligação esquerdista, eu fui preso, torturado”. Aí ele tirou de um envelope a página da revolução sexual, que o Paulo Caruso desenhou para nós. Mostrava que o comunista, para estourar a bomba, tem que enfiar o caralho na boca! Eu disse: “Por que você não pode publicar?”. E ele: “Já tive uma sobrinha viciada. Olha essa piada de snif-snif, cof-cof !”. Eu disse: “Arlindo, essa piada está explicando que a pessoa explode de tanto cheirar pó!”. E ele: “Mas como é que eu vou explicar isso para minha avó?”. Aí o Arlindo avisou que queria sair do negócio. E me deu a Chiclete com Banana, com 60 mil de tiragem e vendendo 40 mil.

Chiclete com Banana quase não tinha anúncio…
Nunca teve.

Ela era precária?
Que nem banco: entra por aqui, sai por ali. A Circo Editorial nunca deu dinheiro. Serviu para nos sustentar razoavelmente na época do auge, quando o Angeli continuava na Folha, e eu continuava fazendo livro para a editora Moderna.

E essa questão de manter a independência?
A gente só fazia o que a gente queria porque a gente pagava para fazer. A  gente se pagava. Ninguém ia pagar para gente fazer aquilo. Esse foi o preço que nós não pagamos para entrar na história. Era de puro tesão, entende?

Qual é a política cultural ideal, o que que precisa ser feito?
A política cultural ideal hoje começa no prato. Porque cultura é tudo. O fator mais determinante da cultura é a alimentação. Foi assim que a cultura passou na civilização. Pelo prato, pela boca, pelo garfo, como matar o boi, como tirar o rabo. As pessoas conseguiram sair das árvores, ficar em pé, de pau duro, botar roupinha, fazer filho, foram para dentro de uma casa. Qual a primeira coisa que eles tem que fazer? Comida. Aí nasce a cultura. Porque a origem da cultura é alimentar: se salga, se não salga, que a amora tinge de vermelho. Desse ponto de vista, inclusive, o planeta é deficitário. E como muita gente não come, toda a relação com a cultura está travada. A cultura do alimento traz o lar. E ele cria a relação familiar, o respeito, o pai, a mãe que contou uma história, o avô que desenhava. Em um lugar em que as pessoas não comem, elas não contam histórias. Sabe qual é a história delas? “O que a gente vai comer hoje à noite?”. “Puta, que legal, papai hoje trouxe dois candangos”. “Pô, mamãe deu a maior sorte, achou duas mandiocas”. Essa é a cultura dessas pessoas. Essa é a política cultural mundial. A cultura começa na boca, até porque se você não comer, você morre. Aí você chega no estrago que a gente está hoje. Acho tudo uma filhadaputice que não tem tamanho. Ator da TV Globo pedir dinheirinho da Petrobras para fazer filme e peça de teatro, eu acho uma canalhice. Não tem cabimento. O cara ganha R$ 70 mil por mês para fazer novela, chega lá e diz: “Olha, consegui patrocínio, ainda ganhei incentivo fiscal”. Ah, vai tomar no cu! É um contrasenso.

Mas como reverter isso? Como fazer política cultural para permitir a liberdade?
Não é questão de reverter. A política cultural de hoje está nascendo na roda das coisas. Você tem uma política cultural praticada na casa do Zezinho. Aqui no interior de São Paulo, no Jardim Ângela, eles primeiro dão comida de manhã, aí botam roupa, aí ensinam a comer. Eu já ensinei um cara a comer, na cidade de São Paulo, na maior cidade do mundo. Ensinei a pegar no garfo. Eu fui há dois anos dar aula em um lugar onde os caras comiam bife com a mão, não sabiam que usava garfo e faca. Alguns desse meninos viraram músicos. Você entende que eu sou o cara da época do Chiclete com Banana, eu sou o mesmo, entendeu? Literalmente. Então isso é política.

Mas onde está concentrado o problema? Para onde devemos caminhar?
Vamos pegar o teatro como exemplo. É o maior descalabro. Quase tudo é ruim. Eu vou só para comprovar que é uma bosta. A maioria das coisas que eu vou ver é ruim, é velho, é anacrônico, é feio. É tudo mais do mesmo. Marido que trai, mulher que dá o cu pro vizinho, um saco! Isso é um mundo pobre. Na época de Balzac já tinha enchido o saco. Agora, esse tipo de gente, com o poder que tem, ainda quer ganhar dinheiro da Petrobras? Esse dinheiro tinha que ser dado para fins educacionais. Ele tinha que ser investido no ator, porque o poder de encantar do artista é do caralho. Mas não para ele praticar a vaidade. Ou seja: a política cultural que eu vejo seria a da utilização do dinheiro público, das leis de incentivo, para que, com a força do artista e da arte, você crie uma outra maneira de educar as pessoas.

Entrevista realizada por Fabio Maleronka Ferron e Sergio Cohn
no dia 15 de abril de 2010, em São Paulo.

Para assistir esta entrevista em vídeo:
https://producaocultural.procomum.org/2010/07/19/toninho-mendes-2/

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