Entrevista completa com José Celso Martinez Corrêa, o Zé Celso, para o Produção Cultural no Brasil
A conversa com José Celso Martinez Corrêa é, antes de tudo, performance, teatro de referências, libertinagem. Para o ator, autor e diretor, comandante do Teatro Oficina, em São Paulo, a grande revolução “foi o desbunde”. “A minha geração, de qualquer maneira, jogou com o corpo. Alguns foram para luta armada, porque não aguentavam mais e arriscaram o corpo. Outros foram para o desbunde.” O Teatro Oficina é símbolo de resistência política e cultural. Em 1967, após um incêndio, o teatro foi reformado e reaberto com a antológica peça O Rei da Vela, de Oswald de Andrade. Era tempo de ditadura. A montagem foi vanguarda do tropicalismo. José Celso, contudo, detesta a palavra “resistir”. “O correto é ‘re-existir’. Não concordo com essa ‘resistência’. Se existe um obstáculo, você inventa um jeito. Morre e nasce de novo”, diz. Sua arte está no método e na mística. Questiona os diretores de teatro que negam os prazeres da vida a seus atores. “Quero que os atores tomem drogas, que os atores amem entre si, vivam e sofram experiências da vida, porque só assim eles vão se autocoroar. Tento que sejam divas e ‘divos’, craques e jogadores, pessoas que sabem de si. Eu sou pelo teatro-poesia, como tem o futebol-poesia.” Qual o poder do teatro? O teatro e a poesia são as coisas mais importantes do mundo. Foram as artes mais descartadas, menosprezadas, nesse período todo do neo-liberalismo. No entanto, o poder está no teatro e na poesia. O teatro é exatamente o “apoderamento” da espécie humana, do seu poder de carisma, de presença, de intervenção na vida. E, agora, estamos partindo para as dionisíacas, para o teatro de estádio, das multidões. Nós temos uma tradição maravilhosa no Brasil: o carnaval. Tudo fica de ponta-cabeça. O teatro é o rito da cultura, da tribo humana, o que nos faz retornar aos índios, aos africanos, aos gregos da Antiguidade. A cultura dos ancestrais dá um valor enorme ao que não é positivista, ao que não está enquadrado, ao que não está classificado. Por exemplo, o Vinicius de Moraes fez o link entre o carnaval, o candomblé e a Grécia em Orfeu da Conceição. Ele nos fez descobrir o valor que tem a cultura africana, o poder que tem o exu, a pomba-gira, todos os orixás. É o mesmo poder que tem Apolo, Dionísio, Hera e Eros. Nós sabemos disso porque nós herdamos a cultura dos africanos, dos índios. A cultura brasileira é uma cultura de babel, que deu certo no suingue, no balanço do corpo, do quadril. Deu certo nisso. Walt Whitman escreveu no poema Canto a mim mesmo: “Eu não enontro gordura mais doce do que a inserida em meus próprios ossos”. Um artista tem que se conhecer dessa forma para poder se expressar? Ele tem toda a razão. O artista que não está envolvido na sua obra é um artista que não existe. Conheço vários artistas sobre os quais não se sabe nada, porque a obra não passa pelos seus corpos. Não só o corpo subjetivo, mas o físico, que é muito importante também, e o corpo sem órgãos, aquele corpo que se liga pelos sentidos com o todo, o cosmos. Como disse Oswald de Andrade: “Eu no cosmos, o cosmos em mim” . O artista é como uma ideia do Einstein. Ele sugere que, ao estudar um fenômeno, já se interfere nele, passa-se a fazer parte dele. O artista objetivo não existe. Ele está envolvido totalmente na criação. A função dele é mesmo envolver todos, inclusive ele mesmo, no cosmos, que é a criação permanente. As pedras criam e desejam, as plantas, os animais, os bichos, tudo. Você tem que entrar nesse circuito de desejos, na música do cosmos. Uma vez, em 1974, tomei um ácido, estava em Portugal, exilado, e fazia Galileu Galilei [texto do alemão Bertold Brecht, encenado no Teatro Oficina, em 1968]. Estava muito envolvido com astrologia. Na viagem daqueles ácidos maravilhosos, eu percebi que temos todo o cosmos dentro de nós, todo o sistema plane- tário, milhares de outros dentro de nós. Como dizia Rimbaud: “Eu é um outro”. Esse outro é o artista. O Whitman também falava que era preciso cantar o corpo elétrico … Principalmente. Eu estou fazendo Cacilda Becker. Escrevi quatro peças sobre ela, porque é uma atriz que tinha o corpo elétrico. É muito difícil passar isso. É o corpo que a cultura chinesa conhece, que se comunica eletricamente com as energias cósmicas. A Cacilda Becker era uma atriz que entrava em cena, no meio daqueles atores impostados e dirigidos por diretores italianos, e realmente mudava a ambiência elétrica do lugar. O corpo dela estava eletrificado. Cultivei também essa eletricidade no meu corpo. No livro Primeiro Ato, uma biografia que a minha sobrinha fez [livro organizado por Ana Helena Camargo de Staal, publicado em 1998 pela editora 34], o Roberto Piva escreveu assim no prefácio: “Eu tenho um amigo e esse amigo é um corpo elétrico”. O poeta percebe isso. E fui desenvolvendo por causa da Cacilda Becker. Quis estudá-la, escrever 900 páginas e quatro peças sobre ela, já montei duas. Tento passar isso para os atores, o poder da eletricidade que a gente tem, o poder que faz a transformação do mundo e, afinal, a si mesmo. O que é necessário para o corpo elétrico ser difundido na cultura brasileira? Esse corpo elétrico tem que penetrar em toda sociedade brasileira. Em nós. É a única coisa revolucionária que existe. A grande revolução não foi a luta armada, nada disso, foi o desbunde. Foi fundamental o fato de você desmontar seu corpo careta, pequeno burguês, patriarcal, formado com essa noção de cabeça separada do resto do corpo. Começar a perceber por meio das viagens de ácido, de mescalina, das orgias, da liberdade e do paganismo. Ali houve uma revolução: a da mulher, a do gay, enfim, a da percepção do corpo. As transformações verdadeiras vieram do desbunde. A minha geração, de qualquer maneira, jogou com o corpo. Alguns foram para luta armada, porque não