Entrevista completa com Sérgio Vaz, para o Produção Cultural no Brasil

Para Sérgio Vaz, levar literatura para a periferia das grandes cidades é uma nova etapa do movimento antropofágico, criado pelo poeta modernista Oswald de Andrade. Gosta da expressão “antropofagia periférica” para falar de literatura marginal, e classifica-se como um “vira-lata da literatura”. Nascido em Minas Gerais, em 1964, Vaz mora em São Paulo há mais de duas décadas.

Como “sonhador” e “maluco mesmo”, organiza há dez anos o Sarau da Cooperativa Cultural da Periferia, a Cooperifa, e reúne cerca de 300 pessoas toda quarta-feira em um bar na zona sul de São Paulo. “O Sarau da Cooperifa está ‘refundando’ a troca de ideias. Ele funciona como um movimento, virou um movimento dos ‘sem-palco’”, explica. “Antigamente, a gente se mudava da periferia. Agora, a gente quer mudar a periferia.”

Seu trabalho estimulou a criação de outros vários saraus de poesia na capital paulista e no Brasil. Já publicou, de maneira independente, os livros Subindo a Ladeira Mora a Noite (1988), A Margem do Vento (1992), A Poesia dos Deuses Inferiores (1995), Pensamentos Vadios (1995), Colecionador de Pedras (2004) e Cooperifa: Antropofagia Periférica (2008). Vaz é avesso a institucionalizar o Sarau da Cooperifa. Teme que o projeto fuja do essencial, que “é cooperar um com o outro”.

Quando precisa apresentar o que você faz com a literatura na periferia, o que você diz? O que é a Cooperifa?
Bom, estou falando da periferia de São Paulo, extremo sul, onde não tem biblioteca, cinema, teatro ou museu. O único espaço público que o Estado deu foi o bar (risos). O Sarau da Cooperifa transformou o bar em centro cultural. Há dez anos a gente ouve e fala poesia na comunidade para uma média de 300 pessoas, todas as quartas-feiras. Era um lugar onde as pessoas tinham que mentir, dizer que não moravam lá para poder arrumar emprego. A literatura elevou a autoestima da comunidade. E isso não foi nenhuma ONG, não foi o Estado, não foi nenhum tipo de governo, não foi nenhum tipo de político que fez. Foi um movimento que surgiu do povo. O Sarau acontece no final da ladeira de Piraporinha, no Bar do Zé. As pessoas vão chegando de todos os lugares, de todas as cores, de todas as dores. A professora Lu atende todos, recebe o nome de quem vai falar. Às 21 horas começa o Sarau e a gente chama os poetas. Há noites com 30, 40, já tivemos noites com 60 poetas. Temos um acordo com a comunidade: começamos às 21 horas e precisamos terminar às 23 horas. Tentamos evitar textos longos, porque queremos associar a literatura a uma coisa bacana e não a uma coisa enfadonha, chata. A pessoa já traz isso consigo, de que literatura é uma arte estranha, é uma arte elitizada. A gente faz com alegria, com entusiasmo, para  que a pessoa seja pega mesmo pela literatura. E aí são textos curtos, de, no máximo, duas páginas.

E o que acontece quando o sarau termina?
Aí já viu, não é? Cerveja e torresminho do Zé Batidão (risos).

Isso é quase tão importante quanto o evento. Se institucionaliza o evento, o ambiente fica asséptico, perde-se muito.
O bar para mim é meio que um reduto. A gente fica lá filosofando as agruras do mundo e, no outro dia, volta de novo para falar do mesmo problema. Na Cooperifa, a gente está “refundando” a amizade, que é outra coisa que anda esquecida. Quando você vai a um restaurante é cada turma em uma mesa, mas lá as pessoas ficam todas juntas mesmo. Quando acaba, começam as ideias, as pessoas querem conversar, querem saber o que está acontecendo com as outras. Quem gosta de cinema, fala de cinema, quem gosta de poesia, fala de poesia, depois mistura tudo. A Cooperifa está “refundando” essa troca de ideias. Funciona como um movimento, virou um movimento dos “sem-palco”. As pessoas curtem ir lá porque há novidade no teatro, no Cinema na Laje, um novo livro para ser lançado.

O que é o Cinema na Laje?
A Cooperifa é um movimento cultural que, entre outras ações, como o sarau, faz o Cinema na Laje, às segundas-feiras. É quando a gente usa a laje do bar do Zé Batidão para exibir documentários e filmes que estão fora do circuito, para que a comunidade tenha outro olhar sobre o cinema. A gente não reproduz filmes de Hollywood. Passamos os filmes da garotada da quebrada, alguns documentários em que as pessoas possam se reconhecer. E é um dia muito bacana também, porque é louco você conhecer pessoas com cinquenta e poucos anos que nunca tinham ido ao cinema. Se eu fosse do governo teria vergonha disso. As pessoas ficam maravilhadas de ver uma tela, mesmo que seja menor do que a do cinema. Uma coisa meio Cinema Paradiso mesmo. As pessoas saem de lá falando: “Puxa vida! Eu nunca tinha ido ao cinema, cara!”. E aí vale a existência, vale o trabalho. Quando uma pessoa fica feliz, a gente percebe que é por isso que estamos lá, é por isso que estamos fazendo aquilo.

O escritor Rodrigo Garcia Lopes tem um verso que diz: “Será a poesia a arte da escuta?”. Como é o seu trabalho de formação do público?
A literatura é um dos códigos da arte mais difíceis para nós que somos da periferia. Conseguimos chegar na literatura por meio da palavra falada, da oralidade. A comunidade faz a gentileza de ouvir e o poeta faz a gentileza de falar. Assim, as pessoas pegam no livro e ele não mais queima em suas mãos.  Primeiro tivemos que quebrar esse preconceito que o livro tem com o leitor e que o leitor tem com o livro. Aproximamos os dois, leitor e livro, usando a palavra, para que ele pudesse ouvir aquilo que está escrito e se adaptar.

Quando começaram os saraus, os textos lidos eram de outras pessoas ou eram os próprios autores que iam lá?
Começou como uma reunião de amigos. Enquanto a gente bebia, alguém falava uma poesia. Era a Quinta Maldita. Percebemos que era um barato legal. Fazíamos poesia e não tínhamos para quem vender os livros, para quem falar. Eu, que nasci ali, até 1988 não sabia nem o que era lançamento de livro. No meu primeiro livro, teve frango frito e salada de maionese, só para você ter uma ideia de como era a literatura da periferia dos anos 70 e 80. Quando o Sarau começou, eram autorias próprias, porque eram poetas que queriam mostrar o seu trabalho. As pessoas queriam desabafar, falar o que sentiam, então passaram a tirar o poema da gaveta. Melhoraram o poema e o poema melhorou a pessoa. Mas, no princípio, os temas eram sobre a exclusão social, o racismo, o preconceito, contra tudo o que afeta o povo da periferia.

Como o crescimento do Sarau da Cooperifa alterou os textos e os temas?
A grande riqueza do Sarau da Cooperifa é a diversidade. Há poetas que recitam cordéis, poemas de amor, poemas falando sobre galáxias, como há também os poetas engajados, panfletários. Percebemos o crescimento de vários autores da comunidade. Apesar de que a Cooperifa não produz novos escritores, ela faz novos leitores. Acidentalmente, surgem novos poetas de grosso calibre por lá.

E as publicações, os zines e a circulação da produção poética de vocês?
Uma das coisas mais bacanas que a gente fez ao longo desses dez anos foi nunca ter se preocupado em criar novos escritores, novos poetas. A gente tinha a ideia de criar novos leitores mesmo, fazer a rapaziada ler, se interessar pela leitura. É lógico que todo mundo que treina quer jogar, não é? Não teve jeito. A demanda veio. Fizemos uma antologia chamada Rastilho de pólvora, com 52 autores da comunidade. Depois começamos a arrumar parceiros para fazer os livros daqueles que já produziam mais. Já publicamos mais de 20 livros. O mais louco é que, para muita gente, o primeiro livro que leu foi o que escreveu. É com esse tipo de magia que a gente trabalha. Fazer essas coisas sem procurar novos Jorge Amado, Paulo Coelho ou Jack Kerouac. A nossa ideia é trabalhar a literatura. E já era.

Existem textos que viraram grandes sucessos?
Há poetas no Sarau da Cooperifa que vendem 120 livros quando fazem seus lançamentos. É pouco, mas se você imagina uma pessoa da comunidade trabalhando com livros é um sucesso. Hoje, por conta do Sarau da Cooperifa, existem mais de 60 saraus acontecendo em São Paulo. Há um roteiro, todo um circuito a seguir: segunda-feira tem o Sarau do Binho, que é no Campo Limpo; na terça-feira, tem o Sarau do Serginho, no Jardim São Luiz; na quarta-feira, o Sarau da Cooperifa; na quinta, o Sarau da Vila Fundão, no Capão Redondo; na sexta, o Panelafro; e no sábado o Sarau Círculo Palmarinos, o Sarau da Brasa, e também o Sarau da Ademar. Entre tantos outros que acontecem.

Cooperifa vem de cooperativa, do sentido de cooperar com o outro, certo? Não é uma associação formal. Como vocês sustentam isso?
É cooperar um com o outro mesmo. Mas não se sustenta, mano (risos). Não temos parceiros fixos. Só temos parceiros em eventos pontuais. Por exemplo, fazemos a Chuva de Livros, em agosto, que é quando a gente distribui livros para a comunidade. São 500 livros, romances. A gente vai às editoras, pede e distribui para os convidados. Temos o Poesia no Ar, que é em abril, quando a gente solta as bexigas com as poesias, que é uma das coisas mais bonitas da história de São Paulo. Foi uma ideia maluca que tive em uma insônia. Quando o Sarau da Cooperifa termina, todas as poesias lidas e as poesias da comunidade são soltas em bexigas para que outras pessoas possam receber um pedaço do sarau. Esse ano foram 500 pessoas, 500 bexigas. Todo mundo vai para a rua, cada um escreve uma mensagem e às 11 horas da noite em ponto solta.

E têm respostas das pessoas que acham os balões?
Têm, cara. A gente manda o endereço, e-mail, tudo. Tem muita resposta.

O meio eletrônico, nessa história, funciona como divulgação da Cooperifa?
A tecnologia ajudou muito, porque continuamos no mesmo lugar, mas viajamos para outros com ela. Você não precisa da Folha de S.Paulo, do Estado de S.Paulo, da Veja ou da Rede Globo para divulgar o seu sarau. Ótimo se aparecer, mas não dependemos disso, pois criamos uma rede. A mala direta do Cooperifa tem mais de 10 mil nomes. São pessoas que passam por lá, jornalistas, pessoas amigas. E têm os blogs: o meu, o do outro sarau e por aí vai. O que  acontece na Cooperifa na quarta é mencionado em todos os blogs relacio nados. Atingimos nosso público. A ideia não é quanto mais, melhor. Todos são bem-vindos, mas é feito para aquilo ali, para a gente ficar ali trocando ideia. Não temos o objetivo de dominar o mundo. É um bagulho por amor à quebrada. Não é nem raiva ao centro. É que a gente ama aquele lugar. Em vez de mudar dali, a gente resolveu melhorar. Antigamente, a gente se mudava da periferia, agora a gente quer mudar a periferia. Não é um protesto nem nada. Tem muita raiva, porque a raiva é fundamental, mas é um bagulho feito de amor. É difícil explicar, nem eu sei.

O pessoal do hip hop frequenta o Sarau?
Lógico. A gente tem uma puta sintonia com a rapaziada do rap. Porque eu acho que nós, da periferia, da favela, devemos muito ao hip hop. Essa música é de grande importância, assim como a tropicália foi muito importante, a bossa nova, o cinema novo, a Primavera de Praga, a Revolução dos Cravos. Nós estamos vivendo tudo isso junto agora. E essa rapaziada é a que a gente vê todo dia também. É como ir ao Leblon e encontrar artista de novela. Na periferia, a gente encontra a rapaziada que batalha por ela. É um relacionamento muito bom, nossa literatura é revigorada pelo rap. A molecada lê o que a gente escreve. Quando comecei, eu escrevia um tipo de literatura social. Era descaradamente panfletário. Só que eu era exótico, porque ninguém queria mais isso. Quando a ditadura acabou, todo mundo queria ir para a “bozolândia”. Quer dizer, a miséria continuou, a fome continuou, os pretos continuaram sofrendo racismo, mas todo mundo foi pular o carnaval. Como o Chico Buarque falou: “Tô me guardando para quando o carnaval chegar” [música Quando o Carnaval Chegar, 1972]. O carnaval chegou, só que apenas para alguns. E, logo em seguida, vieram os Racionais MC’s falando: “Não confio na polícia, raça do caralho” [música O Homem na Estrada, 1993]. Porra, a gente não podia nem ouvir uma sirene que corria. Então pensamos: “Mano, é por aí que a gente vai”.

Como é a procura de autores de outros cantos do Brasil pela Cooperifa?
Quem gosta um pouco de literatura e possui um olhar mais amplo, sem um olhar exótico, chega a São Paulo e quer conhecer. Eu também ia querer conhecer um lugar onde 300 pessoas ficam em silêncio para ouvir e falar poesia. Por lá já passaram poetas e escritores consagrados como Chacal, Marcelino Freire, Xico Sá, Ademir Assunção, entre tantos outros. Acho legal essa circulação, curto essa troca. As pessoas dizem que existe uma divisão e a gente acaba aceitando. Mas eu gosto de desmistificar isso. Cooperifa é tipo a nossa Casablanca, falta só o Humphrey Bogart. Acho que é um lugar que ninguém pode ser preso, é uma embaixada. Às vezes, vão uns caras lá que querem mudar o bagulho. Outro dia foi uma jornalista, ela se emocionou, aí me chamou e falou: “Vou ajudar você a melhorar isso aqui”. Aí eu falei: “Você quer ajudar? Então não vem mais!”.

E a questão do patrocínio?
A gente não curte. Quer dizer, não é que a gente não goste, é que eu, por exemplo, estou à frente e sou um cara contraditório e bruto, entende? Tenho medo de virar um leão de zoológico, aquele cara que tem hora para comer, hora para jantar e, quando alguém cutuca, faz um barulho que é para a criançada se divertir. Quero ser o leão da selva, cara, aquele que vai à caça todo dia. O conforto é muito perigoso. Gosto de acordar e não saber se vou almoçar. E a gente trabalha nessa perspectiva, o que dá uma independência também. Tem o lado bom: a gente pode falar mal de quem quiser. A Cooperifa não é minha, não é de ninguém, é da comunidade. A impressão que eu tenho é que se virar um Ponto de Cultura – o que eu não sou contra – vai precisar do gerente, do subgerente, do diretor comercial em um bagulho que é livre. Não sei, tenho medo disso. Eu também gosto de coisas boas, mas tenho medo dessa coisa de conforto, de segurança, de ficar preguiçoso. Tenho tendência à preguiça, então tenho medo.

Mas você se sente uma liderança da periferia?
Não gosto desse rótulo, parece coisa de abnegado, não é? É lógico que sou porta-voz desse negócio que ajudei a criar, não posso negar, também não vou pagar de falsa humildade. Mas não curto esse negócio de: “Agora que eu cheguei à Meca, vou falar com Maomé”. E, às vezes, os caras chegam lá com projetos na mão. Eu não quero que ninguém me siga, eu não sei para onde eu vou, você entendeu? Às vezes, o cara chega com livros, querendo editar, aí você tem que explicar para o cara que o negócio é quarta-feira das nove às onze, que cada um fala o que quer, depois cada um vai embora para a sua casa e pensa o que quer também, vota em quem quiser, acredita no que quiser. Não existe um padrão de pensamento. O grande barato da Cooperifa é esse, o cara se liberta sozinho. Tem lá o evangélico, o cara que é do candomblé, tem católico, tem ateu, tem de tudo. Aí tem o cara que gosta de João Antônio, de Drummond, o que está lendo Alice Ruiz ou Patativa do Assaré. É essa diversidade. Enfim, acho que é isso aí, cada um tem que cuidar da sua vida, sabe?

Você é mais poeta ou mais produtor cultural?
É uma mistura. Tem hora que essa militância poética e periférica engole minha poesia. Às vezes, fico chateado porque o cara compra o meu livro porque eu sou ativista e não lê. É como se fosse um suvenir. Dificilmente encontro alguém que fale do meu trabalho como poeta. É mais a molecada das oficinas que faço na Febem e nas escolas. Mas não tem como manter o sarau em pé sem um mínimo de organização. Tem que trabalhar. Há dias com um puta frio e com a presença de 300 pessoas. São 300 cabeças, é energia, 60 caras querendo falar. Aí vem o cara de fora, o político que quer falar, você precisa dizer que ali não é lugar, ele precisa falar no parlamento. Tudo isso. Tem o poeta que mora não sei onde e quer falar mais cedo porque tem que ir embora. Ele só quer falar, não quer ouvir. Preciso explicar que aquilo é uma cooperação, um coopera com o outro, se ele não ouvir o cara de lá, não interessa. A Cooperifa assumiu uma postura meio intratável. As pessoas não gostam muito da gente. É quente mesmo, somos meio inóspitos. A gente ri muito que é para poder comprar fiado, mas na hora do vamos ver, a gente fica meio intratável. Não recebemos nada de ninguém também. Tem muita gente que recebe apoio, mas quando a gente põe Cooperifa, nego corre.

Sobre a formação de leitores, você procura por outros autores? Há descobertas?
A gente montou uma biblioteca dentro do bar. É difícil um cara pegar um livro, começar a ler e não curtir. Só o Estado mesmo que é idiota para acreditar que o jovem não gosta de ler. Faço trabalho na Febem e agora tem sarau acontecendo lá. Mas quando eu cheguei, ninguém gostava de poesia. As pessoas gostam de ler, sim, é que às vezes o cara recebe Nietzsche como primeiro livro. Se o cara chega e me pergunta o que ler, eu falo: “Ah, lê o que você quiser. O que você gosta?”. E o cara diz: “Ah, eu leio Paulo Coelho, mas o cara falou que não é bom”. E respondo: “Pô, ele falou que não é bom, mas leia, é uma literatura simples”. As pessoas intelectualizam muito. Me parece que algumas pessoas veem o povo como algo abstrato, que não existe. São pessoas, caramba!

Nos anos 90, o secretário do Livro e Leitura do Ministério da Cultura, Ottaviano de Fiore, foi bastante criticado porque comprou Paulo Coelho para as bibliotecas. E ele falou: “Pô, mas eu aprendi a ler com Sherlock Holmes. É a mesma coisa”.
É como Agatha Christie. Fica essa coisa da alta literatura, não é? Como se existisse uma primeira divisão. Então, que divisão que eu estou? Não estou em nenhuma! A alta literatura é para quem está no alto escalão da academia, da informação. Se você pegar uma pessoa que nunca leu e der Desonra, do Coetzee, o que ele vai fazer? Na escola, cresci lendo Érico Veríssimo, Olhai os lírios do campo. Quem é que gosta de ler aquilo com 15 anos, cara? Olha, na verdade, eu queria ser jogador de futebol, como todo garoto de periferia. E ainda quero, porque sonho é sonho. Sempre fui um garoto muito triste, meus pais se separaram muito cedo, em uma época em que ninguém se separava. Demorei para gostar de viver. Achava muito enfadonho viver, não conseguia. Legal é que eu só fui perceber que sofria hoje. Na época eu não sabia, porque criança até tirava uma “chinfra”. E a literatura entrou na minha vida como se fosse para me resgatar disso. Mudou totalmente meu modo de ver, meu modo de pensar.

O que você lia?
Comecei a ler os livros dos meus pais. Isso é muito interessante, meu pai era um leitor contumaz. Era uma família muito simples, mas não faltavam livros. Lembro que o primeiro livro que tentei ler foi Eram os deuses astronautas?, do Erich von Däniken. Meu pai era rosacruz, gostava de misticismo. Eu tentei, mas não entendi porra nenhuma. Depois li Gabriel García Márquez, Cem anos de solidão, e já comecei a me interessar pela história. Meu pai teve a sensibilidade de comprar Aladim, Branca de Neve, A ilha perdida. Fui pegando gosto mesmo. Comecei a gostar de música, curtia os bailes black, conhecia música brasileira. Conheci o Chico Buarque, Gonzaguinha, Taiguara. Pensei que era isso que queria fazer. Li um texto do Ferreira Gullar que era assim: “E só é justo cantar se o nosso canto arrasta consigo as pessoas e as coisas que não têm voz”. Isso mudou minha vida, me acordou. Comecei a ler Pablo Neruda e Ferreira Gullar. Por um tempo, li os beats, cheguei a ler Baudelaire, mas não curti. Ouvia falar de Rimbaud e quis ler. E foi assim, fui curtindo literatura. Sempre gostei dos autores latinos, porque tenho essa coisa do trágico, da emoção. Gosto dessa coisa superlativa.

Já teve vaia no Cooperifa?
Não, pior que não. No começo, a gente ficava preocupado, porque às vezes um aplaudia mais o outro. Uma vez um senhor falou para mim que era a primeira vez que ele tinha sido aplaudido na vida. É foda, cara! Isso é do caralho! Mas a gente se recusa a exercitar a vaidade. Se bater palma para um, tem que bater para todo mundo, para não criar rivalidade. Porque não nos interessa, não é academia, a gente não ganha prêmio no final. É para comungar a palavra, comungar a amizade com respeito.

Mas não é importante uma reação do público?
Sim, mas a proposta não é não gostar. É que é solidário, o cara acha legal o vizinho dele fazer poesia, sabe? Não queremos criar uma concorrência. Às vezes, o cara leva a família dele, que dá um apoio e ele já se entusiasma mais. É esse barato que a gente queria, que a gente gosta, não a concorrência. Pô, o cara falar em público é foda. O cara escrever um texto já é foda. Falar é mais ainda. E não tem palco. Ali é olho no olho, então pode assustar. E aquilo não é feito para assustar.

Mas nunca houve um discurso que fosse discordante?
A gente cortou o discurso. Porque às vezes o cara ficava 15 minutos falando para ler um texto de dois minutos. E aí só ele falava. Então a gente cortou. O cara vem, fala a poesia, entra outro e tudo certo.

E se o cara não quiser sair? Isso já deve ter acontecido várias vezes.
Sai, na moral. Uma vez uma menina começou a ler um livro, aí começaram a interromper e ela falou que não tinha terminado. Aí falaram: “Ah, terminou, sim, terminou, sim”. Quer dizer, a pessoa que vai a primeira vez não sente o clima, então é assim. Porque há pessoas deselegantes em todo lugar. A deselegância é democrática. O cara chega em um lugar e não percebe que é assim, que todo mundo tem que falar e ser ouvido. E, às vezes, tem o cara também que vem, fala, e vai embora. Aí você busca o cara e fala: “Espera aí, bicho! Não estamos aqui presentes para a sua vaidade. Você tem que ouvir os outros também, mano”. E na próxima quarta-feira ele é o último. Lá dentro, por exemplo, é silêncio. Se o cara fala, a gente chama atenção. Tem que respeitar. É só na quarta-feira por duas horas.

E as pessoas lá dentro? Como é o ambiente, a construção do ambiente? Tem uma série de regras silenciosas, de jeitos de fazer, de modos de fazer, que transformam o Sarau em uma experiência única. A construção desse ambiente foi coletiva?
Nasci ali e aquele bar era do meu pai. Passei 12 anos ali. Sempre fui um cara popular, sempre fui um cara de respeito. É diferente também você fazer uma coisa onde a comunidade o respeita, a rapaziada o respeita. Nunca tive problema. Quer dizer, no começo teve um problema, porque havia um estranhamento daquilo. Lembro até uma vez que o cara quebrou o copo, mandou eu calar a boca e tal. Sabe aquelas ideias? Mas é um ambiente extremamente amistoso, que foi construído também. Não tem briga, não tem discussão. É da hora. A gente precisa aprender um monte de coisa, a gente acha que sabe tudo, não ouve ninguém, não vê nada. Está tudo pronto na televisão, está tudo pronto. A gente precisa parar para ouvir o outro, olhar o outro, tocar o outro, abraçar, trocar uma ideia.

E por que quarta-feira?
Porque quarta-feira é o dia que a gente acha que o prego não sai de casa. Não colocamos nem sexta, nem sábado porque é o dia da balada. Caboclo sai mesmo para cantar Martinho da Vila, cantar sertanejo. A gente nunca ia concorrer com isso. E é o dia do violão, ninguém pode concorrer com a música, que a música é soberana. A quarta-feira é o dia mesmo só para nós, os loucos.

Mas é dia de futebol?
Na época, há 10 anos, não era tanto, não tinha essa coisa de televisão assim. Mas a gente venceu isso também. Quem gosta da poesia, vai no dia. Lógico que você sempre perde um aqui, outro ali. Eu também gosto de futebol, sou louco, mas tem que praticar o que a gente fala. É isso.

Como realizar sem dinheiro? O sentimento está antes da viabilização?
É muito sentimento mesmo, é uma coisa meio quixotesca. Lógico que eu acredito na grana, mas é difícil pensar que vou buscar o recurso e depois vou ver o que fazer. Eu sou um cara emocional, não tenho razão. Às vezes, não acho bonito ser eu, pensar assim. Mas primeiro eu quero fazer as coisas. Não adianta ficar pensando que não tenho dinheiro. O cara não escreve o livro porque não tem dinheiro, não faz música porque não tem dinheiro. Quer dizer que sem dinheiro não existe arte? E outra coisa também, é muito difícil esse negócio de verba, de financiamento, são sempre os mesmos caras, sabe?

Quando vai nascer o Cooperifa Futebol Clube?
Vamos fazer. Estamos alugando uma quadra. Gosto do futebol, acho louco a bola vir, o cara matar no peito, olhar para um lado, jogar para o outro. Sou fascinado por essa magia, para mim é poesia pura. Quando você vê o Zico meter aquela bola de falta, o Sócrates desengonçado (risos). Só não gosto do Dunga. Por amar futebol, não gosto do Dunga. Ele não estaria na minha seleção, ele é um burocrata.

Há muitos Dungas na área da cultura?
Muitos mesmo! Depois que surgiram esses editais, estão aparecendo mais ainda. Porque o cara aprende a escrever o mecanismo, mas nunca mexeu com cultura. Às vezes, é um advogado que tem a facilidade ou um  político que é amigo de não sei quem. É engraçado encontrar alguém que não goste de fazer aquilo que faz.

Como é ser um produtor cultural?
Não sei, cara. Produtor cultural fica muito chique para mim, eu faço menos  que isso. Porque, por exemplo, eu nunca escrevi projeto para um edital. Eu sou um maluco mesmo, um sonhador. Eu curto “produtor cultural”, mas acho que sou indigno. Ser produtor é muito maior do que o que eu faço. Parece alguém especialista em alguma coisa e eu não sou. Sou meio Zé Mané assim, faço dando cabeçada para tudo quanto é lado.

Entrevistadores: Fabio Maleronka Ferron e Sergio Cohn, em
27 de maio de 2010. São Paulo.
Para assistir essa entrevista em vídeo:
https://producaocultural.procomum.org/2010/08/17/sergio-vaz/

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