Entrevista completa de Yakoff Sarkovas ao Produção Cultural no Brasil

  Ele era um apaixonado por música quando, aos 17 anos, ouviu de um amigo que para vender discos, uma canção precisava ser executada nas rádios. Yakoff Sarkovas teve, então, um insight empreendedor: fazer rádio-escuta para registrar as músicas tocadas e vender os relatórios estatísticos às gravadoras. Esse foi o embrião do modelo de acompanhamento do Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad). “Eu era odiado pelos divulgadores, porque denunciava se o trabalho deles tinha sido benfeito ou não.”

Foi assim o início desse filho de imigrantes russos na chamada “indústria cultural”, na qual atuou em diversas frentes. Depois do segmento de discos, migrou para a cena teatral nos anos 80, em uma época em que começa a se destacar uma safra notável de nomes como Gerald Thomas, Antônio Nóbrega e Bia Lessa.

Por meio de uma empresa que fundou em 1985, a Articultura, Sarkovas passou a desenvolver ações culturais associadas à comunicação empresarial. “Na minha trajetória profissional, o método de pensar uma ação cultural por uma encomenda de um briefing empresarial evoluiu para o planejamento de toda política cultural de marca.” Foi graças ao trabalho dele que a Petrobras repaginou sua política de patrocínios, elevando o nome da companhia ao status que hoje ostenta. “Até 1999 ninguém sabia o que a Petrobras fazia em cultura porque ela ficava brigando com os seus patrocinados para que a citassem.”

Como você começou a trabalhar com cultura? Você começou como um braço do mercado fonográfico?
É uma longa história. Sempre fui apaixonado por cultura, particularmente pela música. Tentei guiar minha trajetória profissional por essa paixão. Queria fazer engenharia eletrônica para trabalhar com isso, mas desde os 15, 16 anos, comecei a me envolver um pouco com pessoas ligadas ao mercado fonográfico. Aos 17 anos, conheci um produtor, Cesare Benvenuti, o responsável por aquelas bandas com nome inglês que faziam sucesso nos anos 70, no Brasil. Lee Jackson era uma, Sunday era outra. Acabei ficando amigo do Cesare. E ele falava: “Música vende se tocar no rádio”. Era assim na época e ainda é um pouco até hoje, embora muito menos, com a internet. As gravadoras investem muito esforço e dinheiro. Comecei a pensar a esse respeito e fui fazendo o colegial junto com a eletrônica. Comecei a pensar em um sistema de rádio-escuta, de como se poderia controlar as músicas que tocavam no rádio para gerar estatística para as companhias de disco. Montei um modelo de fazer isso aos 17 anos. A gente conseguiu um sócio capitalista, o Paulo Junqueira que, por acaso, era um cara também ligado à musica, dono de uma rede paulista de lojas de disco, a Cash Box. Então, montamos uma empresa chamada Informa-Som. Abandonei a faculdade e virei empresário, um empreendedor com 18 anos de idade. Eu tocava a empresa, o Cesare, a partir das relações que ele tinha com o mercado de disco, abria as portas para tentar vender esses relatórios nas gravadoras, e o Paulo fazia a administração financeira. O primeiro cliente nosso foi a Odeon, que comprou os relatórios. A gente emitia relatório diário, assim, das 7h às 19h, música por música, marcando hora, minuto, intérprete, gravadora. Fazíamos estatísticas semanais e mensais. Mas essa empresa começou com muita dificuldade, porque o volume de gravadoras que passou a assinar esse boletim ainda não era suficiente para pagar o custo operacional. O Cesare já tinha uma outra atividade e foi se afastando, e eu acabei sobrando com a empresa na mão. A partir de um determinado momento, ela se estabilizou razoavelmente. As principais gravadoras assinavam esse folhetim. Virou um sistema de rádio-escuta, temido pelos divulgadores, porque algumas gravadoras passaram a pagar as bonificações, os salários dos divulgadores com base na performance do Informa-Som. Então, eu era odiado pelos divulgadores, porque denunciava se o trabalho tinha sido benfeito ou não. Paralelamente a isso, em pleno regime militar, havia um grande movimen-
to de músicos brasileiros em relação aos direitos autorais que, na época, ainda eram controlados pelas velhas sociedades que eram articulações políticas que vinham desde os anos 40, 50. A primeira sociedade de direitos autorais no Brasil foi a Sociedade Brasileira de Autores (SBAT), que era dos autores teatrais. Ela tinha um departamento de música. Então, as primeiras arrecadações de direito autoral no Brasil foram eles. Esse povo saiu e fundou a União Brasileira de Compositores (UBC), acho que em 1920. Aí começou uma série de dissidências. Naquela altura, existiam seis ou sete sociedades de direito autoral, cada uma representando interesses distintos. E toda essa geração que surgiu pós-bossa nova não via a cor do dinheiro. De João Gilberto para cá, passando por toda aquela safra que surgiu nos anos 60, no Festival da Record, ninguém recebia direito autoral. Por mais que tocassem no rádio. O dinheiro não chegava para Caetano Veloso, Chico Buarque, etc. Então, começou a haver uma articulação para moralizar o direito autoral no Brasil.

Você está falando das reuniões na casa do produtor Hermínio Bello de Carvalho, do movimento da Sombrás?
Essas histórias vão se juntar exatamente aí. Quando comecei a entender o problema de direito autoral no Brasil, eu, ingenuamente, comecei a bater na porta dessas sociedades para propor um novo sistema. Criaria uma base estatística para fazer a distribuição. Depois, entendi que os caras não queriam isso porque ali era um rateio. Era uma ação entre amigos. E cheguei até o pessoal da Sombrás. As pessoas que estavam mais à frente disso eram o Vitor Martins, o Ivan Lins. O presidente da Sombrás era o Tom Jobim. Chico Buarque participava de vez em quando. Eles elegeram o meu modelo como ideal, baseado em amostragem estatística para distribuição de direitos autorais. A classe artística cultural era uma das mais atingidas pela ditadura militar, mas havia uns conluios. Em uma daquelas bolhas de relação entre o meio cultural e o regime militar, o governo resolveu moralizar o direito autoral. Baixaram na época aqueles decretos com força de lei e refizeram a revisão completa da legislação.
Foi criado o Conselho Nacional de Direito Autoral (CNDA), e o Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad), um órgão estranhíssimo, porque ele não é estatal, não é público, imposto por lei e que obriga as sociedades que são privadas a compor esse órgão: Sicam, UBC, Sadembra. Foi encomendado ao Serviço Federal de Processamento de Dados (Serpro), que fazia o imposto de renda no Brasil, a criação de um sistema de processamento de dados para fazer a distribuição dos direitos. O Serpro adotou uma estratégia equivocada e eu propus um sistema que deu certo. O sistema de distribuição acabou como uma extensão do que eu criei nos anos 80. Consegui capital para informatizar a minha base de dados, criar o primeiro banco de dados informatizado, que tinha música, intérprete, gravadora. Acoplei a chapa de distribuição, os autores, a chapa de partição, a editora, o dono do fonograma, e criei o sistema de distribuição direto, que foi adotado pelo Ecad.

Ao mesmo tempo, você começou a produzir teatro?
Tinha entrado nesse mundo da música e dos direitos autorais com 17 anos. Depois, quando estava com 27, tive que enfrentar um monte de dificuldades: depender de agiotas para poder pagar folha de pagamento, 200 funcionários, núcleos de gravação e pesquisa em 12 estados. Comecei a pensar o que é que eu podia fazer. E falei: “Vou pular para o lado de lá, vou produzir cultura”. Decidi produzir aquilo que eu acho que tem que ser produzido. Por que não havia teatro contemporâneo feito com padrão profissional? Por que música instrumental não tem espaço? Cheguei à conclusão que a questão era econômica. Você tem duas fontes básicas de financiamento: o público, que compra ingresso, livro, disco, e o Estado, que poderia, com financiamento público, suprir aquilo que a indústria não dá sustentação. O sistema de financiamento público, naquele período, não existia. Ainda moribunda, existia a Embrafilme, cheia de vícios, mas já também pauperizada. Uma hora me ocorreu uma ideia singular, simples, singela, de que essas expressões culturais tinham uma capacidade de expressar atributos que talvez as empresas se interessassem. Que atributos tem o teatro contemporâneo, a dança contemporânea? Então, se elas atraem público suficiente para se viabilizar, para se tornar viável economicamente pelo pagamento de ingresso, talvez elas consigam uma repercussão na mídia que muitas vezes é desproporcional ao púbico que arregimentam. Até então não tinha nenhum vínculo profissional, nem pessoal, com o teatro. Vendi parte da Informa-Som para os meus sócios e parte dela para o Ecad. E decidi focar no teatro. O primeiro projeto que surgiu, que me interessou, estava ligado à efeméride dos 80 anos do Samuel Beckett. Fui procurado por um intelectual, o Rubens Rusche, que era um tarado tradutor de Beckett. Ele tinha vinte e poucas peças inéditas e traduzidas dele. Me encantei em saber que o Beckett não era montado no Brasil há décadas. Propus a ele um grande projeto para os 80 anos. E aí comecei a articular parceiros: o Luís Schneider, da editora Brasiliense, que ia lançar Malone Morre, com tradução do Paulo Leminski; o The British Council para trazer uma série de filmes inéditos que o Beckett tinha feito para a BBC. Montei um multievento sobre Beckett [os textos Eu Não (1972), Comédia  (1962), Cadeira de Balanço (1980) e Catástrofe (1982), além de vídeos e exposições], incluindo a peça com quatro textos inéditos, que variavam de cinco a 20 minutos. O  Rubens batizou esse conjunto de Katastrophé. O Beckett 80 Anos foi um assombro, ganhamos muitos prêmios. Virei diretor de teatro assim.

E seu foco passou a ser a produção de teatro contemporâneo?
Eu me apaixonei pelo teatro contemporâneo porque coincidentemente o teatro no Brasil estava em um momento muito ruim. A gente tinha um teatro com uma enorme vitalidade nos anos 60. A ditadura afogou aquele teatro. De um lado, tinha a perda decorrente desse processo de sanguessuga, de repressão, e, de outro, você tinha a energia que restava dentro de um teatro panfletário, um teatro que tinha perdido a perspectiva estética, histórica, psicanalítica, filosófica. Pela primeira vez, estava surgindo uma geração de pessoas voltando a pensar teatro, mas não um teatro para derrubar a ditadura militar. A Articultura foi a empresa que nasceu para esse
processo. Por essa série de coincidências ela deu suporte para lançar ou alavancar o lançamento de uma série de diretores. Nós criamos com Gerald Thomas a Companhia de Ópera Seca. Havia muita gente, o Antônio Nóbrega, o Gabriel Villela, a Beth Lopes, a Bia Lessa. E o que é que a gente trazia de novo? Uma vontade de fazer teatro com o maior suporte profissional, mesmo eu nunca tendo feito produção. Eu vinha de um universo corporativo e todos os aspectos não-artísticos eram absoluta novidade
para aquelas pessoas de teatro: gestor, orçamento, planejamento, a preocupação da comunicação, do marketing. E, do outro lado disso, eu estava na rua, buscando quem financiasse aquilo.

Sua visão empresarial precoce lhe fez um produtor profissional. Mas como é que você convencia eventuais patrocinadores? Como era aproximar cultura das empresas?
Estava na rua, batendo na porta das empresas. O que eu também nunca tinha feito na vida. O meu universo de relações empresariais era com as companhias de disco, as emissoras de rádio, depois com as instituições ligadas a direito autoral. E aí começou a acontecer uma coisa interessante. O cara falava: “Olha, esse tal de Gerald Thomas não me interessa, mas essa ideia de fazer coisas específicas para o meu público e de trabalhar os atributos da minha marca, por meio da cultura, achei muito legal. Por que você não faz uma coisa especialmente para mim?”. Eu comecei a receber briefings do Citibank, do Credicard, da Rastro, e me enveredei por aí.

Você fazia planejamento, captação e produção…
Estava com um pé em cada barco: comprometido até o pescoço com a produção cultural e a produção teatral. Cheguei, em um ano, a ter quatro, cinco produções em cartaz. Orlando, da Bia Lessa; O Cobrador, da Beth Lopes; Vem Buscar-me que Ainda Sou Teu, com o Gabriel Vilela e Regina Duarte; Brincante, do Antônio Nóbrega. Por outro lado, recebia esses briefings. Criei um projeto para o Citibank, chamado Citibank Business and Night Club, que era uma coisa que tinha que ser em inglês mesmo, era para os gestores financeiros das grandes empresas multinacionais, clientes pessoas jurídicas. Era um clube cultural e de conteúdos ligados a negócio, exclusivo para eles. Eu criava uma programação exclusiva para convidados do Citibank, que ninguém sabia que estava acontecendo. Por exemplo, a gente montava Dona Doida, da Fernanda Montenegro, que só ia passar em São Paulo daqui a um ano. A gente montava uma apresentação para público fechado do Citibank. Ou se o João Bosco iria partir para uma turnê nos Estados Unidos, eu contratava ele para fazer um tour só para esse público fechado do Citibank.

Tudo com dinheiro direto da empresa, sem isenção fiscal?
Sim, da empresa. E comecei a me dar conta que eu não poderia estar nos grandes palcos. Por mais que eu estabelecesse o princípio ético e não tivesse um viés do patrocinador, se eu quisesse me desenvolver como um designer de projetos artísticos e culturais sob medida para empresas, eu não poderia ter vínculo com produção cultural. Até hoje produzo coisas decorrentes das ações, das políticas, mas eu não me posiciono como produtor cultural desde o início dos anos 90. Comecei a fechar os ciclos com cada companhia para me dedicar  a um propósito. Alguns ciclos foram mais longos, como o de Eletra Com Creta, espetacular, maravilhoso, a primeira produção que eu fiz com o Gerald e onde foi fundada a Companhia de Ópera Seca, com Beth Goulart, Bete Coelho, Vera Holtz, Maria Alice Vergueiro. Na época, a gente foi para Viena, depois de uma temporada em Nova York. Ele se apresentou no Wiener Festwochen, principal festival de teatro da Áustria. Foi ali que ele criou a sua carteira de encenador internacional, começou a ser convidado para produzir óperas.

Foi também em meio a isso que surgiram as leis de incentivo. Fale um pouco do modelo da Lei Sarney, dos fundos municipais e da Lei Roaunet?
Fiquei entusiasmado com o surgimento da Lei Sarney [Lei 7.505/86, que regulamentava a dedução no imposto de renda de contribuições para a cultura]. Porque eu estou ali, vendo uma potencialidade de empresas se interessarem em pegar parte do dinheiro de comunicação que eles gastavam quase que integralmente em publicidade, para
se comunicar por meio das artes. O mundo cultural e o mundo empresarial eram completamente apartados. Eu tentava um pouco restabelecer um trânsito entre esses dois mundos. Nesse processo, chega o Estado e baixa uma lei estabelecendo que isso é lícito e “incentivável”. Ou seja: 30% do dinheiro que você colocasse, você poderia deduzir do imposto de renda. Achei aquilo extraordinário. Criei o primeiro manual da Lei Sarney, dois meses depois da promulgação da lei. Criei uma cartilha:
o que é a lei, o que ela beneficia, como se faz o cálculo de dedução, quais são as providências básicas legais para empresa tomar. Paguei por uma edição para o Meio e
Mensagem encartar o manual e peguei apoio do Grupo Ticket para distribuir entre a base de clientes. Aí eu já começava a criar um segundo degrau de minha trajetória: o
cara do marketing cultural. A história da Lei Sarney durou algum tempo, então veio o Collor e desligou a tomada. Foi um momento drástico para o país, para economia
brasileira. Perdi uma montanha de projetos. As empresas ficaram com dinheiro bloqueado no banco. Um momento muito difícil.

O que te segurou na área de cultura? Qual foi o projeto que ainda lhe permitiu ficar?
Nesse período, entre 1992 e 1993, eu fui procurado por uns meninos de Curitiba que tinham a ideia de fazer um festival de teatro com grandes produções, com um pouco do que havia em São Paulo e Rio, e levar para   Curitiba uma vez por ano. Eram empreendedores.

O Leandro Knopholz, por exemplo. Ele foi entrevistado aqui no projeto também.
Já? Bem, observei que havia uma grande oportunidade de criar uma vitrine para o teatro contemporâneo brasileiro, que tinha uma força, vivia um momento singular, histórico. Gerald Thomas tinha uma grande repercussão, Bia Lessa também, Zé Celso Martinez estava retomando o seu trabalho, mas ninguém percebe que isso tem uma força de conjunto. Levar isso para um campo neutro, fora do eixo Rio-São Paulo, e ainda garimpar quem possa representar esse novo teatro, é bom. Nascia o conceito do Festival de Teatro de Curitiba. A princípio, assumi a direção artística, depois a direção de marketing, de comunicação e a direção geral. Transformei o festival em um projeto mais profissional de marketing cultural, e conseguimos com isso fechar o interesse do Banco Bamerindus. Jaime Lerner deu um suporte enorme. O Roberto Requião, que era inimigo mortal dele, tinha acabado de proibir à Secretaria Estadual de Cultura de dar qualquer suporte ao festival, e, por isso, a gente ia fazer sem o Teatro Guaíra. Levamos a questão para o Jaime e ele falou: “Se vocês garantirem que montam o festival, eu monto o teatro”. Aí, eu falei: “Mas estamos em outubro, o
festival é em março”. E ele: “Dá tempo, porque é uma coisa só de estrutura metálica, a gente monta”. Pegou um guardanapo e desenhou a estrutura do Ópera de Arame. “Então vamos”, dissemos.

Qual a sua opinião sobre o modelo de incentivo, em particular a Lei Rouanet?
Quando o Collor produziu aquela catástrofe na economia, na sociedade e no meio cultural brasileiro, a infraestrutura pública de cultura já era anacrônica. A forma como ele fez isso foi a pior possível, desligando as coisas da tomada sem qualquer planejamento, sem qualquer estratégia e sem qualquer visão de qual é o papel do Estado.

De quem foi a ideia de desligar da tomada?
Não tenho nenhuma informação de bastidor. Do Ipojuca Pontes [secretário nacional de Cultura do governo Collor], talvez. Tinha ali um núcleo de pensamento que depois se convencionou chamar de neoliberal – e, vale dizer, estou longe de querer demonizar o neoliberalismo. A economia liberal tem uma série de vantagens, como existem outras que são imprescindíveis, de responsabilidade pública. Mas ali houve uma ação geral, petulante, arrogante, agressiva, incompetente, de mudar determinados padrões da economia. O choque foi feito dentro desses preceitos, desses paradigmas, a abertura às importações. E isso se estendeu para a cultura. Tudo partiu desse núcleo econômico.

Zélia Cardoso de Mello e Antônio Kandir.
Isso. O Ipojuca era instrumento disso. Houve o desmonte da parca e anacrônica estrutura cultural pública brasileira sem que nada fosse colocado no lugar. E o Estado tem um papel fundamental nisso. Um gestor cultural tem que trabalhar dentro de um preceito de diversidade de fontes. Não pode estabelecer uma perspectiva de viver de uma única fonte. Para isso, você precisa ter ações. Uma fonte é o público, que compra livros, discos. Você tem sempre que olhar para ele, seja para atraí-lo, envolvê-lo, ampliar o seu repertório, e fazer com que ele pague por isso na medida da sua possibilidade. Um gestor cultural tem que se capacitar a atrair público e fazer com que o público financie a sua atividade. A outra fonte é a empresa. Ela é mais nova nesse sentido. A empresa, com essa troca simbólica entre a arte e as estratégias de construção de marca, gera um outro capital, um capital enorme, cada vez maior. Mas o eixo histórico de desenvolvimento da relação das marcas com a arte, com a cultura, não tem nada a ver com lei de incentivo, com dedução fiscal. Esse eixo que falo é aquilo que faz com que as marcas invistam milhões, bilhões de reais em projetos ambientais, sociais, esportivos, de moda, de entretenimento, dentro da lógica empresarial. Significa que tem que ser usado dinheiro das empresas, dinheiro dos seus orçamentos institucionais
e mercadológicos. E também tem o papel do Estado. Porque o tempo da cultura é um tempo diferente do mercado. Lei de incentivo é, portanto, incentivar determinada atividade da economia

Como um dispositivo transitório. É isso? Qual é sua crítica ao modelo?
Aos poucos, fui me dando conta que a Lei Sarney era uma armadilha. O papel do Estado é operar como agente qualificado e financiador direto de tudo aquilo que é relevante culturalmente para a sociedade e que não está no tempo do mercado. Ou seja, processos experimentais, formação de público, preservação, acervo, distribuição regional, plataformas de internacionalização da cultura do país. Cabe ao Estado disciplinar, orientar, e, eventualmente, financiar diretamente. Então, você tem que ter as três fontes de financiamento: o público, a empresa e o Estado. O que a lei de incentivo acabou criando foi um embaralhamento, uma confusão entre o público e o privado. Onde isso  aconteceu de fato? Não foi com a Lei Sarney. Esse processo, que eu conside ro um processo nefasto, ocorreu com a Lei do Audiovisual. Porque a Lei do Audiovisual subverteu inteiramente o conceito de incentivo fiscal. Porque ela não é incentivo fiscal. Ela permite uma dedução integral. Até por uma ignorância, não do legislador, mas do Estado, na época em que promulgou a lei, permitiu uma dupla dedução que fez com que então ela passasse a ser lucrativa em si. Você sabe que uma empresa que põe R$ 100 ou R$ 1.000 em um filme deduz diretamente, dependendo da faixa de imposto em que ela está, R$ 1.250 ou R$ 1.333? Ela ganha dinheiro, cash, para decidir que filme vai ser produzido e que filme não vai nunca ser produzido no Brasil. Esse aspecto é um dos aspectos singelos que revela o absurdo desse mecanismo. Quando a Lei do Audiovisual surgiu, ela estava restrita a 1% do imposto a pagar. E teve um momento em que o bem articulado lobby do cinema brasileiro passou isso para 3%. Isso ganhou escala. A Lei Sarney tinha terminado ainda dentro do governo Collor. Depois surgiu uma nova legislação de incentivo à cultura, que
persiste até hoje, a Lei Rouanet. Então, o que a área audiovisual fez? Ao invés de corrigir, pressionou o governo para também ter a dedução integral na Lei Rouanet. Bom, aí dá nisso que todo mundo conhece. Estou bastante cansado de falar sobre isso. Hoje, nem os 30% eu daria. Qual deveria ser a função do Estado como política cultural? O que o Estado deveria ter feito desde então era restabelecer as formas conhecidas e consagradas de ação cultural do Estado, no modelo mexicano, no modelo francês, no modelo alemão. É operar como agente fomentador, como agente investidor. O Estado tem que estabelecer políticas públicas e usar essas políticas, que podem ser setoriais, por área, ou transversais, para realizar financiamentos. Essas leis de incentivos criaram uma massa de transferência de recursos que hoje passa de R$ 1 bilhão ao ano, por esse mecanismo indireto, torto, perdulário. Parte do dinheiro fica no caminho, em um sistema de intermediação que em si pode até ser legítimo e se                    justificar, mas não é necessário. Você pode estabelecer um regime de competência pública. Hoje, a competência para você obter esse dinheiro público não é uma competência pública. O mundo por detrás das cortinas da Lei Rouanet, todo mundo sabe como é. Não venho com essa ideia de melhoria, ajuste, aprimoramento. Para mim, não tem nada o que melhorar, tem que desmontar. É claro que não vai desmontar isso como o Collor fez. Você vai fazer um plano de um modelo para outro modelo, uma estratégia de transição. Mas esse modelo, para mim, não serve.

Hoje, você trabalha com o modelo empresarial de financiamento da cultura.
O final dessa minha trajetória profissional é que o método de pensar uma ação cultural por uma encomenda de um briefing empresarial evoluiu para um método que passou de uma ação para toda política cultural de marca. Comecei a aplicar essa metodologia a conteúdos, causas sociais, ambientais, esportivas, de entretenimento, de comportamento. É isso que eu faço hoje. Crio as plataformas, temáticas ou integradas, para empresas. A empresa é a mesma que começou produzindo o Beckett 80 Anos. Passei por vários portos nesses 14 anos. Abandonei o próprio nome da empresa Articultura, e, hoje, essa agência chama Significa. É uma consultoria e agência, trabalha para Natura, Votorantim, criou as políticas de patrocínio e de editais públicos da Petrobras, que até hoje existem.

Como foi trabalhar com a Petrobras? Tinha aquela história de que milhões eram investidos em cultura e a visibilidade era pouca…
Era e ainda é o maior investidor, alavancado pelas leis de incentivo também. A estatal tem um imposto descomunal e tem uma dedução fiscal descomunal. A Petrobras, na época, já investia em torno de R$ 200 milhões em seus patrocínios, de uma maneira geral. A Petrobras nos chamou para revisar as políticas de patrocínio. Agora, por exemplo, estamos criando as plataformas para integrar a ação cultural, social, ambiental e esportiva da fusão dos bancos Itaú e Unibanco. Como é que faz isso? Da visão integrada sobre as coisas que a empresa faz com dinheiros diferentes e com orçamentos diferentes. Porque quem olha de fora vê a mesma coisa: vê a marca no esporte, vê a marca na cultura, vê a marca nas artes. Não quer saber se chamam de investimento social ou patrocínio. Se é ou não Lei Rouanet. Quem olha de fora vê a marca
ligada a uma causa, a um conteúdo. Quem está de dentro tem que pensar isso de uma maneira integrada. Essa é a proposta de valor que a gente leva para o mercado. E nós fizemos isso, em 1999, para a Petrobras, quando houve a quebra do monopólio e ela se obrigou a um processo de modernização – que a salvou. Fez com que ela hoje fosse a empresa que é. O que era a Petrobras? Era um balcão de decisões caso a caso. Imagina o que prevalecia nesse balcão. Era uma empresa superpermeada e pressionada por pedidos e solicitações políticas. Isso existe, inclusive, em empresas privadas, não é privilégio de estatais. Um atributo muito ligado a Petrobras era o de uma caixa-preta, porque não se sabia o que acontecia lá dentro. A política de patrocínio tem que expressar transparência, o inverso disso. E foi aí que nós levamos a ideia do edital público, de fazer com que todas as políticas formais fossem de acesso público, que você não dependesse de um canal, de um contato de um deputado, de um
senador, para ter acesso aos recursos da Petrobras. Que fosse uma regra única   para todo mundo, com data, critérios, instâncias técnicas de avaliação. Houve essa organização geral. Quando esse programa foi implementado, chegou a canalizar quase 65% dos recursos de patrocínio. Estabelecemos alguns princípios, como o de a Petrobras não poder se ater a uma única área, e ter que operar em 360 graus, em todas as áreas culturais. Mas ela tem que ter uma política e uma visão, um olhar técnico, crítico, para cada área. Ela tem que fazer política, como se fosse uma política pública. O que as pesquisas mostravam na época, em 1999, quando esse trabalho foi iniciado, é que ninguém sabia o que a Petrobras fazia em cultura, porque, quando fazia, ficava brigando com os seus patrocinados para que eles a citassem. Mas quando você lança o programa, o edital, você passa a ter um reconhecimento. E isso a Petrobras acabou construindo com muita força.

Como será o futuro da cultura nos países em desenvolvimento, o BRIC [Brasil, Rússia, Índia e China]?
A minha reflexão sobre o BRIC está muito ligada ao meu trabalho de atitude de marca. Hoje, há empresas internacionais da área da comunicação muito interessadas no Brasil em função desse momento que o país e outras economias emergentes, como China, Índia, Rússia, se posicionam. Nesse momento, estou envolvido com a possibilidade de internacionalizar essas metodologias de atitude de marca. Nunca fiz uma reflexão específica relacionada à cultura, te confesso. A minha experiência
cultural mais específica – menos nacional e mais regional – se deu por ter feito parte dos fundadores da Rede Latino-americana de Produtores Culturais. Foi uma das experiências mais gratificantes que eu tive. Recebi um convite do articulador e ele conseguiu recursos da Fundação Rockefeller para investir na formação da rede. Cinco pessoas foram convidadas, entre elas, eu. Tive uma experiência extraordinária, de perceber o nosso isolamento, como São Paulo fica buscando referência em Nova
Iorque, Paris, Tóquio, Londres. E aqui, do nosso lado, a gente tem uma possibilidade grande de se espelhar, de transitar, que é fabulosa. Assim, virei um aficionado pela cultura latino-americana, um defensor do intercâmbio cultural latino-americano. Esse é um aspecto bem legal de ser produtor cultural, você pode levar produções para fora do país. Quando essa inter-relação se dá por meio da música, da poesia, do teatro, é uma coisa extraordinária. Você descobrir que existe uma companhia que nas-
ceu em uma cidade de mineração, em um sítio na Bolívia, no padrão das melhores companhias de teatro do mundo… quem é que sabe disso? O conceito de Bric é um eixo estritamente histórico e econômico. Foi criado pelo mundo desenvolvido, com um olhar para os emergentes, então é uma invenção. Existe um trânsito político, econômico, que está começando a se estabelecer. Se ele vai virar também um trânsito cultural, eu não sei. A América Latina é um bom exemplo disso. Somos culturalmente decorrentes do mesmo processo colonialista e eu acho que a nossa potencialidade de ser nacional e trocar é enorme.

Entrevista realizada por Aloisio Milani e Fabio Maleronka Ferron no dia 13 de maio de 2010, em São Paulo

Para assistir esta entrevista em vídeo:
https://producaocultural.procomum.org/videos/yacoff-sarkovas-2/

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