Entrevista completa com Antonio Albino Rubim, para o Produção Cultural no Brasil

Definir papéis dentro dos meandros da produção cultural no Brasil não é tarefa simples. Antonio Albino Rubim considera que a especialização do setor ainda engatinha no país. Para ele, o produtor não é necessariamente um criador, papel mais afeito aos cientistas, artistas, intelectuais. “O produtor não está vinculado a esse momento da criação, mas ao momento da organização da cultura, ainda que ele possa ser uma pessoa criativa.”

Rubim, que é sociólogo e professor de política cultural na Universidade Federal da Bahia (UFBA), diz que a dificuldade de identificar competências no setor se dá em função do descaso do país no tratamento da cultura como política prioritária. “No Brasil, quem assumia a organização da cultura era o filho do político tal, que gostava de poesia e, assim, se tornava o gerente do centro ou da fundação cultural.”

A carência no campo da formação estimulou Rubim a montar um curso específico na UFBA. Um recente mapeamento coordenado por ele para o Sistema Nacional de Cultura identificou quase 700 cursos – de extensão até pós-graduação –, mas a maioria é o que ele chama de “cursos Walita”, de uma semana no máximo. “Nossa área está infestada de cursos para pessoas botarem dinheiro no bolso”. E conclui: “Na hora que você deixa só o núcleo consistente, sobram no máximo 30 cursos. Pouquíssima coisa.”

O que é produção cultural?
É um termo muito ambíguo, têm vários sentidos. No sentido mais clássico, é tudo que se produz culturalmente, quer dizer, o que a cultura produz. E, no Brasil, particularmente, produção cultural virou sinônimo de um determinado tipo de atividade dentro da cultura, dentro de um âmbito geral de sua organização. A cultura  precisa ter elementos de organização, como precisa ter elementos de criação, preservação e fusão. Dentro disso existe a gestão, existem aqueles que são os formuladores das políticas culturais, e também o pessoal de produção. Produção no Brasil virou sinônimo de um momento da cultura, e de um determinado tipo de profissional. É uma coisa singularmente brasileira.

E as diferentes profissões que estão dentro da mesma palavra: produtor criador, produtor executivo?
Há ambigüidade na palavra “produção” quando analisamos áreas culturais diferentes. Se fala de produção em cinema, não é exatamente igual ao produtor em outra área. Não acho que o produtor seja necessariamente um criador. A criação é outro momento do sistema cultural. Os criadores são os cientistas, os artistas, os intelectuais. O produtor não está vinculado a esse momento da criação, mas ao momento da organização da cultura, ainda que ele possa ser, no momento da organização, uma pessoa criativa, inovadora. Além de executar o projeto, o produtor tem a capacidade de formular, de bolar e de apresentar projetos.

Houve mudança do papel do produtor a partir das leis de incentivo?
No Brasil, existe uma certa hegemonia da figura do produtor e da produção cultural. Ao dialogar com outros países latino-americanos, por exemplo, as pessoas não conseguem entender muito o produtor como ele existe aqui. Inclusive, o termo “produtor” não é muito usado. No Brasil, houve um longo período em que o Estado era responsável pela relação com a cultura, por seu financiamento. Nesse momento, que vai dos anos 30 até talvez o governo Sarney, infelizmente não se desenvolveu o que havia em outros países: a figura do gestor cultural. A pessoa que cuida da organização da cultura. No Brasil, quem assumia a organização da cultura era o filho do político, porque ele gostava de poesia, então virava o gerente, o diretor do centro cultural, da fundação cultural, da secretaria estadual. A relação do Estado com a cultura era absolutamente amadora – no sentido ruim da palavra. Temos um déficit quanto à função do gestor cultural. Quando a lei de incentivo começa no período Sarney, o produtor passa a ter ênfase também no âmbito da organização da cultura. Houve o deslocamento do eixo, por exemplo, das instituições que organizam a cultura para o eixo daquele cara que produz um seminário, um evento. A lógica da lei de incentivo foi tão forte no Brasil que ela levou a uma predominância imensa dessa figura do produtor cultural. Desse modo, os primeiros cursos que foram criados nas universidades eram de produção cultural, não de gestão cultural. Até hoje, são pouquíssimos os cursos de gestão cultural no Brasil. No governo Collor, quando a Lei Sarney acabou, a lógica do Estado financiador não foi retornada porque o Collor não seguia essas idéias na política e na economia. A lógica da lei de incentivo então se expandiu para estados e municípios. Uma coisa perversa. Mesmo setores de esquerda, quando pensaram como resolver a questão do financiamento da cultura, da produção cultural no Brasil, recorreram à lei de incentivo. Em Salvador, a lei municipal de incentivo à cultura, que se chamava Lei Javier Alfaya, foi proposta pelo vereador do PCdoB que tinha sido presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE). Se o Estado não está intervindo na cultura, a lógica predominante é a lógica da lei de incentivo. Todo mundo começa a pensar a partir dessa lógica. O Estado sempre acha que a relação dele com a cultura é de dirigismo. O próprio pessoal da cultura não acha que o Estado brasileiro tem que ser responsável e bancar determinadas atividades culturais, coisa que os cientistas do Brasil não têm nenhuma dificuldade de  reconhecer. Quer dizer, os cientistas sabem que determinado tipo de pesquisa vai ser financiada pelo Estado ou não será por ninguém. Quem é que vai financiar ciência pura no Brasil? Em torno de 80%, 90% da pesquisa nacional é bancada pelas universidades públicas, portanto, pelo Estado. Os cientistas não têm dificuldade com isso. E não acho que, por isso, eles estão sendo dirigidos, que o Estado é dirigista. Existem os argumentos de que devemos regulamentar as leis de incentivos para que não sejam concentradoras e possam bancar um determinado projeto com os índios da Amazônia ou a cultura popular do Nordeste. Lei de incentivo não foi feita para isso, para bancar a diversidade da cultura brasileira. Não dá para exigir da lei de incentivo a lógica que deveria     ser a do Estado. O Estado, sim, pode ter o compromisso com a diversidade.

As leis de incentivo e os editais são um mecanismo imediatista de produção. Como pensar isso a longo prazo? Tem que ser a partir de políticas de Estado?
Estamos navegando com dificuldades de nomenclatura. É bom distinguir as políticas estatais das políticas de Estado. As primeiras são quaisquer políticas feitas pelo Estado, que podem ser políticas de Estado ou de governo, certo? Há um problema grave no Brasil: nós não conseguimos ter, na área da cultura, nenhuma política de Estado que transcenda um determinado governo. Há uma tradição muito forte de instabilidade nas políticas que são levadas a cabo pelo Estado brasileiro: um governante entra e acaba com tudo que o outro fez. O exemplo maior da instabilidade no campo da cultura é o período da implantação do Ministério da Cultura, de 1985 até 1994, já no governo Itamar, foram nove responsáveis pela cultura [no governo Sarney: José Aparecido de Oliveira, Aluísio Pimenta, Celso Furtado, Hugo Napoleão do Rego Neto e José Aparecido de Oliveira novamente; no governo Collor: Ipojuca Pontes e Sérgio Paulo Rouanet; e no governo Itamar: Antônio Houaiss, José Jerônimo Moscardo de Sousa e Luiz Roberto do Nascimento e Silva]. É uma loucura. Um ministério novo sendo implantado e essa quantidade de ministros e secretários – porque nesse período há um momento em que deixa de ter ministério e passa a ter Secretaria Nacional de Cultura. A instabilidade das políticas para a cultura é fortíssima. Como a gente pode superar isso? O governo atual fala muito bem dos Pontos de Cultura, todo mundo é maravilhado com eles. Mas o projeto não tem a capacidade, por exemplo, de virar uma política de Estado. Pode ser que leve a isso. A saúde no Brasil é um dos campos onde existem políticas de Estado bem definidas. Um presidente entra e não vai acabar com o Sistema Único de Saúde (SUS), certo? Ele pode apoiar menos ou mais, mas o SUS continua. É uma política de Estado. O Sistema Nacional de Cultura, se for bem implantado, tem capacidade para se tornar política de Estado. O Plano Nacional de Cultura também. Mas, pessoalmente, tenho críticas seríssimas ao plano tal qual está formulado hoje. É uma iniciativa do Congresso que prevê que haja um Plano Nacional de Cultura para dez anos. Isso é ótimo, inclusive porque em outros países isso já existe – e não estou falando de países europeus, mas de países latino-americanos. O Plano Nacional de Cultura do Brasil foi construído de forma democrática, foram ouvidos muitos setores da sociedade, foi construído a partir de uma quantidade enorme de reivindicações e demandas. Agora, você não pode fazer um plano que tenha 200 diretrizes, porque assim não dá para dar conta de todas elas em dez anos. Você tem que escolher o que é prioritário. Quando  você terminar os dez anos, você pode dizer: “Isso foi resolvido. Vamos para outro patamar”. Mas se você bota 200 diretrizes, contempla todo mundo, não adianta nada, porque em dez anos, você não vai conseguir fazer tudo. Mas ele é fundamental, no sentido de ter política de Estado.

Sobre o aspecto de mercado: às vezes o produtor não está preocupado com o público porque o produto já está pago pelo patrocinador. O que você pensa disso?
Sou muito crítico às leis de incentivo. Não que eu seja contra elas, mas essas leis tomaram lugares que não deveriam tomar. Uma lei de incentivo é uma das maneiras de financiar a cultura, que está dentro de um sistema de um financiamento mais amplo. Sem problemas você aceitar a lei de incentivo nesse sentido. Mas elas se tornaram praticamente a única forma de financiamento existente na cultura brasileira. Em governos como o de Fernando Henrique Cardoso, a lei de incentivo se tornou a política cultural. Olha que deturpação. Quer dizer, aquilo que é uma parte da parte virou o todo. Totalmente equivocado.

A lei de incentivo sozinha é como uma política de privatização, não é?
Qual é o sentido de ter uma lei de incentivo que dá 100% de isenção, se todo dinheiro é público? Conheço lei de incentivo de vários países. Em alguns, em que o índice é de 50%, já acham muito! No Brasil, existe 100%, além das despesas operacionais, quer dizer, é mais de 100%. Não tem sentido. A lei de incentivo, em vez de incentivar a iniciativa privada a investir na cultura, está, na verdade, viciando a iniciativa privada, porque está dando dinheiro público. O poder de decisão sobre o dinheiro público deixa de ser do Estado ou da sociedade e passa a ser dos departamentos de marketing das empresas. É cruel. Compare, por exemplo, o financiamento do cinema brasileiro e do cinema argentino como parâmetro. O cinema brasileiro é totalmente preso à lógica de lei de incentivo, portanto, ele depende de os produtores do cinema terem o aval das empresas para que aquele filme seja feito. No cinema argentino, você tem um conjunto de taxas, que são cobradas a partir de produtos audiovisuais; essas taxas são reunidas em um fundo e ele é administrado pelo Instituto Nacional de Cinema e Artes Audiovisuais (INCAA), que financia o cinema. Há quem diga: “Ah, mas então é dirigismo do Estado argentino”. Não: ele é financiado a partir do INCAA, que faz editais e seleções a partir de pessoas no campo cinematográfico. É algo similar ao que acontece, no Brasil, com a ciência. Quer dizer, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) financia projetos de pesquisa na área de sociologia. Quem julga os projetos que devem ser financiados? São pares da área de sociologia, não é isso? E não necessariamente isso leva ao dirigismo do Estado, pelo contrário. Ninguém vai dizer que o CNPq tem um papel de dirigismo da ciência do Brasil; seria um exagero. Então, o cinema argentino hoje é muito melhor do que o cinema brasileiro, com algumas exceções. Não estou dizendo que o cinema brasileiro não tenha filmes razoáveis, mas os argentinos têm muito mais liberdade de criação, mais possibilidade de experimentação, não está preso a uma determinada lógica de produção, que é a lógica de as empresas decidirem. É uma diferença radical.  No teatro, temos outro exemplo. É muito melhor, no Brasil, que se faça outra peça de teatro quando acabar a pequena temporada. Por quê? A produção vai ganhar muito mais do que se continuar estendendo a primeira. Como é que pode a predominância de uma lei que vai contra à ideia de fazer crescer públicos culturais no país? É uma tragédia. A cultura começa a desenvolver uma espécie de mercado próprio e não uma economia da cultura na lógica da própria cultura – quer dizer, formação de público, ampliação de consumidores e tudo mais. Há ainda a concentração dos recursos em determinados projetos e o caso das fundações criadas pelas instituições que as  financiam. Acabam por carregar grande parte dos recursos. As leis de incentivo, na modalidade brasileira, não têm a capacidade de alavancar recursos da iniciativa privada porque a isenção é de 100%. Isso bloqueia, na verdade, a chegada de recursos. Lá na Bahia, por exemplo, a antiga Companhia Petroquímica do Nordeste  Copene) – e atual Braskem – financiava de forma interessante a música e, depois, o teatro. Tinha um prêmio de teatro importante com recursos da própria Copene/Braskem. Nessa época não tinha lei de incentivo. Era dinheiro realmente da empresa que estava sendo investido.

Fale sobre a formação de profissionais nas universidades e o mapeamento da UFBA coordenado por você sobre os cursos de cultura.
Na Bahia, em 1996, talvez até encantados por essa lógica – todo mundo paga o ônus de vir em uma determinada época com determinados pensamentos dominantes – criamos um curso de produção cultural, um dos primeiros do país, junto com a Universidade Federal Fluminense. A Universidade Federal da Bahia tem uma tradição cultural grande. Foi criada em 1946 e já nos anos 50 começou a desenvolver uma série de áreas de arte. A primeira escola de dança universitária do Brasil foi lá; uma das primeiras escolas de teatro também. Houve os seminários de música importantíssimos nos anos 50 e 60. Essa tradição se manteve, inclusive, com a criação desse curso de
produção cultural, que é uns dos primeiros do Brasil. Depois a universidade se expandiu muito para a área de pós-graduação em cultura. Nesse sentido, a gente cria o Encontro Nacional de Estudos Multidisciplinares em Cultura. Um encontro muito singular no sentido de juntar pessoas que refletem sobre cultura, independentemente da área de conhecimento. Nesse ano, por exemplo, foram 330 trabalhos apresentados. Estavam participando 61 universidades ou instituições de ensino superior do Brasil e de fora. Temos insistido muito com o ministério em algumas coisas. Logo no início do governo Lula, estive em uma reunião com o Gilberto Gil e o reitor e outras pessoas da universidade, para insistir no fato de que a universidade no Brasil sempre foi uma instituição que teve peso muito grande na cultura brasileira, mas foi deixada de lado. Quando se separou o Ministério da Educação do Ministério da Cultura, em 1985, a gente ficou no seguinte drama: o pessoal do Ministério da Cultura dizia: “Vocês não tem nada a ver com a gente. Pertencem lá à educação”. O pessoal da educação, quando a gente falava em cultura na universidade, dizia: “Isso é coisa do Ministério da Cultura”. As universidades ficaram em um limbo.
Há um déficit de investimento do ministério em relação à formação de pessoas para área de cultura. Já falei que não tivemos uma tradição de forma    ção de gestores culturais. Às vezes era um intelectual, um filósofo, que virava gestor cultural. E tinha que se virar para aprender, porque ele não tinha, a princípio, nenhum subsídio, capacidade, formação específica para aquilo. O ministério tem uma dívida com isso. Estive no México para um seminário, há uns anos, e vi que lá eles tinham um programa de formação de gestores culturais. No Brasil, nunca teve isso. Chegamos a elaborar um projeto para fazer um mapeamento da situação da formação e da organização da cultura e, a partir daí, estabelecer uma rede com as principais instituições da área para desenvolver um programa de formação. Não deu certo. O Sistema Nacional de Cultura andou até determinado período. Depois, tudo parou. Agora, voltou a ser reativado. O ministério propôs que se fizesse um mapeamento e um curso-    piloto de gestão cultural para que isso fosse incorporado ao sistema. Coordenei o grupo de mapeamento. Outro grupo ficou com a proposta do curso-piloto que foi feito em Salvador. O trabalho se chama Mapeamento da Formação em Organização Cultural no Brasil. Esse mapeamento tem limites, claro, não teve um grande financiamento, mas levantamos na internet quase 700 cursos de quase 300 instituições – desde cursos de extensão até doutorado e pós-graduação [disponível em www.organizacaocultural.ufba.br]. Trabalhamos com mais afinco os cursos mais permanentes. Desses 700, seiscentos e tantos eram cursinhos. Costumo brincar que são “cursos Walita” – três dias ou uma semana no máximo. Nossa área está infestada de cursos que são para as pessoas botarem dinheiro no bolso. Nos concentramos mais naqueles cursos que não tinham esse caráter. A gente fazia uma complementação de informações via telefone, para uma pesquisa empírica, porque a gente não tinha recursos para ir aos lugares. Mas, de qualquer maneira, isso é um panorama muito bom.

Como estão esses quase 100 cursos que vocês consideraram mais consistentes?
Não são 100, não. Desses 100, há os cursos de tecnólogos em produção cultural. Na hora que você deixa só o núcleo consistente, sobram no máximo 30 cursos. Pouquíssima coisa. O curso de produção da Federal da Bahia é fortemente carregado na área de comunicação porque foi criado dentro da Faculdade de Comunicação. Eu era diretor da faculdade e a gente criou esse curso porque era o possível naquele momento. A gente não tinha condição de fazer um curso de produção, em termos de material humano. Era um curso que não existia no Brasil. A gente teve que pegar algumas experiências de fora do país e adaptar. Outro que foi criado no mesmo momento foi o da Federal Fluminense. Apesar de ele também estar vinculado às áreas de comunicação e de artes, era muito mais ligado às artes do que à comunicação. É difícil comparar um e outro. Os dois são cursos de produção, mas muito desiguais. Em 2000, o curso da Bahia passou por uma reforma de currículo. Os alunos e os produtores culturais da cidade foram chamados a discutir o curso. Mas de lá para cá, ele deveria ter tido novas reformulações, no sentido de direcioná-lo mais para o campo da cultura mesmo. Um exemplo concreto: o curso lá tem teoria da comunicação e não tem teoria da cultura. Um absurdo que não tenha. Assim como não havia outras disciplinas, como cultura brasileira, cultura baiana, cultura internacional.

E o aluno acaba ficando especialista em “enquadrar” projeto, não é?
Fica com pouca bagagem sobre a relação com equipamento, tecnologia, laboratório, sobre o que é teatro, uma caixa preta, o cinema, as noções básicas. Sim. O risco desses cursos é que eles se tornem muitos técnicos. Você pode ter o aprendizado de determinadas técnicas, de fazer projetos, de captar recursos, e não ter um embasamento cultural mais consistente. Esse é o risco: gerar um produtor que encare a cultura de forma muito instrumental. Não vejo como um gestor cultural, um produtor cultural que lida com políticas culturais possa não ser totalmente afinado com o campo da cultura. O cara que está totalmente imerso dentro da cultura, com visão crítica, que tem uma base cultural consistente, é que vai ser o bom produtor, o bom gestor, o bom formulador de políticas culturais. Os alunos, às vezes, têm também essa visão meio instrumental. A vantagem do curso de produção de Salvador é que há o programa de pós-graduação junto.

Como estimular uma reflexão crítica mais geral sobre o momento da cultura? Isso estaria na universidade?
Uma reflexão crítica sobre a cultura é um dever da sociedade como um todo, e isso nunca esteve restrito a uma determinada área da sociedade. Algumas áreas tiveram uma participação mais ativa. A sociedade brasileira deveria refletir muito mais sobre a cultura. Hoje se fala muito: “O Brasil está se desenvolvendo, tendo outra relação internacional, se colocando ao mundo de outra maneira”. Qual é a grande discussão brasileira? Quais são as grandes manifestações brasileiras? Quais são as grandes mudanças da cultura brasileira que têm relação com essa mudança que está acontecendo no país? Essas mudanças estão acontecendo, e acho que mesmo a oposição vai reconhecer isso. Talvez não sejam as mudanças que a gente imaginasse,  que a gente quisesse, as mais maravilhosas, mas o Brasil está mudando. Agora, como isso é rebatido no campo da cultura? Como a cultura acompanha  isso? O que a cultura está dizendo sobre esse Brasil que está mudando? É    uma coisa mais geral da sociedade, mais geral do movimento cultural, dos intelectuais, dos artistas, que têm refletido muito pouco sobre isso. Existe todo um movimento cultural, toda uma dinâmica nova nas periferias das grandes cidades. Ao lado da violência, da falta de segurança, há uma dinâmica econômica, cultural, com os circuitos de cultura. O que isso significa, em termos de cultura brasileira? Qual o impacto disso?

A questão da tecnologia, por exemplo: internet e a revolução das lan houses.
Claro, tudo isso. O que tem se refletido sobre isso? O que nós temos dito sobre isso? Nós, intelectuais, do campo da cultura? E o que a universidade tem dito sobre isso? Em determinados momentos, na história do Brasil, tivemos um grande movimento de reflexão sobre aquela cultura que estava sendo  feita. Nos anos 30, tinha uma revista chamada Boletim de Ariel, de discussão da  cultura, da literatura. Ela tinha 10 mil exemplares de tiragem, com uma repercussão cultural imensa na sociedade. Nos anos 60, nós tínhamos também manifestações culturais riquíssimas em termos de reflexão sobre a cultura. Hoje, você tem uma dispersão cultural imensa da reflexão. Uma coisa é discutir o que o ministério está fazendo, outra é discutir essa coisa mais geral.

Quem é o estudante de produção cultural?
Depende do lugar. No Rio, será mais gente das artes. Na Bahia, de comunicação. Na história da universidade brasileira, em determinados momentos, alguns cursos  capturaram as pessoas que eram interessadas em cultura, e em determinado momento, esse curso foi o de direito. Nos anos 50, no curso de direito da Bahia, se você pegar a revista que era editada pelo centro acadêmico, chamada Ângulos, vai ver lá coisas de João Ubaldo Ribeiro, de Glauber Rocha, que eram estudantes de direito. Mais recentemente, são os cursos de comunicação que puxam o pessoal de cultura. Uma vez fizemos lá uma pesquisa com o pessoal de jornalismo. Um terço dos alunos queria fazer jornalismo mesmo; um terço não sabia o que queria fazer; e um terço queria fazer cultura, e estavam na comunicação porque não tinha um curso de cultura na universidade. Então, a Faculdade de Comunicação, em Salvador, sempre teve uma tradição de levar muita gente da cultura. Esse é o pessoal que faz produção cultural lá, no nosso curso.

E tem essa coisa dos estágios nas produções culturais.
Tem. Para a Secretaria de Cultura da Bahia, se não fosse o curso de comunicação e o curso de produção cultural, eu não sei de onde eles extrairiam pessoas. A quantidade de alunos e ex-alunos do curso que estão na Secretaria de Cultura do Estado é algo impressionante. Hoje em dia, quem faz o curso está empregado, tem muita gente trabalhando, e muito mais como gestor cultural do que como produtor.

Há um paradoxo entre o não pensar a longo prazo e o pensar em etapas?
Há algum tempo, quando se discutia muito a política, o pessoal do Partidão tinha aquela coisa do: “Vamos fazer a Revolução Burguesa, para depois fazer a Revolução Socialista”. Confesso que eu nunca me identifiquei muito com essas etapas. Acho equivocado. Temos uma dificuldade muito grande de ter uma perspectiva de visão mais estratégica. Eu não sou daquelas pessoas que ficam jogando pedra na política o tempo todo porque parece que no Brasil a política é o único lugar onde estão todos os medíocres e corruptos, como se os outros campos fossem uma maravilha. A gente sabe que não é assim, que na política tem pessoas sérias, e gente ruim, como em qualquer campo. Mas uma das coisas que aconteceu com a política brasileira é que a gente perdeu a possibilidade de um pensamento mais estratégico, de pensar o futuro da sociedade mais adiante. Isso é terrível. A gente fica muito preso às pequenas mudanças do presente. A política não tem contribuído para isso, porque ela se tornou uma política muito realista. Do tipo: “Vamos fazer o que é possível fazer, pela correlação de forças que se tem”. E devíamos pensar: “Podemos mudar a correlação de forças para que a gente possa pensar outro tipo de sociedade”.
No passado, as pessoas imaginavam tanto o futuro que desconheciam o presente. Você tinha um aniquilamento do presente por um futuro que deveria vir, que era um futuro maravilhoso, radioso, um futuro totalmente utópico, idealizado. Você fazia uma desconexão total entre o presente. Hoje, você tem uma extensão tão grande do presente, o presente é tão sufocante, que você não consegue ter a capacidade de pensar o futuro, de imaginá-lo. Isso é um drama.

Essa questão do salvacionismo pela cultura? No Rio de Janeiro e em outras partes do Brasil, já existe a expressão “o menino do projeto tal”. No cerne, existe essa ideia de tirar a pessoa do crime. Como você avalia isso?
Existem os discursos sobre a cultura contemporânea e há algumas palavras e expressões mágicas: “centralidade da cultura”, “transversalidade”. É legal? Sim, porque reconhece que a cultura não se fecha em si mesma, tem articulação com a economia, com a política, com os vários campos sociais. É legal essa saída de um universo isolado. Agora, o perigo dessa passagem é perder a dinâmica própria da cultura: é legal culturalmente, desde que faça inclusão social, desde que produza emprego e renda, desde que salve os caras da violência. O que a cultura institui? A cultura institui valores. Uma coisa é você encarar que tem uma transversalidade, que a          cultura tem a ver com tudo isso. Corretíssimo. Para mim, isso é muito positivo. Outra coisa é achar que a cultura tem que resolver o problema da humanidade. Tem que resolver o problema da renda do brasileiro, o problema da violência na sociedade. É uma mitificação total. Você joga sobre o ombro da cultura uma coisa que ela não pode dar conta. São problemas da sociedade como um todo, não é um problema de um setor, de um segmento, atividade, ou profissional. Quer dizer, se não produzir emprego e renda, não é legal? Não é uma coisa positiva? Não é um valor? A cultura tem relação transversal com todas as outras coisas. A cultura não pode ser medida pelas outras áreas. Se a gente não encarar que a cultura tem os seus valores intrínsecos, daqui a pouco o campo da cultura acaba, porque será totalmente subordinado a outras lógicas, que são exteriores a esse campo. A cultura tem sua medida própria.

Entrevista realizada por Fabio Maleronka Ferron e Sergio Cohn
no dia 26 de junho de 2010, em São Paulo.
Para assistir essa entrevista em vídeo:
https://producaocultural.procomum.org/2010/08/19/antonio-albino-rubim/

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