Heloísa Buarque de Hollanda é graduada em letras clássicas, mestre e doutora em literatura, com pós-doutorado em sociologia da cultura. Com trânsito livre no meio universitário, suas opiniões sobre a vida acadêmica são contundentes: “Defesa de tese é uma situação patética”, “Pós-doutorado não passa de um projeto de extensão porque não dá grau”, “A universidade está perdidaça”.
Também sócia da editora Aeroplano, Heloísa tem nos estudos culturais seu principal campo de interesse. Nesta entrevista, ela lembra da própria transformação intelectual, desde a idealização da periferia na época do Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes (CPC/UNE), nos anos 60, até recentemente, quando ouviu do escritor Ferréz a frase: “Não vou à universidade, minha miséria é minha e não te dou”. Naquele momento, Heloísa concluiu ter perdido o “emprego como missionária intelectual”. Foi, no entanto, a descoberta de um novo caminho.
O imobilismo das premissas acadêmicas absorve grande parte das preocupações desta pesquisadora. “As regras acadêmicas são completamente paralisantes. Você não pode inovar em uma tese, porque você tem que se defender. E inovação é sempre uma área de risco”, diz. Heloísa está envolvida ainda coma Universidade das Quebradas, um espaço de troca entre a academia e a periferia do Rio de Janeiro, e tem buscado estudar a influência do mundo digital na cultura.
Heloísa, como tirar a pesquisa acadêmica do vício das teses?
É difícil demais! Fico convencendo os meus orientandos a não fazer tese:“Acabem logo com isso, pula essa fogueira”. É impossível trabalhar com oformato tese. Não há liberdade nenhuma, você não pode mudar sua proposta. Para mudar tem que fazer uma petição, uma explicação, todo mundoconcordar, etc. Você tem um formato que é rígido e que ninguém conseguedriblar. Você tem que colocar a palavra “comunicação” um número “x” de vezes em uma tese para ela ser reconhecida pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). O que você acha disso? É quase impossível. Eu boto logo no título: “Produção de livro e comunicação”. De outro modo, a tese não é reconhecida. A palavra-chave é que vale, não o conteúdo. É uma loucura. As regras acadêmicas são completamente paralisantes. Tese é uma coisa do século 19, do começo do século 20, não foi revista nunca. Tem que acabar com isso. E a defesa de tese? É uma situação patética. A banca tem obrigação de colocar você em uma posição de ré, de defesa. Você escreve uma tese – sei porque tive milhares de orientandos – para se defender. Não para inventar, ultrapassar fronteiras, inovar. Você não pode inovar em uma tese porque você tem que se defender e inovação é sempre uma área de risco. Acaba sendo burrice você fazer uma tese propondo inovação, porque na defesa você não vai ter segurança, não vai saber consolidar. É uma fogueira que você tem que pular por ritual e começar a trabalhar depois.
A universidade está engessada? Você sente isso?
Na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), tenho um programa chamado Programa Avançado de Cultura Contemporânea (PACC), ligado ao Fórum de Ciência e Cultura. O formato não é o de um centro, instituto ou núcleo. É um programa, o que, na prática, não é nada. É o seguinte: você tem três projetos dentro de um programa. E acaba no dia que acabarem os projetos. Não tem diretor, não tem coordenador, não tem equipe, eu não sou ninguém institucionalmente. Descobri isso depois de ter feito o Centro Interdisciplinar de Estudos Culturais (CIEC). Inventei o PACC, que é um programa, e disseram: “Por que você não quer ser uma unidade orçamentária?”. Porque eu não posso receber dinheiro. Quem recebe é o fórum ao qual estou vinculada. Sou apenas um programa. Se eu abrir essa deixa de receber dinheiro, eu não trabalho! Porque eu vou ter uma dose de controle sobre mim insuportável. Inventei esse programa e junto com ele uma associação de amigos. Quando tem uma verba internacional, uma coisa difícil, eu giro por ali e repasso para a universidade. Olha, para sobreviver na universidade, tem que ter muito macete. Agora, estou feliz com esse último processo. Trabalho com uma desenvoltura que eu nunca tive na universidade: “Não sou ninguém, tenho um programa de pesquisa, mas não tem nada além de um programa de pesquisa”. É uma pesquisa minha, individual. Ridículo que a universidade não possa capitalizar isso: quem capitaliza sou eu. Não pertenço praticamente à universidade, é um absurdo! Nesse programa, eu percebi que as pessoas fazem tese e depois entram em orfandade profunda.
Como assim?
Até a tese, há a figura do orientador, existe a tal banca, você é uma referência, escreve pensando no que a banca vai perguntar. Então você tem aquele entorno todo que te suporta um pouco. Aí você vira doutor e não tem mais interlocutor na universidade. Não tem espaço nenhum onde você possa discutir ideias. Acabou. Tornou-se doutor e acabou sua carreira. Você não tem mais o que fazer depois, não tem espaço para continuar dialogando.Você vai dar aula, vai ser orientador, vai ser chefe de departamento, um monte de coisa dos conselhos, mas não tem espaço de invenção, é um horror. Você perde o poder de fala com os seus pares. Para fugir disso, eu fiz o programa de pós-doutorado, uma delícia total. Criei um ambiente onde as pessoas vão, se encontram uma vez por mês e falam o que quiserem. Todo mundo opina, é isso, é um ambiente, mais nada. Você não deve entregar nada, aliás, entrega um artigo para poder ter o certificado, que é um certificado também que não vale nada, e faz um verbete para o Wikipedia, que é para divulgar. Tem gente com bolsa de pós-doutorado, só que eles não sabem para onde vão porque não tem nem um programa de pós-doutorado, porque não interessa à universidade. Interessa que você vá para fora. Você pede um pós-doutorado para Paris e ganha, certamente. Se tiver um mínimo de produção, você vai para Paris, para o México, para qualquer lugar, menos ficar no lugar que está e ter interlocução. É muito doido.
A sua área é a de estudos culturais. Qual é o espaço disso na universidade?
Hoje, o PACC tem três projetos. É o pós-doutorado. São os estudos culturais. Mistura meio ambiente, mundo digital, raça, gênero, cinema, televisão, qualquer coisa. Estudos culturais formam uma área nova. Foi inventada em 1950 na Inglaterra, mas que pegou fogo mesmo quando os intelectuais da geração de 60, ficaram sem pai nem mãe em termos acadêmicos. Inventaram os estudos culturais e começaram a ter força. É fazer sua produção de conhecimento comprometida com a sociedade. Mas é uma área muito desprestigiada. Ninguém acredita em estudos culturais. Falam que é um engodo, que não é sério. Então, eu falei: “Já tenho um programa que não é nada. Se eu lidar com uma área que também não é nada, também desprestigiada, estou feita!” (risos). Foquei nos estudos culturais. Meu trabalho desde o início da minha carreira foi microtendências. Quando eu vejo uma coisinha acontecendo, eu pago para ver. E, para me situar, sou uma órfã dos anos 60. Peguei os poetas marginais dos anos 70, depois mulher, negro, e fui trabalhando essas vozes que começavam a aparecer. Isso na academia também não tem espaço. Primeiro criei um apoio ao estudo sobre mulher, que acho importantíssimo. No Brasil, tem um mito de que mulher é bem resolvida, não tem problema. E tem. Então, comecei a introduzir na academia o assunto. Um dia, eu ouvi do diretor da Escola de Comunicação a seguinte frase: “Comunicação não tem nada a ver com mulher”. Decidi arranjar uma verba. A Fundação Ford me deu uma verba grossa, a Fundação Rockefeller outra, e, imediatamente, a mulher passou a ter a ver com comunicação (risos). Você tem que se apoiar em verba externa, porque aqui dentro é difícil. Fiz um grupo de estudos de gênero, depois o de estudos de raça, todos dentro do CIEC.
Você elaborou estudos culturais sobre os negros no Brasil…
Aproveitei o ano de 1988, que foi o centenário da Abolição, e fiz um projeto bacana pela associação e pela Fundação Ford, nada a ver com a universidade até então [o acervo do projeto Abolição hoje está no Núcleo de Documentação do CIEC/UFRJ]. Fiz um projeto enorme, interessantíssimo. Todo mundo estava dando dinheiro para a questão racial – de fora e de dentro do Brasil: ministério, secretaria de cultura, de educação, todo mundo investindo. Quis mapear tudo que estava acontecendo no Brasil em torno de raça – todos os financiamentos, todos os pronunciamentos, todos os eventos – e gravá-los, registrá-los. A Ford bancou isso feliz da vida. Tinha antropólogo, anônimo de rua, várias pessoas entrevistando ao mesmo tempo. Peguei o que a TVE e o que a TV Globo tinham feito, na época. A Marcha da Abolição, por exemplo, foi sensacional, porque eu tenho a visão da Globo, que é uma, a visão da TVE, que é outra, além das visões do antropólogo e das pessoas falando na rua. Quatro versões sobre uma marcha. Cobrimos o Brasil inteiro. Em São Paulo, foi a Lilia Schwarcz. Havia pessoas em lugares que gerenciavam a cobertura do seu lugar, do seu espaço. Tive que fazer uma equipe de fora, a universidade não absorveu isso. A única coisa que a universidade disse é que eu estava aproveitando para ganhar dinheiro. Mas eu estava fazendo um acervo para a universidade que ela jamais teria. Eu tenho todas as dramatizações das questões raciais: teatro, música, muita capoeira. Havia uma visão muito folclórica do negro – ainda escravo, jogando capoeira e cantando. Está registrado. Eu tenho um arquivo fantástico que é o arquivo Abolição e que hoje está todo digitalizado e online. Tenho todos os cartazes dos eventos daquele ano. E tem uns pichados, guardados a sete chaves. Todos racistas! No campus da UFRJ tinha aquele negócio assim: “Seminário sobre a questão racial… ‘criolo de merda’!”. É um registro incrível que está lá. A Bolsa de Valores do Rio, por conta das “comemorações”, fez um evento leiloando escravo. Filmei isso, era uma coisa fantástica, uma brincadeira. Incrível isso: você ter na Bolsa de Valores o pessoal fazendo ação para escravo em 1988. Então, é um arquivo riquíssimo que a universidade não absorveu, não está na universidade, está em comodato na universidade, uma maluquice. Depois da questão negra, comecei a me interessar demais pela periferia porque ela começou a aparecer de uma forma muito desconhecida para mim. Nos anos 60, eu ia com o Centro Popular de Cultura (CPC) da UNE para a favela, para dizer ao pobre o que ele era, o que ele tinha que querer, quais as demandas que ele tinha que encaminhar. Todo mundo achava bacana. A gente achava que estava fazendo coisas maravilhosas, e eles também, as associações de operários…
Você reencontrou a periferia brasileira depois disso?
Passam 40 anos e encontro um cara tipo o escritor Ferréz, que diz: “Eu não vou à universidade, eu não falo com ninguém, eu não vendo a minha miséria. A minha miséria é minha, o capital é meu, quem vai vender sou eu”. Pô, isso é um pulo, é um sonho. Não consegui desgrudar mais disso. Fiz um flashbackde mim na favela, dizendo o que eles tinham que fazer, o que tinham que ler, ecorta para o Ferréz dizendo uma coisa dessas: “Minha miséria eu não te dou”. Fiquei estudando isso compulsivamente e descobri várias coisas. Não dá para ensinar nada à favela. Ela tem seus intelectuais orgânicos, ela tem seu saber. Há algum tempo já existe alguma visibilidade de saber, capacidade empresarial, organização. Eles começaram a formar ONGs. Então eu ia fazer o que ali? O que eu poderia fazer era uma troca e me situar como uma pessoa de fora mesmo. Porque, na minha pobre fantasia em 1960, eu era de dentro. Era uma missão intelectual você representar a pobreza, o pobre, que não tem voz. De repente, me vi com essa voz cassada, desempregada. Fiquei felicíssima. Fui procurar minha posição. Nos anos 80 teve uma nova configuração para o intelectual poder se mexer, que foi a questão das ONGs. A ONG aparece como um intermediário, um corretor entre o Estado e a demanda popular. Ele ainda tinha um lugar, ele era um corretor de ideias, um corretor de demandas, um agente. Mas nos anos 90, nem agente, porque a periferia é poliglota hoje. Ela fala a linguagem do mercado, ela fala a linguagem da favela e ela fala a linguagem do ministério, vai lá e pede dinheiro. No Rio, tem uma coisa chamada F4 – sigla para Favela 4 –, uma brincadeira com o G8. São os quatro grandes lugares da periferia: AfroReggae, Observatório de Favelas, Central Única das Favelas (Cufa) e o Nós do Morro, que falam em nome de uma representatividade das favelas. Eles vão lá e falam com o governador: “Escuta aqui”. Eles falam todas as línguas que nós falamos, que os intelectuais falam. Fiquei muito fascinada procurando esse lugar, levei quase 10 anos procurando o meu lugar. Percebi que era uma coisa assim: “Te dou uma coisa se você me der outra”. E começou a haver conexão. Foi daí que nasceu esse projeto Universidade das Quebradas, dessa minha procura de onde é que eu estava. Porque eu tinha perdido meu emprego como missionária intelectual.
E como foi sair da constatação e concretizar a Universidade das Quebradas?
Esse processo é longo. Na minha editora, a Aeroplano, tenho uma série apoiada pela Petrobras chamada Tramas Urbanas, sobre os intelectuais na periferia. E por que esses intelectuais não aparecem em um outro circuito? Porque dentro das suas comunidades eles são intelectuais reconhecidos como tal e agem como tal. Na academia e em outros espaços institucionais, contudo, não são reconhecidos. Está cheio de antropólogos, sociólogos, gente de letras, com competências diferentes, mas não há a visão deles, dos intelectuais da periferia. Resolvi fazer uma série de livros, bem cuidados, luxuosos até. Não é livrinho de pobre, é livrinho pop, com um projeto gráfico bacana. E dei para essas pessoas escreverem. Chamei todo mundo que me ocorreu. Hoje eu já fiz 10 livros, estou fazendo mais 10, está no fim da série de 20. Já consegui o apoio para fazer mais 10. Não sei se vou continuar depois com esse apoio, mas eu queria para o resto da vida. O Sérgio Vaz, que tem a Cooperifa, fala sobre o começo desse projeto. Não é antropólogo, nem crítico literário, é ele contando a versão dele. É uma versão, uma voz sobre o que aconteceu. O projeto gráfico foi dificílimo de fazer. O designer queria fazer grafite, e grafite é uma linguagem que não é minha, é hip hop, então eu não ia botar grafite. Teve uma turma de 18 anos que fez uma leitura pop da cultura hip hop. Fizemos esse projeto gráfico, foi o que mais demorou na minha cabeça para ser resolvido, porque eu tinha certeza que eu não queria grafite na capa. Nessa série eu comecei a perceber que eu estava sacando o lugar. Foi muito prazerosa de fazer. Saquei o que eu podia dizer para eles, o que eles precisavam que eu dissesse. E eu saquei o que eu precisava ouvir deles. Não tem antropólogo que conte isso para mim. E cada vez que eu chego mais perto da periferia, tenho certeza que eu não sei nada sobre a periferia. Pela Aeroplano, fiz uma exposição chamada Estética da Periferia, no Rio, com o que seria essa estética hip hop. Chamei o Gringo Cardia, que tem a ONG Spectaculo, que trabalha com os meninos de periferia fazendo os projetos para ele. O Gringo encenou e, quando eu vi, falei: “Isso não é a periferia! Isso é uma loja!”. Porque tinha jeans, calça jeans Gang, tudo que eu achava que não era periferia. Eu pensava que periferia ainda era um barraquinho de madeira, e não era. Era uma coisa de alta vibração em termos de consumo. E o Gringo disse: “Mas é, eles que trouxeram, a gente não fez essa curadoria”. A gente não sabe mesmo o que é, então tem que ouvir. Com essas duas experiências – Estética da Periferia e Tramas Urbanas –,voltei para a academia, justamente aquele espaço branco cheio de “gente que sabe”. Na universidade, tudo é pago: luz, telefone etc. E você não paga ninguém! Você é paga para ficar ali só investindo capital intelectual. É uma Disneylândia! Então, surgiu a Universidade das Quebradas, uma espécie de sequência daqueles dois projetos. Peguei o meu pós-doutorado e fiz um espaço acadêmico aberto para a periferia. Não é capacitação, não é assistencialismo, não é para ensinar nada para ninguém. Só um espaço absolutamente acadêmico. Eu sou a academia e a periferia. Eu não saio da minha posição de acadêmica para ajudar periferia nenhuma! Quero os intelectuais da periferia conversando com os intelectuais da universidade. Para o projeto, fizemos um edital brabo, igual ao de pós-doutorado. A única diferença é que no pós-doutorado você tem que apresentar o certificado de doutor e, aqui, era um portifólio. Apresentaram-se 80 candidatos! E foram selecionados 25. Éramos assim: eu, o MC Fiel do Santa Marta, o Guti Fraga, do Nós do Morro, a Ilana Strozemberg, antropóloga, e a Eliana Silva, coordenadora da Maré. Só entrou quem tinha excelência profissional. Escolhi os melhores professores nas áreas para dar essas aulas. No primeiro semestre, temos o período da Antiguidade até o século 19, o romantismo. Houve uma aula com um filósofo maravilhoso chamado Charles Feitosa, da UniRio. Ele deu uma aula sobre a visão da arte na Antiguidade, a alegoria da caverna do Platão. Depois, Ilíada e Odisseia, de Homero, na aula do professor Silvério Ortiz. Já teve arte na Antiguidade e o teatro grego também. O que mais pegou foi o que eles chamaram de “mitologia da favela”, quando a gente estava dando mitologia greco-romana. A questão da morte, por exemplo. Antígona se escarmentou toda porque tinha que enterrar o irmão. O que tinha de gente com irmão para ser enterrado, ali naquela miniplateia, não estava no gibi. A questão de enterrar o corpo ganhou um eco inacreditável, fiquei besta. Falando da polícia, do Bope. E tudo isso lendo antígona.
O conceito de extensão é importante para a universidade?
A extensão para a universidade é tão importante quanto a pesquisa. Porque a universidade, principalmente a pública, é paga pelo cidadão. Ou ela devolve essa produção de conhecimento ou ela está em déficit público, em dívida pública. A universidade é autocontida, o que é absurdo com o dinheiro público. Tudo bem que você está produzindo conhecimento e etc, mas você tem que devolver esse conhecimento, e a extensão seria o lugar ideal para isso. E ela é vista como uma atividade menor, como uma coisa que não é importante na universidade. Tanto que a verba da extensão é muito menor do que a verba da pesquisa. E isso é visto com uma naturalidade chocante, como se a extensão fosse um lugar não experimental, como se a universidade não lucrasse nada com isso. O povo do direito vai para a favela e ajuda as pessoas a resolverem os seus casos de divórcio, os problemas jurídicos. Mas extensão não é isso, é você levar a produção de conhecimento e ter um retorno. Extensão é uma conexão, não é serviço. Então é pequenininho, é desprestigiado, não interessa muito. Antes de me aposentar, deixei a graduação e fiquei só com a extensão, como estou. Acho um caminho correto. Quando você já acumulou conhecimento daquela instituição, já tem produção intelectual, já tem tudo, está na hora de entrar nesse laboratório, que é o laboratório com a sociedade. A Quebradas é um projeto de extensão, o pós-doutorado é um projeto de extensão porque não dá grau. Não é de ensino, não é de pesquisa, então é extensão. E agora estou abrindo um terceiro projeto, acho que o último, que é uma coisa chamada Pólo de Cultura Digital, que é o óbvio, não dá para não ter. Você não pode inclusive deixar de falar do impacto da cultura digital na periferia, é a primeira coisa que você vê, as lan houses. Não dá para ter também um pólo de cultura digital dentro da universidade, porque você vai analisar tendência. Então a gente tem esse pólo que está muito no começo, é um projeto mais novo que a Universidade das Quebradas. A Universidade das Quebradas funcionou o ano passado todo, um piloto. Vou comentar uma aula fantástica: o cordel e o rap. A gente chamou os dois. Os rappers sempre dizem que o pai do rap é o cordel. Aí veio um doutor em cordel. Mas um odeia o outro. Os rappers odeiam cordel, porque dizem que são conservadores, machistas, autoritários. E os cordelistas odeiam os rappers, porque dizem que eles são sensacionalistas, pregam crime, sexo, drogas. Isso só pôde acontecer naquele encontro. Começou com todo mundo dizendo que o outro era bacaníssimo e, de repente, saiu tapa para todo lado (risos).
Como pensar uma universidade aberta, livre, contemporânea, que entenda a cultura brasileira em seus mais diversos pontos de vista?
A vida toda eu trabalhei em tentativa e erro. Meus projetos começam todos molengos, depois vão se configurando devagar. Não consigo fazer um projeto assim, de pensar como a universidade deve ser. Todos os projetos que fiz assim não deram certo. Todas as vezes que achei que ia fazer alguma coisa com um modelo ré-estabelecido, não consegui chegar lá. Por isso, fiquei um ano dando’aula para a Quebradas para ver como era. Não pedi financiamento para ninguém porque acho que só posso pedir quando a coisa existir. Acho maluquice pedir alguma coisa para um projeto que só está na cabeça. Mas eu acho difícil responder a essa pergunta, o que deve ser, porque acho que a universidade está completamente sem projeto. Ela perdeu em 1960, esqueceu o que tinha vindo fazer e ficou confortavelmente esquecida. A sociedade civil está mais organizada. É melhor você trabalhar em uma ONG do que na universidade. Você tem liberdade. Os intelectuais mesmos fazem as suas próprias ONGs para poder trabalhar, tem muito espaço alternativo funcionando. A universidade está perdidaça! O impacto das ONGs e a chegada de outros saberes estão alertando algumas pessoas a abrirem espaço para uma reformulação. Mas aonde isso vai dar, eu não sei.
A universidade, por princípio, é um circuito privilegiado de circulação cultural, certo?
No pós-doutorado. Está todo mundo fazendo doutorado. O doutorado tem que ser consolidado, porque aí não vai ter coisa emergente na universidade sendo valorizada. Há animação cultural, mas não há produção cultural na universidade. Não existe esse espaço. Devia ser na graduação, mas ela também está indefinida. Não prepara bem para o mercado e não prepara bem criticamente. Fica no meio, nervosa.
E a invenção que fala? Invenção e inovação, qual o desafio da inclusão?
Essa inovação tem muito espaço na área técnica, científica. Tem laboratórios, tem incubadora, tem o diabo, realmente a inovação está protegidíssima nessa área. Na área de humanas não tem, porque na cultura, para você hoje inovar, tem que ter alguma articulação com a tecnologia, articulação com outros segmentos sociais, e a universidade não permite essa flexibilidade. É tudo departamental, é tudo separado, decanias que separam grandes blocos. Para chegar à universidade, tem que passar por quatro paredes, quatro processos administrativos, quatro petições, quatro memorandos. Para, depois, falar com o outro lado. Quer dizer, a organização engessa. Decania, unidade, departarmento. Fraciona, fraciona, fraciona. Não pode. Assim, não vai ter inovação nunca. Para se fazer a universidade do futuro, precisa haver reforma administrativa. Porque têm cabeças, alunos, vontade, mas não pode existir aquela estrutura seccionada. Você tem que soltar para todo mundo, conversar com todo mundo. Você tem um momento de globalização! A nossa universidade é do século 19, do tempo da industrialização. Já tivemos dois momentos econômicos e a gente ainda está lá atrás. Não podemos trabalhar assim.
Você vê alguma diferença nas universidades fora do Brasil?
Dou muita aula fora, mas é a área Latinoamérica, então vou muito ao Centro de Estudos Latino-Americanos. Eles são também o lixo da universidade, um guetinho. Não tem essa experiência com o trabalho. Sei que vou lá e estou isolada com um gueto chamado de Centro de Estudos Latino-Americanos, que não tem acesso a coisa nenhuma, nem prestígio nenhum. Então não sei como é. Eu imagino que se eu fosse norte-americana, eu estaria hoje no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), estudando literatura. Mas como não tem MIT aqui, eu não tenho onde estudar. Não posso ir para COPPE/UFRJ estudar literatura, eles vão fazer eu estudar e-reader. Quero saber como eu vouescrever um romance hoje, por exemplo. A narrativa não vai ser igual. Não pode ser a mesma. A garotada está no universo dos games, com múltiplas funções. Não é mais a criação de uma história linear, com um herói que, no fim, acaba assim ou assado. Não é a história de uma consciência pessoal, é um universo inteiro para ela interagir. Com quem na universidade eu vou conversar? Não tem. Ou eu sento lá no canto e fico estudando livro de americano, ou não sei o que faço.
Como pensar políticas culturais de Estado, não influenciáveis por governos da vez?
Não sei. Tenho paixão por erro. Tudo para mim que deu certo começou errado. Não pode ter medo de errar. Não podemos saber exatamente como vai ser daqui a dez anos, mas o impulso tem que ser nesse modelo. Tem que poder transitar, fazer conexões, articulações. É preciso dar espaço para as articulações: municipal e federal, estadual e municipal, estadual e universidade. Precisamos de um mapa articulado. E, não, seccionado.
Como criar um ambiente de inspiração para cultura e para a universidade?
Tem que ser preguiçoso, porque se não for, ele não vai funcionar. Você tem que não querer nada, não ter metas, não ter padrões e ficar ali para trocas. Articular com muita gente legal, ter um orelhão, falar pouco e ouvir muito. Tenho certeza que assim acontece. Não se pode criar condições para a inspiração. Tem que desfazer as condições. E ouvir.
Para encerrar, fale de um autor brasileiro que você goste.
Murilo Mendes. Aliás, leio compulsivamente e não trabalho. Seria capaz de falar horas sobre uma poesia marginal, sobre poesia digital. Se você me flagra sozinha, eu estou lendo Murilo, Carlos Drummond, João Cabral, é uma viagem. Fico lendo essas pessoas e faço questão de não pensar sobre elas. Me dá um prazer intenso, porque a poesia é a minha mídia. Admiro a ficção, eu leio, mas o lazer é a poesia.
Entrevista realizada por Fabio Maleronka Ferron e Sergio Cohn
no dia 17 de maio de 2010, em São Paulo.
Para assistir esta entrevista em vídeo:
https://producaocultural.procomum.org/2010/08/17/heloisa-buarque-de-hollanda/