janeiro 2012

Entrevista completa com Heloísa Buarque de Hollanda, para o Produção Cultural no Brasil

  Heloísa Buarque de Hollanda é graduada em letras clássicas, mestre e doutora em literatura, com pós-doutorado em sociologia da cultura. Com trânsito livre no meio universitário, suas opiniões sobre a vida acadêmica são contundentes: “Defesa de tese é uma situação patética”, “Pós-doutorado não passa de um projeto de extensão porque não dá grau”, “A universidade está perdidaça”.   Também sócia da editora Aeroplano, Heloísa tem nos estudos culturais seu principal campo de interesse. Nesta entrevista, ela lembra da própria transformação intelectual, desde a idealização da periferia na época do Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes (CPC/UNE), nos anos 60, até recentemente, quando ouviu do escritor Ferréz a frase: “Não vou à universidade, minha miséria é minha e não te dou”. Naquele momento, Heloísa concluiu ter perdido o “emprego como missionária intelectual”. Foi, no entanto, a descoberta de um novo caminho.   O imobilismo das premissas acadêmicas absorve grande parte das preocupações desta pesquisadora. “As regras acadêmicas são completamente paralisantes. Você não pode inovar em uma tese, porque você tem que se defender. E inovação é sempre uma área de risco”, diz. Heloísa está envolvida ainda coma Universidade das Quebradas, um espaço de troca entre a academia e a periferia do Rio de Janeiro, e tem buscado estudar a influência do mundo digital na cultura. Heloísa, como tirar a pesquisa acadêmica do vício das teses? É difícil demais! Fico convencendo os meus orientandos a não fazer tese:“Acabem logo com isso, pula essa fogueira”. É impossível trabalhar com oformato tese. Não há liberdade nenhuma, você não pode mudar sua proposta. Para mudar tem que fazer uma petição, uma explicação, todo mundoconcordar, etc. Você tem um formato que é rígido e que ninguém conseguedriblar. Você tem que colocar a palavra “comunicação” um número “x” de vezes em uma tese para ela ser reconhecida pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). O que você acha disso? É quase impossível. Eu boto logo no título: “Produção de livro e comunicação”. De outro modo, a tese não é reconhecida. A palavra-chave é que vale, não o conteúdo. É uma loucura. As regras acadêmicas são completamente paralisantes. Tese é uma coisa do século 19, do começo do século 20, não foi revista nunca. Tem que acabar com isso. E a defesa de tese? É uma situação patética. A banca tem obrigação de colocar você em uma posição de ré, de defesa. Você escreve uma tese – sei porque tive milhares de orientandos – para se defender. Não para inventar, ultrapassar fronteiras, inovar. Você não pode inovar em uma tese porque você tem que se defender e inovação é sempre uma área de risco. Acaba sendo burrice você fazer uma tese propondo inovação, porque na defesa você não vai ter segurança, não vai saber consolidar. É uma fogueira que você tem que pular por ritual e começar a trabalhar depois. A universidade está engessada? Você sente isso? Na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), tenho um programa chamado Programa Avançado de Cultura Contemporânea (PACC), ligado ao Fórum de Ciência e Cultura. O formato não é o de um centro, instituto ou núcleo. É um programa, o que, na prática, não é nada. É o seguinte: você tem três projetos dentro de um programa. E acaba no dia que acabarem os projetos. Não tem diretor, não tem coordenador, não tem equipe, eu não sou ninguém institucionalmente. Descobri isso depois de ter feito o Centro Interdisciplinar de Estudos Culturais (CIEC). Inventei o PACC, que é um programa, e disseram: “Por que você não quer ser uma unidade orçamentária?”. Porque eu não posso receber dinheiro. Quem recebe é o fórum ao qual estou vinculada. Sou apenas um programa. Se eu abrir essa deixa de receber dinheiro, eu não trabalho! Porque eu vou ter uma dose de controle sobre mim insuportável. Inventei esse programa e junto com ele uma associação de amigos. Quando tem uma verba internacional, uma coisa difícil, eu giro por ali e repasso para a universidade. Olha, para sobreviver na universidade, tem que ter muito macete. Agora, estou feliz com esse último processo. Trabalho com uma desenvoltura que eu nunca tive na universidade: “Não sou ninguém, tenho um programa de pesquisa, mas não tem nada além de um programa de pesquisa”. É uma pesquisa minha, individual. Ridículo que a universidade não possa capitalizar isso: quem capitaliza sou eu. Não pertenço praticamente à universidade, é um absurdo! Nesse programa, eu percebi que as pessoas fazem tese e depois entram em orfandade profunda. Como assim? Até a tese, há a figura do orientador, existe a tal banca, você é uma referência, escreve pensando no que a banca vai perguntar. Então você tem aquele entorno todo que te suporta um pouco. Aí você vira doutor e não tem mais interlocutor na universidade. Não tem espaço nenhum onde você possa discutir ideias. Acabou. Tornou-se doutor e acabou sua carreira. Você não tem mais o que fazer depois, não tem espaço para continuar dialogando.Você vai dar aula, vai ser orientador, vai ser chefe de departamento, um monte de coisa dos conselhos, mas não tem espaço de invenção, é um horror. Você perde o poder de fala com os seus pares. Para fugir disso, eu fiz o programa de pós-doutorado, uma delícia total. Criei um ambiente onde as pessoas vão, se encontram uma vez por mês e falam o que quiserem. Todo mundo opina, é isso, é um ambiente, mais nada. Você não deve entregar nada, aliás, entrega um artigo para poder ter o certificado, que é um certificado também que não vale nada, e faz um verbete para o Wikipedia, que é para divulgar. Tem gente com bolsa de pós-doutorado, só que eles não sabem para onde vão porque não tem nem um programa de pós-doutorado, porque não interessa à universidade. Interessa que você vá para fora. Você pede um pós-doutorado para Paris e ganha, certamente. Se tiver um mínimo de produção, você vai para Paris, para o México, para qualquer lugar, menos ficar no

Entrevista de André Midani ao Produção Cultural Brasil

Depois de passar a infância e a juventude com a família em Paris, o sírio André Midani fugiu na década de 50 para não ter de lutar na Guerra da Argélia. A ideia era se estabelecer em Buenos Aires, contudo o navio ancorou antes no Rio de Janeiro. Encantou-se e decidiu ficar por ali mesmo. Começaria a carreira de um dos ícones da indústria fonográfica, responsável pelo sucesso de grandes nomes brasileiros. De origem síria, e sem falar português, conseguiu emprego em menos de 72 horas na gravadora EMI-Odeon, respaldado apenas pela experiência de balconista que tivera em uma loja de discos na França. Midani descobriu músicos como Carlos Lyra, Roberto Menescal, Nara Leão. Mas quando mostrou a um executivo o disco Chega de Saudade, de um obscuro baiano chamado João Gilberto, ouviu a avaliação de que aquilo não passava de “música para viado”. Septuagenário, Midani acompanhou in loco o alvorecer e a derrocada da indústria de discos. Conhece, portanto, os mecanismos que regem a dinâmica que determina o sucesso – ou não – de um artista. Critica o jabá por uma questão moral. “Depende para que você o utiliza.” Midani surpreende ao afirmar que pagou para que artistas sob sua alçada tocassem nas rádios. “Se você usa um jabá porque o programador é uma pessoa sem gosto musical e você tem um artista de valor, é um bom investimento.” Como começou o seu trabalho como empresário de música no Brasil? Aconteceu meio por acaso. Eu estava na França, comecei a trabalhar na indústria fonográfica, em postos modestos, mas com muito entusiasmo e, um dia,veio a Guerra da Argélia. Todas as guerras são estúpidas, mas essa tinha um conteúdo mais estúpido do que muitas outras. Sendo eu metade árabe, achei incongruente fazer uma guerra contra os árabes. Então desertei. Peguei um navio, pensava em ir para Buenos Aires, mas quando ele entrou na Baía da Guanabara, achei que era a coisa mais bonita que eu já tinha visto na vida. Não conhecia ninguém, não falava a língua, mas procurei trabalhos em companhias de disco. Três ou quatro dias depois comecei a trabalhar. Minha função, durante certo tempo, foi selecionar o que se chamava de “repertório internacional”. Em paralelo, um fotógrafo me apresentou a um grupo de jovens, amigos dos seus filhos, me dizendo: “Olha, eles fazem música, não sei se ela é boa, mas são ótimas pessoas e tenho certeza que o senhor vai se dar bem com eles”. Marcou-se um dia para nos encontrarmos e entraram Roberto Menescal, Carlinhos Lyra, João Bosco, Nara Leão, essa gente toda. Tocaram e eu achei fantástico! Pouco depois, por coincidência, eu conheci o Tom Jobim, o João Gilberto. Ali se formou o que seria chamado depois de bossa nova. Você menciona em seu livro que a gravadora não conseguia alcançar esse público. Como foi essa questão? O difícil era se comunicar com a juventude brasileira de então. Porque toda  a estrutura de jornais, rádio e televisão estava organizada confortavelmente para lidar com as grandes vozes que, já naquela época, eu chamaria “do passado”. Quando o João Gilberto saiu do estúdio tendo gravado o Chega de Saudade, fui à São Paulo poucos dias depois para mostrar essa maravilha. Toquei o acetato para um gerente comercial da Odeon. Ele chamou os vendedores, porque eu tinha dito que ia apresentar uma coisa monumental. No fim, ele tirou a agulha, pegou o acetato, jogou no chão e disse: “Isso, meu filho, é música para viado! Nunca vai tocar! Nunca vai vender!”. E ele não fez isso de maldade. Então, o que a gente fez foi passar por cima de todas as mídias. Tanto no Rio quanto em São Paulo, a gente ficava na saída dos colégios e distribuía o Chega de Saudade em 78 rotações. Não milhares, mas várias centenas aqui e outras centenas no Rio. Os meninos que ganhavam os discos gostavam, recomendavam aos amigos. Eles se tornaram os divulgadores. Telefonavam para as estações de rádio, queriam que elas tocassem isso, tocassem aquilo. E a gente organizou concertos em colégios e faculdades. O resto da história, vocês conhecem. Quem é André Midani na cena musical brasileira? É um camarada que não era nem músico, foi um péssimo baterista, mas adorava a música. Trabalhou feito um danado o tempo todo para ser o melhor empregado possível a serviço do artista. E quando digo “a serviço do artista” não é de uma forma demagógica. Fui adequado e capaz para um número substancial de artistas. E a sorte é que eles ficaram muito conhecidos posteriormente. Devo ter sido excepcionalmente rigoroso, decepcionante e rude com outros artistas com os quais eu não tinha uma grande afinidade ou confiança. André Midani é esse. Naquela época, os empresários – meus colegas de companhias de disco – tinham por missão ou vocação fazer com que a fábrica fosse bem administrada, que os depósitos estivessem bem sortidos, que os estúdios de gravação fossem rentáveis. Havia esta tradição no mercado de discos de que o patrão era uma pessoa que cuidava dos ativos da companhia. Eu, muito cedo, entendi que o melhor ativo de uma companhia de discos são os seus artistas. Porque uma fábrica e um estúdio, ou você tem ou você aluga. Agora, você não vai alugar um artista! E não é uma fábrica que vai te fazer vender discos. É o artista e o marketing sobre ele – essa palavra que todo mundo acha horrorosa. Marketing é uma palavra cujo uso e abuso a tornaram vulgar, mas inicialmente é uma coisa indispensável e honrada se você a utiliza bem. Então, tentei te responder quem é o tal André Midani (risos). Você se vê como um empresário da música? O que é isso, afinal? É um privilégio, porque é um desafio a busca do equilíbrio. Você tem o lucro de um lado e o artista do outro. Existem artistas de qualidade e lucro de qualidade. Isso é uma coisa que não é tão fácil. Você pode ter lucro formidável com artistas que

Entrevista completa com Marcelino Freire, para o Produção Cultural no Brasil

“Depois de escrever, vamos para a luta, vamos produzir, ver quem está escrevendo, juntar turmas para formar um exército.” Quando o escritor Marcelino Freire encontrou o poema O Bicho na gramática do irmão mais velho, descobriu que queria ser poeta. “O bicho, meu Deus, era um homem”, escreveu Manuel Bandeira. “Descobri que Bandeira era pernambucano também, falava de ruas que eu conhecia, Rua da União, Rua da Aurora, falava do Rio Capibaribe.” Nascido no ano de 1967, em Sertânia (PE), Marcelino é de família grande e pobre. Estudou e chegou ao curso de letras. Largou o trabalho de bancário para se dedicar a conhecer escritores pernambucanos. “Eu queria interlocutores, queria um diálogo, queria saber como o meu texto batia no ouvido do outro”, afirma. Em São Paulo, a carreira literária de Marcelino foi impulsionada pela mesma inquietação. Reuniu novos escritores para trocar ideias, incentivar pequenas editoras, publicar livros e organizar antologias. Por esse caminho, acabou por afirmar a existência de uma nova geração literária. Entre seus livros publicados estão Angu de Sangue (2000), Contos Negreiros (2005) e Rasif: mar que arrebenta (2008). Há cinco anos organiza a Balada Literária em São Paulo, evento que reúne dezenas de escritores nacionais e internacionais. “Digo sempre que enquanto outros fazem eventos com um milhão, eu faço com ‘hum-milhação’ ”, brinca. Sobre política cultural, defende a adoção de intercâmbios, residências artísticas, bolsas de criação e circulação de escritores nas universidades. Como a literatura chegou até você no interior de Pernambuco? Eu nasci em Sertânia, no sertão de Pernambuco. Sou o caçula de uma família de nove filhos. Uma família que não tinha biblioteca em casa, não tinha livro, não tinha água. Então, como é que eu me interessei por literatura? Como eu tive vontade de ser escritor em uma casa que não estava cercada disso, que não era movida por isso? Foi quando eu li um poema do Manuel Bandeira em um livro da escola do meu irmão mais velho. Eu estava com nove para 10 anos de idade, li um poema chamado O Bicho [“Vi ontem um bicho / Na imundice do pátio / Catando comida entre os detritos. / Quando achava alguma coisa; / Não examinava nem cheirava: / Engolia com voracidade. / O bicho não era um cão, / Não era um gato, / Não era um rato. / O bicho, meu Deus, era um homem” (1947)]. Pensei que queria fazer o que aquele cara fazia, queria ser poeta. Descobri que ele era pernambucano também, falava de ruas que eu conhecia, Rua da União, Rua da Aurora, falava do Rio Capibaribe. Ele não queria ser engenheiro, pedia desculpas ao pai por ser um poeta menor. Eu queria ser esse poeta menor. Minha família era sertaneja e queria que seus filhos estudassem, mas para ser engenheiro, médico, advogado. Nunca vi uma mãe dizer que queria que o filho fosse poeta. De certa forma, Manuel Bandeira me ajudou a não ser econômico, no sentido de pensar minha vida economicamente. Comecei escrevendo alguns poemas,imitando o Bandeira, querendo ser doente como o Bandeira, tuberculoso, comecei até a ensaiar umas tosses. Juro! Quando tinha mais ou menos 10, 11 anos, descobri que tinha sopro no coração. Isso foi minha glória literária! Ia pelos hospitais, pelos corredores. Bandeira abriu essa porta, me deu a vontade de ser escritor. É meio ficcional essa tuberculose do Bandeira. Que tuberculoso fuma dois maços de cigarro por dia e sobe ladeira em Santa Teresa (risos)? Tem um crítico literário que encontrou Manuel Bandeira um dia na rua e disse: “Você é uma fraude! Desde muito tempo você disse que ia morrer e não morre nunca!”. Eu gostava muito dessa figura. Meus irmãos iam jogar bola, andar de bicicleta, mas eu nunca quis saúde não. Gosto do Bandeira porque ele me doutrinou a ser doente. As pessoas vão atrás de saúde, eu não. Quanto mais um artista me deixa doente, mais eu gosto dele. Como foi esse começo de vida de escritor? A vivência em Pernambuco e a vinda para o Sudeste? Escrevia e participava de grupos de poesia. Fiz curso de letras, mas não terminei. E tinha um amigo que sempre me chamava para vir para São Paulo. Eu dizia: “Ah, o que eu vou fazer em São Paulo?”. Eu trabalhava em um banco como revisor de textos, era uma carreira no banco que estava se apresentando, eu fui office boy, escriturário, revisor. Mas eu disse: “Não quero banco. Cadê o Manuel Bandeira, cadê minha poesia, cadê os escritores dessa cidade?”. E aí eu deixei o banco e passei dois anos conhecendo os escritores do Recife: Raimundo Carrero, Ronaldo Correia de Britto, Wilson Freire. Eu fui conhecer todos eles e fazer cursos, encontrar esses escritores na cidade, esses artistas, poetas. Quando o dinheiro acabou, aceitei o convite de vir para São Paulo. Mas como foi a procura pelos escritores no Recife? Eu queria interlocutores, queria um diálogo, queria saber como o meu texto batia no ouvido do outro, que não o do meu irmão, que não o do amigo. Assim que eu saí do banco, tinha uma oficina de criação literária, que era a primeira oficina que o Raimundo Carrero ia fazer no Recife. Foi lá que eu o conheci. Além dele, conheci outros escritores que estavam ensaiando seus primeiros romances, seus primeiros livros de contos. Era uma necessidade de interlocução mesmo, para não ficar sozinho, acuado. Nesse sentido, eu já fazia teatro também, comecei muito novo, com 10 anos de idade. O teatro deu muita força para o meu trabalho, para o meu texto. Eu escrevia peças e também produzia. Com 14, 15, 16 anos, eu montava meu próprio texto e levava em temporada na escola, em teatros na cidade, sem absolutamente dinheiro nenhum, mas com muita vontade de fazer alguma coisa. Quando eu fui fazer a oficina do Raimundo Carrero, fui para encontrar esses interlocutores e para saber também o real peso ou o fracasso do que eu fazia. Naquele momento, você considerava que já tinha uma voz própria ou estava a procurando? Encontrei quando vim para São Paulo. Eu cheguei em 1991, zerado de tudo. Descobri aqui, por exemplo, que eu tinha sotaque. Isso é um caminho para você descobrir que tem uma voz. Descobri que eu tinha muita  saudade, um banzo imenso da minha família, do barulho da casa. Você começa, de alguma

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