Adhemar Oliveira gostava de exibir filmes no colégio. Logo, virou cineclubista. Início nada surpreendente para aquele que é hoje um dos mais bem-sucedidos empresários do ramo de exibição, sócio-diretor das redes Espaço Unibanco/Unibanco Arteplex. “Um programador é aquele que conhece, que viu, que experimentou”, diz. “Desenvolvi um senso bom de programação, juntando à sociologia que fiz e também a um feeling sobre o gosto das pessoas.”
São muitas as encruzilhadas que, segundo Adhemar, precisam ser resolvidas no circuito exibidor. O próprio esmagamento dos cinemas de rua, ele crê, acompanhou um refluxo dos cineclubes. “O cineclubismo dos anos 70 era uma arma política, mais do que uma arma cultural.” Para ele, o fim da ditadura acabou com os filmes proibidos, o que fez minguar a figura do cinéfilo cineclubista. Mas Adhemar aposta na retomada dos cinemas de rua. “Porque advém da insegurança, o maior inimigo do cinema. Só que a existência do cinema devolve a segurança.”
Adhemar aponta várias causas para o achatamento do circuito exibidor – de 5 mil salas, nos anos 70, para cerca de 2 mil, atualmente. Uma delas é o DVD, que de certa forma acabou com as reprises no cinema. Outra é a ideia de que cinema tem que existir necessariamente em shoppings. Mas, como perspectiva, ele aposta que a superação da película pelo digital tende a fazer com que o cinema consiga se expandir mais. “Aquele custo de fazer cópia, de transportar para Maranhão, Manaus, vai desaparecer.”
Como começou a sua relação com o cinema?
Exatamente pela exibição. Fiz o colegial em Ourinhos, na divisa de São Paulo com o Paraná. E lá, eu batalhava para alugar filmes e passar na quadra de esportes do colégio. Quando vim para São Paulo e entrei nas ciências sociais da USP, tinha um cineclube chamado Cineclube Barracos. Comecei a participar ali. Prestei um concurso e entrei no Banco Central do Brasil, no prédio da Avenida Paulista. Montei um cineclube lá dentro, passando filmes de 16 milímetros. Quando terminei a faculdade, queria ir embora do país e pedi demissão. Estava com 24 anos, cabeça feita, sonhando em fazer pós-graduação no México. Um amigo me convidou para dirigir o Cineclube Bixiga, que ele havia montado há seis meses. Era um negócio que estava dando certo, mas as contas estavam todas bagunçadas. Peguei o Cineclube Bixiga em 1981, se não me engano, e o dirigi durante um ano. Era o primeiro no Brasil com uma postura independente, não era vinculado a escola, a igreja ou ao sindicato. Existia na rua. Era um cinema, mas no formato de cineclube. Aprendi ali a projetar, programar em 35 milímetros. Depois de um ano, dei as chaves, saí de São Paulo e fui para o Rio de Janeiro. Fiquei escrevendo textos, ganhei dois prêmios em textos para teatro, tinha um envolvimento com o teatro, mas sempre olhando os navios para ir embora do país. Aí foi ficando menor a ideia de ir embora, porque me envolvi na Federação de Cineclubes, com o Cineclube Macunaíma, da Associação Brasileira de Imprensa (ABI). Programei ali durante dois anos e meio, virei meio band leader da turma. E parti para criar um cineclube maior que o Bixiga, que foi o Cineclube Estação Botafogo.
Nesse histórico de USP, Bixiga e depois Rio de Janeiro, como é que você desenvolveu a programação em cinema?
Sempre gostei muito de ver filmes, de tudo quanto é tipo. Na época não existia o CineSesc, o cinema do Sesc era no Teatro Anchieta, onde passavam filmes peruanos e outras coisas. O Museu da Imagem e do Som (MIS) de São Paulo passava filmes brasileiros. Todos bem baratinhos ou de graça, para estudantes. Eu corria atrás e via quase tudo. Por leitura, você sabia de mais coisas que não via. Não chegavam coisas que você queria ver. Um programador é aquele que conhece, que viu, que experimentou. Não adianta falar de um programador que não experimentou. Por que um filme dá certo e o outro não? Eu desenvolvi um senso bom de programação, juntando com a sociologia que fiz e também com um feeling sobre o gosto das pessoas. Programação é um jogo de sedução. Você pode apostar todas as fichas em um filme, mas se você não olhar com o olhar do espectador, você está programando para você. Normalmente, você programa para o outro, então você sempre tem que estar se travestido de espectador para programar. Isso eu aprendi primeiro indo ao cinema.
É preciso pensar na formação de público, mas também trazer o novo, induzir aqui, colocar algo estranho ali. Como fazer esse jogo?
Falando mais do próprio Bixiga e do Cineclube Macunaíma: naquele momento, eu não criava plateia. Porque na verdade a plateia já existia. O que não existia era inteligência, sabedoria, discernimento, de quem estava do lado da proposição. Existia um público para as reprises. Lembro que em 1981, no Cineclube Bixiga, passamos toda a nouvelle vague, Bergman, com um sucesso enorme. Tinha um bando de jovens querendo conhecer. Na época, não tinha nem VHS e nem DVD. Essa percepção de que já existe uma plateia formada foi o que deu o insight de dizer: “Dá para apostar”. Na época, eu não era empresário, não sabia como levantar. Para montar, por exemplo, o Estação Botafogo, o nosso patrocínio foi um empréstimo de cerca de US$ 50 mil para pagar em doze meses, do Banco Nacional. Nesse momento, a gente talvez estivesse criando plateia, mas o primeiro ponto – e daí a noção do sucesso da coisa – foi que nós estávamos atendendo a uma demanda que já existia, pessoas que queriam ver aquilo. Na sequência é que trabalho para uma formação de plateia, porque começo a ir ao Festival de Cannes: “Já que vocês não compram, vou lá comprar os direitos dos filmes e trazer”. Chegou um momento em que a gente lançava filmes aqui que Nova York e Paris não tinham ainda. Isso a partir do apoio dos consulados da França, da Alemanha, do Japão, do Instituto Goethe, ou coisa parecida. Era uma briga de busca, pelo menos em meados dos anos 80. O ano de 1990 é o marco de passar do cineclube para o cinema, com o Paysandu. Não estávamos abrindo cinema para passar o que já tinha nos outros cinemas. O lema era “democracia na tela” e vamos correr atrás de diferenças.
Como foi a relação com patrocinadores, com o Banco Nacional? Como isso se deu?
Mais ou menos de 1985 até 1993, o Cineclube Estação Botafogo tinha um apoio cultural do Banco Nacional. A primeira mudança foi no meu retorno a São Paulo, porque o Banco Nacional tinha investido aqui em dois cinemas: o Bixiga e a Sala Cinemateca, em Pinheiros, ambos não tinham dado muito certo. Aí o banco me disse: “Preciso de um projeto em São Paulo”. O antigo Majestic estava para alugar. Demorou, então, oito anos para o Banco Nacional botar o nome na frente de um cinema que não era dele, e investir US$ 1,5 milhão, com o risco que poderia ter. Inauguramos em 6 de outubro de 1993. E em janeiro de 1994, o investimento já estava pago com o que voltou de publicidade. Criou-se um case, que não serviu só para a gente. Depois disso vieram o Credicard Hall, os teatros, esse esquema de os locais terem nome das empresas patrocinadoras, o que não quer dizer que aqueles locais são das empresas. Mas foi um case de sucesso, medido em três meses, num contrato de cinco anos. Estamos falando de 1993, mas, em 1995, o Banco Nacional é incorporado pelo Unibanco. O Unibanco estudou, viu o que era aquilo e incorporou o projeto de cinema. Em termos de evolução, esse foi um modelo diferente do modelo do Bixiga. Se o Estação Botafogo era o Bixiga ao quadrado, o Espaço da Rua Augusta era o Estação ao quadrado. Por exemplo, no cinema da Rua Augusta foi a primeira vez que eu tive um projetor novo na mão, o que foi uma exigência. Se a gente ia montar um cinema, tinha que ter tudo novo. Foi a primeira vez que eu me importei com isso. Durante muito tempo, fomos o melhor cinema de São Paulo, sem a menor dúvida. Tecnologicamente, ele estava na ponta e em termos arquitetônicos apresentava diferenças também. A gente fazia valer a experiência nossa de oito, dez anos. A partir desse cinema, eu entro em uma indagação sobre público de cinema de arte, de questionar esse modelo de gueto, de um local que só passa filme de arte. Quando vou para uma cidade do interior, que é Juiz de Fora, de 500 mil habitantes, e levo esse modelo de gueto, do cinema de arte, quase quebro a cabeça! O meu PhD eu tirei lá, com a ideia de que deveria existir um outro modelo de apresentação que não o do Espaço Unibanco. Porque esse servia para as metrópoles, onde tem uma quantidade de gente tamanha que você consegue produzir uma plateia somente para aquele perfil de filme. Programar o George Lucas no Espaço Unibanco, Guerra nas Estrelas, era dar um soco na cara do espectador. Levei paulada de todo mundo. Aí nasceu um outro conceito, que seria botar o Espaço ao quadrado, de tentar ir para os mercados – que é o conceito do Arteplex. Aí a gente ganha uma força total, porque os agentes comerciais – leia-se shopping centers – não nos enxergavam. Foi quando a gente fez a investida no Shopping Frei Caneca. Essa apresentação foi com tops de linha de projetores, de som. Começam a chover propostas. Só que a gente se depara com a falta de recursos, com a falta de mecanismo. Com o Unibanco a gente fez, mas dentro de uma política que interessa ao Unibanco. O Unibanco não é uma empresa exibidora, é um banco que quer fazer um marketing com o cinema. Ele não quer fazer uma cadeia produtiva. A gente ia esbarrando com: “Olha, isso aqui dá, isso aqui não dá”. E foi assim que fizemos Porto Alegre, Curitiba, Salvador, um projeto que virou fisicamente nacional. Com a mesma política e com esse mesmo aprendizado. Não era uma questão de querer exibir o filme A ou B, era imposição do meio, uma forma de você botar tubarão, sardinha e pescar em aquário, porque se você botasse só sardinha, não iria aparecer ninguém ali.
O outro lado da história: a Cinemateca do MAM e o Estação Botafogo, no Rio, ou o próprio Cineclube Bixiga foram formadores de público e também pólos de reflexão sobre cinema, pólos de formação de cineastas. Como fomentar não só a exibição, mas toda a discussão e o debate público?
Isso você propõe e também vem da própria sociedade. Alguns projetos que a gente faz têm cunho nacional: o Curta Petrobras às Seis é um projeto de exibição de curta-metragens às 18h, com quatro filmes, de graça, em uma hora de projeção. Em outro projeto, o Clube do Professor, temos 38 mil professores em Porto Alegre, São Paulo, Curitiba, Rio, Santos, Juiz de Fora. E a gente propõe debates, eventos, mas o movimento mesmo vem da sociedade. O cineclubismo dos anos 70 era, ao mesmo tempo, uma arma política – mais do que uma arma cultural – para se proteger da ditadura, em termos de falta da liberdade ou coisa parecida. E para tentar criar organizações, já que não se podiam fazer organizações políticas próprias. Quando veio a reabertura, não sobrou quase nenhum dos 200 cineclubes. Por quê? Ficou pouca energia no cineclube em si, porque aquilo era uma bandeira de defesa. Já não tinha mais filme proibido. Todos os baluartes de propaganda dos cineclubes desapareceram, então você tinha que fazer pelo cinema mesmo. Foi isso que a gente teve que aprender nessa passagem. Estou há 25 anos nisso e a gente não deixa de propor debates, discussões. Recentemente, propusemos um seminário de cinefilia, porque acho que tem uma crise de suportes, de velocidades, de posturas humanas, que ninguém explica. Há uma crise na área de cinema de arte, dos modelos que praticam o cinema mais pensante, que perdeu muito do valor em relação ao que a gente conheceu nos anos 60 e 70.
Houve o caso do cinema Paysandu que, quando ia fechar por falta de público, promoveu uma série de reprises, com filas virando o quarteirão. Você acha que o DVD matou o cinema de reprises, ou isso ainda é uma possibilidade?
Falo por experiência própria. Comprei em Cannes a reprise do Touro Indomável [dirigido por Martin Scorsese, em 1980], de Manhattan [dirigido por Woody Allen, em 1979] e vários outros. Havia um tempo em que essas reprises davam uma movimentação de quatro semanas no cinema, e lotado. Além do suporte DVD, há a internet, porque a pirataria não acontece só no produto novo. Você entra na internet e às vezes consegue filmes de todas as épocas. Ela deu ao espectador um acesso à informação que nos era obstruído. Desse ponto de vista, é mais democrático. Mas, do ponto de vista de formação, se você pega um O Ano Passado em Marienbad [dirigido por Alain Resnais, em 1961], o cara vê em umatelinha, não tem fruição artística do filme. Ele teve um contato com a informação do filme, mas isso parece que está bastando para as pessoas. E se isso vai bastar para a pessoa, não sou eu que vou xingar o gênero humano. O fato é que isso influenciou o cinema, sem sombra de dúvida. O DVD acabou com as reprises. O cinema tem que tomar cuidado para o filme não sair em DVD antes. Vide o Tropa de Elite [dirigido por José Padilha, em 2007], o quanto sofreu com o vazamento. E não é uma questão econômica, é uma questão da rapidez da informação. O ser humano é doido por informação, só que, do lado da fruição do filme, ele pega só o lado da informação: “Ah, eu vi, acontece isso e isso”. Não importa como ele assistiu, se o som era isso, se a imagem era aquilo.
Queria que você falasse um pouco da relação entre dono do cinema, patrocinador, e o Estado. Para você, existe política para exibição de filme?
Historicamente, tive patrocínio com recurso direto do patrocinador, sem intervenção de nenhum tipo de lei ou benefício fiscal. Depois nós vivemos o período que teve a Lei Sarney, depois a Lei Rouanet. De certa forma, significa o seguinte: “Existe essa lei, corram atrás e se virem”. Dava muito mais trabalho para a gente. A gente tinha que fazer uma proposta de financiamento para arrumar um dinheiro para fazer a obra, depois um projeto para girar aquilo e dar recurso para pagar o financiamento. Esse projeto normalmente estava associado ao patrocínio, você trabalhava como doido. Houve um breve momento da Lei do Audiovisual que permitia a construção de salas. Os Arteplex do Rio de Janeiro e de Salvador tiveram cerca de 20 a 25% do seu custo de instalação advindo dessa lei, que depois foi cortada. Basicamente, foi o que se teve nesse período de 1981 até agora. A política que coloquei em prática foi a recuperação de cinema de beira de rua. A Prefeitura de São Paulo tirou definitivamente o Imposto sobre Serviços (ISS) desses cinemas. Já morreram quase todos os cinemas do centro, só sobrou o Marabá. Recuperei muito cinema de rua, e é uma luta porque não era uma coisa capitalista – ali rendia muito pouco e, quando rendia, você tinha muito mais gastos. A insegurança levou para o buraco muitas experiências no próprio centro de São Paulo. Acho que advém da insegurança o maior inimigo do cinema. E a existência do cinema é uma coisa que recoloca a segurança. O poder público demorou muito a perceber que ele estava atrasado, tanto nos municípios, como às vezes no governo do Estado e em termos federais. Agora, a postura da Agência Nacional de Cinema (Ancine) é de ter um fundo setorial do audiovisual, para propiciar aumento de salas. Isso tudo num país que tinha 3,5 mil salas, passou a 900 e, na mão do capital privado, subiu a duas mil, atendendo às classes A e B. O Brasil deveria ter de três a cinco mil salas, para manter o mesmo patamar que tinha nos anos 70. México e Argentina têm uma relação de população/sala muito melhor do que a nossa.
Agora há mecanismos no fundo setorial. Você é um produtor, tem uma ideia, quer recuperar aquela sala, onde você vai buscar o financiamento?
Na época, a gente ia buscar um patrocínio. Pegava US$ 50 mil, podia pegar como financiamento para pagar de uma forma. O BNDES criou uma série de mecanismos que foram botados em prática nos últimos anos. Começou a se enxergar que existe uma economia, uma força, uma necessidade estratégica de desenvolver essa área. O Brasil joga milhões para produzir um filme e não bota os pontos de venda. Qual o problema de botar os pontos de venda? “Ah, porque o ponto de venda está atrelado ao shopping”. Por que está atrelado ao shopping? Porque lá tem dinheiro, a equação fecha. É uma questão de tempo, porque se não tem o cinema na cidade, a população não tem o hábito de ir. Se ela não tem o hábito de ir, você vai sofrer, porque vai ter que primeiro criar o hábito. Ao mesmo tempo, num desses intervalos você quebra economicamente, porque não consegue fechar a equação. A França viu isso. Definir Paris como a capital do cinema era uma política de Estado. Em 1986, fui visitar todos os mecanismos da França a convite do governo francês e vi que tinham créditos para reformar todos os cinemas de Paris a custo zero! Existiam leis proibindo o formato multiplex para manter aquela estrutura, que era a que Paris queria. E a gente aqui era o contrário. Sem me referir a governo A, B ou C. Falo por ter vinte e poucos anos de trajetória. O Brasil não produz projetor, precisa criar mais quatro mil salas e a alfândega taxa em 60% a 80% o projetor que você traz para abrir um cinema! Não tem santo que me explique isso. Um país que precisa construir quatro mil salas, vai e taxa a importação desses equipamentos que só servem para ser usados em cinema? Não é muamba, não é um equipamento utilizável em outros locais. Esses buracos, essas burrices, só me dão a certeza de que a área de cultura raramente foi encarada como prioritária. O Estado sempre se portou assim. A lei de incentivo é uma verdadeira execração quando vira essa pílula que joga para o mercado. A gente começa a ter agora os mecanismos de financiamento, as formas de fazer não vinculadas com essas leis, direcionadas para produzir alguma coisa. A todo lugar que eu vou, fico olhando, e não consigo olhar sem a ótica da transformação: “Aquilo ali poderia ser melhor”. Antes de trazer o Imax para cá, visitei uns dez; isso existe há 40 anos e ninguém havia trazido. É um atraso que não se justifica.
E o preço do ingresso? Como fazer para tornar acessível a diferentes classes sociais?
Se você olhar em dólar, vai ver uma equação igual no mundo inteiro. Ele tem um acréscimo da inflação do dólar. Tem momentos em que, quando o nosso câmbio vai para baixo, as pessoas concluem: “Nosso ingresso é mais caro que em Nova York!”. Só que para resolver isso, você tem duas questões: a primeira é que todos os setores são livres de comércio, mas o cinema, o show, o teatro, não. Qualquer um pode pegar um papel, ir em uma Câmara de Vereadores e legislar sobre uma coisa que é o comércio daquele setor, aí cria-se meia entrada para A, para B, para C. Esses mecanismos de meia-entrada de uma certa forma são responsáveis, na medida em que se alastra ou se universaliza por novas leis ou por falsificação, pela subida do preço pelo empresário, para trabalhar no patamar que é o preço justo. Isso é um elemento que provavelmente você não vai ter como mover, como mudar. Então, a tendência do comércio é subir o preço e trabalhar na metade. Se você acha que o preço justo do cinema é R$ 10, vai vir todo mundo – ou 80% das pessoas – para pagar R$ 5. Então, eu boto a R$ 20, que aí fica R$ 10. Isso é uma coisa do Brasil. O Brasil é mais caro que o México, mas no México não tem essas leis. Esse é um elemento estrutural. Em segundo lugar, há possibilidade de fazer promoções? As promoções são feitas, mas no modelo que o Brasil entrou para reconstruir essas salas, que foi dentro de shoppings, num patamar de custo, é meio improvável que baixe. Quando você entra num contrato desses, você tem uma garantia mínima de pagamento e mais um percentual de bilheteria (dos dois, o maior). Ora, se você estabeleceu isso nesse patamar de preço, se você baixa o preço, não vai conseguir a garantia mínima. E o modelo da maior parte das salas construídas hoje é para população com dinheiro. Estão começando agora a despertar para regiões de classes B, C, D, para a noção de que é possível ter cinema. Como não? Mas você vai mudar o parâmetro. Você vai rodar mais com um preço menor. Mas vai fazer sua economia. O Marabá reformou seu cinema. E para botar os equipamentos, pagou os impostos – o ISS, até há bem pouco, era o mesmo percentual do Iguatemi. Então, por que a empresa vai fazer uma coisa dessas? Por algum cristianismo? A empresa não é cristã, ela anda na economia, e quando bota um recurso, tem que retornar esse recurso, senão quebra. Essa visão a gente linka na questão do preço, mas também na questão do Estado. É uma série de elementos que constituem o custo Brasil na exibição. A compra do jornal e da revista na banca não tem isso. A compra de alimentos não tem isso. Por que tem essa interferência? A rigor, no Estado democrático, se o Estado faz uma interferência, tem que repor a interferência que fez, e de certa forma, é isso que a gente vive. Muito do capital estrangeiro que vem para cá desiste. O Estado tem que atuar. Os mecanismos que estão para ser divulgados no fundo setorial vão atuar nisso. São medidas econômicas para o país inteiro, para qualquer região do país, para qualquer agente que está no mercado.
Essas ideias e propostas que você comentou seriam suficientes para ampliar o percentual atual de menos de 10% dos municípios com sala de cinema?
Eu acredito que há a necessidade de envolvimento dos poderes. Se você for em cidades que não têm cinema, na legislação dela o INSS para cinema é 10%. Precisa de disponibilidade de terreno, correr atrás. Paulínia, que tem dinheiro, correu atrás e fez. As que não têm, poderiam buscar dinheiro. A questão não é dinheiro, é ação! O agente, ou a empresa que vai em uma cidade dessas, teria que ir com um cacife de recurso para fazer um ou dois anos de aperitivo para essa população, para criar o hábito. Esse trabalho eu entendo que às vezes pode durar um ano, ou mais. Porque você tem que ter filme, e ter como comunicar. Pode ter o cinema mais bonito lá, mas se ficar vazio, ele é um horror.
O vale-cultura vai ser um instrumento forte para isso?
O vale-cultura está com dez anos de atraso, porque a retomada do cinema no Brasil teve alguns erros. Historicamente, todas as pré-estreias, aquelas sessões gratuitas, eram para aqueles que tinham dinheiro. As ações que se davam para levar cinema à população eram posteriores ao lançamento do filme, e sempre no sentido de dar mesmo, não de trazer para dentro. O vale-cultura não vai dar isso depois. Às vezes, esse consumidor tem o dinheiro da cerveja, que é o mesmo dinheiro do cinema, e opta pela cerveja e não pelo cinema. Talvez porque na cerveja ele está incluído na mesa com os amigos. Aqui, ele deve estar se sentindo excluído e não se sente bem. Então, trazer o novo consumidor é um processo que tem que ser pensado. Eu mesmo errei esse tempo todo fazendo pré-estreias de filmes novos com as mesmas pessoas. Não estamos fazendo política. Os filmes que fazem sucesso já têm dificuldade: ficam de quatro e oito semanas em cartaz! Em grande parte porque o parque exibidor também não acolhe. A gente costuma ter 80% do mercado em dois filmes. Mas não é porque os filmes estão pegando muitas salas, é porque o parque é pequeno. Um filme às vezes entra em 400 salas, de duas mil: 20%. Mas e se a gente tivesse seis mil? Se o vale-cultura entra e a gente consegue aumentar o parque de salas é o melhor dos mundos: você vai ter inclusão.
Você acha que, ao aumentar o número de salas e aumentar o número de espectadores, será possível possibilitar que produções de A a Z entrem no mercado?
Para uma produção de A a Z entrar no mercado, é muito distinto disso. No mercado, não importa a cor do gato, o que importa é que ele cace rato. O filme é bom ou não é bom, levou bola preta ou não levou, seja brasileiro, americano ou russo. É duro entrar, mas se ele entra e faz sucesso, permanece. O que vai acontecer com o “agregar novos consumidores” é que esses nossos números pífios vão explodir. O Brasil vai democratizar-se economicamente com a entrada de consumidores que estiveram mais de 100 anos fora. A sociedade brasileira sempre foi excludente, e quem está se sentindo incomodado hoje é a classe média. Na minha visão, vai ter que incluir, por uma questão econômica, não por uma questão política. E é vital que se inclua. Hoje nós temos um parque pequeno e amanhã podemos ter um parque maior, existe uma tendência para isso. O mercado brasileiro é admirado no mundo inteiro e não por nós aqui dentro, porque a gente vê as mazelas, o que falta, o que tem para ser feito e não é feito. Quem está fora, às vezes, só olha o tamanho do mercado, “aqui tem tantos habitantes”, mas quantos são consumidores? Conheço capitais do Nordeste que tem dois milhões de habitantes, mas que são tratadas como se tivessem 200 mil consumidores.
São poucas salas de cinema, mas a gente sabe que também tem um monopólio, tem o capital estrangeiro. Quais são as características desse monopólio, como você as enxerga?
Não diria monopólio. Na área de exibição, até dez anos atrás, só havia empresas brasileiras, e entraram capitais estrangeiros, Cinemark, UCI, que não têm problema nenhum em termos de operar. Você pode estar se referindo é na questão do produto. De 90% do mercado ser ocupado pelo produto americano, isso não só aqui, mas em vários locais do mundo. Aí que entram a eficácia das políticas num mercado livre, sempre pensando num mercado livre, não é por interdição que a gente vai construir a economia. A França, para usar como modelo, é a que conseguiu chegar mais longe. Ela mantém com o seu produto 40% do mercado. E é uma briga permanente! O produto que tem vários mercados é mais competitivo, porque custa menos, se repõe mais rapidamente. O produto brasileiro tem que se pagar só aqui, custa muito alto, qualquer que seja o valor de produção dele. Talvez esteja faltando uma visão sistêmica de como jogar algumas coisas. Ainda estão fazendo festivais, produção de filmes, mecanismos para distribuição. Você tem, na área entre a produção e a distribuição, vários mecanismos atuantes que vieram sendo criados porque quando caiu a Embrafilme e toda a política que ela carregava, teve que se criar novas.
Para finalizar, o que você vislumbra em relação à exibição em cinema no futuro próximo?
Estamos no melhor dos mundos, apesar de ser essa zorra total. Está se encaminhando para o acesso das pessoas, o acesso às salas, uma digitalização do cinema. Aquele custo de fazer cópia, de transportar para Maranhão, para Manaus, vai desaparecer. É uma questão de pensamento, de preparar esse parque exibidor. Amanhã, o produtor brasileiro de um filme de longo alcance vai ter muito menos custo para botar em 500 salas do país, com um simples toque no computador. Esse é o mundo que está se anunciando. A produção e a distribuição já estão com mecanismos que podem se sofisticar, e o crescimento do parque só vai possibilitar para que novos mecanismos surjam. É raro você ver hoje: “Vou fazer um filme e não quero saber de ninguém, vou fazer sozinho, não quero lei, não quero ninguém, porque vai dar certo”. E isso com um parque que deu uma segurança à primeira entrada. Porque o cinema é uma vitrine. Se ela consegue atrair uma pessoa da casa para a sala, ela deu um valor ao produto que é diferente de você ver na televisão. Então, vejo o futuro com uma boa dose de sentimento prazeroso, que está andando. A sensação é que poderia estar mais adiantado. A gente é pouco ágil na esfera pública. Mas estão previstas políticas que me dão um bom alento em relação ao que vem por aí.
Entrevista realizada por Aloisio Milani e Sergio Cohn no dia 02
de maio de 2010, em São Paulo.
Para assistir essa entrevista em vídeo:
https://producaocultural.procomum.org/slider/adhemar-oliveira/