Entrevista de André Midani ao Produção Cultural Brasil

Depois de passar a infância e a juventude com a família em Paris, o sírio André Midani fugiu na década de 50 para não ter de lutar na Guerra da Argélia. A ideia era se estabelecer em Buenos Aires, contudo o navio ancorou antes no Rio de Janeiro. Encantou-se e decidiu ficar por ali mesmo. Começaria a carreira de um dos ícones da indústria fonográfica, responsável pelo sucesso de grandes nomes brasileiros.

De origem síria, e sem falar português, conseguiu emprego em menos de 72 horas na gravadora EMI-Odeon, respaldado apenas pela experiência de balconista que tivera em uma loja de discos na França. Midani descobriu músicos como Carlos Lyra, Roberto Menescal, Nara Leão. Mas quando mostrou a um executivo o disco Chega de Saudade, de um obscuro baiano chamado João Gilberto, ouviu a avaliação de que aquilo não passava de “música para viado”.

Septuagenário, Midani acompanhou in loco o alvorecer e a derrocada da indústria de discos. Conhece, portanto, os mecanismos que regem a dinâmica que determina o sucesso – ou não – de um artista. Critica o jabá por uma questão moral. “Depende para que você o utiliza.” Midani surpreende ao afirmar que pagou para que artistas sob sua alçada tocassem nas rádios. “Se você usa um jabá porque o programador é uma pessoa sem gosto musical e você tem um artista
de valor, é um bom investimento.”

Como começou o seu trabalho como empresário de música no Brasil?
Aconteceu meio por acaso. Eu estava na França, comecei a trabalhar na indústria fonográfica, em postos modestos, mas com muito entusiasmo e, um dia,veio a Guerra da Argélia. Todas as guerras são estúpidas, mas essa tinha um conteúdo mais estúpido do que muitas outras. Sendo eu metade árabe, achei incongruente fazer uma guerra contra os árabes. Então desertei. Peguei um navio, pensava em ir para Buenos Aires, mas quando ele entrou na Baía da Guanabara, achei que era a coisa mais bonita que eu já tinha visto na vida. Não conhecia ninguém, não falava a língua, mas procurei trabalhos em companhias de disco. Três ou quatro dias depois comecei a trabalhar. Minha função, durante certo tempo, foi selecionar o que se chamava de “repertório internacional”. Em paralelo, um fotógrafo me apresentou a um grupo de jovens, amigos dos seus filhos, me dizendo: “Olha, eles fazem música, não sei se ela é boa, mas são ótimas pessoas e tenho certeza que o senhor vai se dar bem com eles”. Marcou-se um dia para nos encontrarmos e entraram Roberto Menescal, Carlinhos Lyra, João Bosco, Nara Leão, essa gente toda. Tocaram e eu achei fantástico! Pouco depois, por coincidência, eu conheci o Tom Jobim, o João Gilberto. Ali se formou o que seria chamado depois de bossa nova.

Você menciona em seu livro que a gravadora não conseguia alcançar esse público. Como foi essa questão?
O difícil era se comunicar com a juventude brasileira de então. Porque toda  a estrutura de jornais, rádio e televisão estava organizada confortavelmente para lidar com as grandes vozes que, já naquela época, eu chamaria “do passado”. Quando o João Gilberto saiu do estúdio tendo gravado o Chega de Saudade, fui à São Paulo poucos dias depois para mostrar essa maravilha. Toquei o acetato para um gerente comercial da Odeon. Ele chamou os vendedores, porque eu tinha dito que ia apresentar uma coisa monumental. No fim, ele tirou a agulha, pegou o acetato, jogou no chão e disse: “Isso, meu filho, é música para viado! Nunca vai tocar! Nunca vai vender!”. E ele não fez isso de maldade. Então, o que a gente fez foi passar por cima de todas as mídias. Tanto no Rio quanto em São Paulo, a gente ficava na saída dos colégios e distribuía o Chega de Saudade em 78 rotações. Não milhares, mas várias centenas aqui e outras centenas no Rio. Os meninos que ganhavam os discos gostavam, recomendavam aos amigos. Eles se tornaram os divulgadores. Telefonavam para as estações de rádio, queriam que elas tocassem isso, tocassem aquilo. E a gente organizou concertos em colégios e faculdades. O resto da história, vocês conhecem.

Quem é André Midani na cena musical brasileira?
É um camarada que não era nem músico, foi um péssimo baterista, mas adorava a música. Trabalhou feito um danado o tempo todo para ser o melhor empregado possível a serviço do artista. E quando digo “a serviço do artista” não é de uma forma demagógica. Fui adequado e capaz para um número substancial de artistas. E a sorte é que eles ficaram muito conhecidos posteriormente. Devo ter sido excepcionalmente rigoroso, decepcionante e rude com outros artistas com os quais eu não tinha uma grande afinidade ou confiança. André Midani é esse. Naquela época, os empresários – meus colegas de companhias de disco – tinham por missão ou vocação fazer com que a fábrica fosse bem administrada, que os depósitos estivessem bem sortidos, que os estúdios de gravação fossem rentáveis. Havia esta tradição no mercado de discos de que o patrão era uma pessoa que cuidava dos ativos da companhia. Eu, muito cedo, entendi que o melhor ativo de uma companhia de discos são os seus artistas. Porque uma fábrica e um estúdio, ou você tem ou você aluga. Agora, você não vai alugar um artista! E não é uma fábrica que vai te fazer vender discos. É o artista e o marketing sobre ele – essa palavra que todo mundo acha horrorosa. Marketing é uma palavra cujo uso e abuso a tornaram vulgar, mas inicialmente é uma coisa indispensável e honrada se você a utiliza bem. Então, tentei te responder quem é o tal André Midani (risos).

Você se vê como um empresário da música? O que é isso, afinal?
É um privilégio, porque é um desafio a busca do equilíbrio. Você tem o lucro de um lado e o artista do outro. Existem artistas de qualidade e lucro de qualidade. Isso é uma coisa que não é tão fácil. Você pode ter lucro formidável com artistas que te dão uma venda fácil. Mas tentar dar lucro com um talento mais seletivo é um pouco difícil. É um privilégio quando você tem este tipo de responsabilidade: graças ao seu trabalho e dos que te cercam, conseguir vender artistas de boa qualidade e que, ao mesmo tempo, são rentáveis para a sua companhia. Na década de 80, os produtores chegavam a falar que iam fabricar o artista. É possível fabricar um artista? Não, não, não. Quer dizer, é possível fabricar um artista que tenha talento. E a palavra fabricar não é a mais adequada. Vamos tomar um exemplo de fora: Beatles. Quando surgiram os Beatles, todo mundo disse: “Estão sendo fabricados”. Tanto não foram fabricados que duraram o tempo todo que duraram, e sofremos as consequências de suas atuações, das suas performances. Ao lado disso, houve indústrias competitivas que quiseram lançar outros Beatles. O mais famoso deles foi o The Monkees. Eles foram absolutamente fabricados. Cada um dos quatro integrantes foi selecionado segundo critérios adequados da época, as músicas foram escritas com critérios da época. Meteu-se muito dinheiro. Foi a resposta americana à invasão inglesa. E ninguém mais sabe quem são os The Monkees. Você pode botar o dinheiro que quiser, mas vai durar um ano, dois, três. Quatro não! E, se dura, é porque esse artista tem talento. A gente é que não tinha visto nos primeiros passos. Mesmo com toda a mudança tecnológica, a canção continua com seu padrão de dois a três minutos e meio. Por quê? É um formato eficiente para quem? Quando o LP apareceu, certos músicos conceberam que você tinha um tempo para tocar – de 20 e tantos minutos. Isso te libertava da obrigação dos três minutos. Vieram Pink Floyd e muita gente. De resto, acredito que ficou em três minutos em geral, porque, simplesmente, o artista e a gravadora estavam preocupados em ter um formato que agradasse às estações de rádio. Quando você chegava na estação com uma música de cinco minutos, muitos diretores de estações diziam: “Cinco minutos? Mas você está louco, rapaz! Como a gente vai tocar cinco minutos? Corta! Se tiver três minutos, a gente vê”. As pessoas se deixavam impressionar por isso. Agora, hoje você não tem nem que dar satisfação às estações de rádio. Porque você tem um leque de meios de comunicação que escapa ao controle delas.

O empresário da música, dentro desse leque, tem agora de se reinventar?
Não tem. A indústria fonográfica foi uma bolha que começou em 1950 e estourou em 2000. O executivo de gravadora hoje – apesar do meu carinho infinito – é uma pessoa que não tem futuro. A companhia de disco, tal qual a conhecemos neste período, não vai existir mais. Em 1950, uma companhia fonográfica era tecnologicamente avançada. Todo mundo se surpreendia com as qualidades de gravação, com as inovações de produção. Os artistas reclamavam, na maior parte do tempo, porque no Brasil, inicialmente, havia uma ditadura e o impacto era enorme. Nos Estados Unidos, era a Guerra do Vietnã. E nessas conturbações políticas e ideológicas a música sempre teve um papel relevante. Mas, hoje em dia, por vários equívocos monumentais dos que dirigem a indústria fonográfica, ela foi destruída e não tem retorno.  A única coisa que tenho a dizer é que vamos apagar tudo, descansar um pouco, tomar um ano sabático e, um belo dia, vamos repensar essa coisa de indústria fonográfica. Se ela faz sentido ou não. A indústria fonográfica sempre foi, para o independente e para o multinacional, voltada para a juventude. Os executivos tinham de ser jovens para poder falar com os artistas jovens. De 1996 a 1999, quando surgiu o pessoal do mp3 e do Kazaa, esses meninos foram às companhias de disco, para formar associações, financiadas pelas companhias de disco para descobrir novos métodos de distribuição. Os executivos então olharam esses meninos e disseram: “São inimigos, vamos persegui-los”. Eles entendiam como um perigo em vez de aliados. Dali, então, a catástrofe aconteceu. O público jovem viu a indústria fonográfica como inimiga.
E se eu tenho um público que é jovem, um público do qual dependo, não posso fazer com que ele me considere inimigo. Este é um erro de tantos que existem. Quer outro? Instrumentos musicais. A cada revolução de instrumento de música vem uma revolução artística. Para citar alguns exemplos, tem um que é o piano-forte, o piano de cauda. Quando apareceu o piano de cauda, a música erudita deixou de ser o que era. Porque toda ela estava escrita para ser tocada com clavecin, o que chamamos de cravo. Os grupos de músicos eram para 10, 12, até 16 pessoas quando muito, exceto em algumas obras específicas nas quais o clavecin não intervinha. Quando chegou este absurdo de piano de cauda, não teve para mais ninguém. Tiveram de aumentar as orquestras: Beethoven com 70 músicos, Schubert com  80, Mahler com cento e tantos. O piano de cauda revolucionou a música clássica. Outro exemplo: a guitarra elétrica foi inventada em 1940. Se não tivesse sido inventada, a gente não teria o rock, o blues contemporâneo. A guitarra elétrica revolucionou a maneira de tocar. Tanto que não se tem mais grandes orquestras por conta da guitarra elétrica. Então, desde a guitarra elétrica – já são 70 anos –, não houve nenhum instrumento que obrigue a mudança de comportamento que inspire o músico a dizer alguma coisa diferente com estes novos meios que ele tem na mão. Som novo? Não teve. Na tecnologia, você vai para 70 anos atrás e vê o que acontece hoje.

E o sintetizador e o computador nesse contexto?
Servem ao propósito de você poder tocar, mixar, corrigir e “descorrigir” como quiser. Mas isso não é uma invenção de som, é uma reprodução de som. Você bota lá saxofone alto, dois tenores, um barítono e “tchuf ”! Está tocando aquilo. Mas o propósito dessa gente foi de dar acesso, com pouco dinheiro, ter o domínio total sobre o seu talento. É muito útil para isso, mas não é um instrumento. Sobre sua experiência fonográfica americana, o que era o “livro branco”? Isso evitava que as empresas pagassem jabá? Nos anos 70, houve casos de companhias que atuaram dando dinheiro por baixo do pano. Mas estas companhias, se me lembro bem, tinham a ver com segurança nacional, armas e aviões. Houve muita propina dada por essas companhias para que os clientes de outros países fossem comprar produtos. Quando se descobriu isso, o Congresso e o governo decidiram que os presidentes de todas as companhias americanas deveriam assinar o livro branco, um manual de conduta, que, basicamente, tentava evitar que as companhias subornassem pessoas. E todos os presidentes de multinacionais, para não carregar sozinhos esta responsabilidade, pediram que seus assessores também assinassem. E estes, também para não carregar esta responsabilidade sozinhos (risos), passaram isso adiante. Todo presidente de multinacional no Brasil, ou na França, ou na Inglaterra teve de assinar o livro branco. Se uma companhia lá soubesse que alguém aqui fez alguma coisa que não deveria ter feito, por exemplo, evidentemente que lá o cara diria: “Não, eu já passei para o meu subordinado, que já passou para o subordinado dele e o responsável é ele. Então, ele que vai embora”. É o livro branco. Era e é isto.

Um conjunto de diretrizes…
Conjunto de diretrizes que tem a ver com a ética. Mas, evidentemente, como os Estados Unidos são protestantes, o exercício da ética é bem diferente da ética católica, vamos dizer. Isso não é pejorativo. Ok?

Nesta bolha da indústria fonográfica, as funções se consolidaram. Existia o empresário, o produtor, o artista. Com a quebra disso, o artista não fica sobrecarregado por ter de levar em suas costas todas as posições?
Não. Deixe-me corrigir sua pergunta. O artista já vinha há 20, 30 anos na indústria fonográfica. Eu me referi a 1970. Estou pensando nos tropicalistas. Gilberto Gil, Caetano Veloso e companhia já eram pessoas que viam além da composição, além da gravação do estúdio e do resultado – a famosa “bolacha”, como todo mundo chamava. Eles, por meio do João Araújo [ produtor musical, pai de Cazuza], sentavam e se davam o direito – e tinham o direito – de sugerir como e o que fazer com esse disco. Em que direção, com que propósito, com que discurso. E este princípio não se estabeleceu somente no Brasil com os tropicalistas, mas se instalou concomitantemente na maior parte da indústria mundial, em nível independente ou não-independente. O artista sabe que, além de ser artista, é preciso ser um trabalhador. E talvez um dos melhores protótipos deste novo homem é, outra vez, o Gilberto Gil. Mas, o artista, que antigamente se queixava muito por estar cerceado pelo establishment, hoje, se ele for inteligente, vai gozar desta nova liberdade ou deste novo vazio ao redor dele. Porque assim, pouco a pouco, ele tem plenos meios de se propagar. São muito mais favoráveis hoje que antigamente, porque existem todas as novas mídias que te permitem ficar sentadinho em casa e divulgar seu trabalho. Não pelas mídias convencionais, já totalmente ultrapassadas, mas com as novas mídias. Numa entrevista, você já disse que o jabá acontecia de diversas for-
mas, que não era só dinheiro para a gravadora, mas mercadorias. O que é o jabá? Ele existe ainda? Da mesma maneira que fui muito enfático ao falar sobre o jabá, me dá o direito hoje de dizer que eu não sei. Suponho que sim, mas não sei. Você quer que eu elabore?

Claro. O jabá foi mais um equívoco da indústria?
Não. O jabá se faz de várias maneiras. Tem a visão puritana – ou católica – que diz que “é um pecado capital você dar dinheiro para uma pessoa tocar a sua música”. Aqui, existe um problema moral. Mas tem uma outra visão que está a favor do jabá. Tudo depende para o que você utiliza. Se utiliza para um  artista de “quinta” – seja no sertanejo, no tropicalismo, na vanguarda, o que você quiser – , uma pessoa que você vê que não tem qualidade e consistência, então você é um idiota! Se utiliza jabá porque considera que o programador é uma pessoa que não tem gosto musical e que você tem um artista de valor, paga bem pago. É um bom investimento! Eu paguei jabá para muita gente. Não paguei jabá na época da bossa nova porque ainda não existia, mas paguei para tocarem Chico Buarque, Mutantes, Raul Seixas. Paguei. Não tenho nenhum pudor com isso. Porque, talvez, se eu não tivesse pago, eles não tivessem o sucesso que tiveram. E me orgulho muito de ter estado ao lado deles.

Você esteve ao lado de Elis Regina, de Chico Buarque, de muita gente. Como se dá a relação entre um produtor musical e um artista, se pensarmos na criação estética?
Eu nunca tive uma influência artística. Não posso dizer: “Eu ajudei, artisticamente, fulano”. O que eu soube fazer foi olhar nos olhos do fulano e ver o que estes olhos me diziam: se era um cara ambicioso, se dizia coisas diferentes, se tinha um ego desmedido, se era narcisista, se era sincero, se era novo, se era direito. Então, no momento de contratação, os meus diretores artísticos evidentemente recebiam muitas solicitações. Eu e o departamento artístico, da promoção, escutávamos e dávamos uma opinião. Se fosse maioria, tudo bem. Se eu achasse “vamos”, íamos. Eu exercia o direito de ser patrão. Ou então um diretor artístico me dizia: “André, você não quer, mas eu gostaria de ter a liberdade de contratar”. Uma vez que ele estava dentro da gravadora, eu almoçava, jantava, ia a shows com esse artista. E nestes eventos gostava de ter este momento de tranquilidade, que não era de escritório, para ouvir o que ele tinha a dizer. Se a companhia estava bem, se não estava, se ele estava bem com ele mesmo e com seu trabalho. Feito isso, eu entrava no estúdio com o diretor artístico e com o produtor. Ali é uma coisa absolutamente artística e técnica. Artística pelo talento dele e
dos músicos ao redor. E técnica para ver se seus músicos e ele expressam o que está querendo expressar. O trabalho do diretor artístico é ajudar o artista a encontrar, dentro dos parâmetros do artista, uma maneira mais conveniente de se expressar.

E o que acontecia, por exemplo, quando um artista que merecia uma aposta entregava um produto abaixo da qualidade esperada? Havia intervenção?
Claro, claro. Aqui em São Paulo tem um exemplo muito conhecido: os embates entre Rita Lee e eu, depois que ela saiu dos Mutantes. Não é glorioso. Ela apareceu lá com um disco que era muito estranho. Como, aliás, os Mutantes fizeram logo que se separaram da Rita. E eu tive de dizer para ela: “Rita, a gente não vai lançar esse disco”. A Rita ficou contrariada comigo. Com essa história, perdi a Rita. Até um ano atrás ela não havia me perdoado. Mas, para minha grande tranquilidade interna, ela disse que tinha ouvido esse disco há um ano e que queria me encontrar para me agradecer por não ter deixado ele ir ao mercado na época. O Lulu Santos e o Raul Seixas
se deram ao luxo de fazer músicas me esculhambando. No entanto, minha relação com o Lulu é ótima e no geral minha relação com o Raul sempre foi ótima, antes e depois. Mas tem de se admitir que tem de ter confronto. Eles com a gente e a gente com eles. Para ter estes confrontos tem que ter sido  estabelecido, anteriormente, um termo de confiança.

E os grandes discos que você fez?
São muitos. Ao mesmo tempo que estes artistas fizeram discos fantásticos. Na minha qualidade de patrão, que começou com a tropicália, só posso me lembrar do disco Tropicália [1968, Philips], que teve uma importância extraordinária. Os discos do Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Maria Betânia, Elis Regina. Dela, posso citar o Tom e Elis [1974, Polygram], com mais destaque. Do Caetano posso até dizer, de uma maneira um pouco agressiva e controversa, o Araçá Azul [1972, Polygram]. Estou esquecendo muitos, com certeza. Uma gravadora trabalhava um artista a médio prazo, não é? Não existia, como hoje, o artista de curto prazo. Como um artista pode amadurecer sem ter uma produtora que lhe dê o arcabouço financeiro? Isso fazia parte dos tais “mortos da história”. Isso acabou. A situação é tão horrorosa que, se o artista não vai na primeira música e nem na segunda, a resposta hoje é: “Você vai me desculpar, mas não vai mais”. Na época em que eu militava, era de praxe considerar que o primeiro disco não se discutia se era um fracasso ou um sucesso. Lembro de ter dito mil vezes: “Não gosto que um artista novo faça sucesso com seu primeiro disco”. Porque a cabeça não aguenta. De repente, ele estava comendo um sanduíche de um real com dificuldade e, um dia depois, limousine e mais não sei o quê. Perde a cabeça. E se o primeiro disco não fez sucesso: “Puta, que azar”. Fracassou? Por que fracassou? O que tem de bom neste fracasso? Segundo disco já”. Aí ele entra no estúdio mais focado.

Você antecipou o sucesso do rock dos anos 80? Como foi o trabalho de encontrar essa nova geração de roqueiros?
Não fui eu quem viu primeiro. Na gravadora, havia o Pena Schmidt e o Liminha pesquisando novas bandas. Na época, contratei o Peninha com uma missão. Eu dizia ao Peninha: “Acho que os novos movimentos repetem um pouco os movimentos anteriores. Você se sente capacitado para descobrir no boteco, na rua, onde estiver?”. E ele me disse: “Posso”. O Pena sumiu talvez por um mês e acabou me telefonando: “Você pode vir a São Paulo?”. Aí, o primeiro grupo que ele me apresentou foi justamente o Ultraje a Rigor. Semanas depois, ele me diz: “Pode voltar aqui?”. Fui. E eram os Titãs. E assim foi. O mérito que tive foi de dizer: “Está bom. Vamos apostar nisso”. Certa vez, em uma entrevista, eu disse que o futuro da música brasileira estava no rock. As pessoas não interpretaram isso de uma maneira muito simpática. O Vinicius de Moraes me disse, um tempo depois: “Puta, André, é uma bela frase, mas você nunca podia ter dito uma coisa destas”. Mas é verdade, porque já tínhamos os Novos Baianos, os tropicalistas, Jorge Ben, Erasmo Carlos, estava cheio de roqueiro por aí.

A bossa nova surgiu como resposta à “bolerização” da música da época? E o rock dos anos 80 também surgiu porque a MPB dos anos 70 estava velha?                                                                                                                                                                                                                                                                                                    Tenho uma tendência a discordar. Não houve uma “bolerização”, não. O que houve é que a juventude brasileira, universitária e classe média, não podia se apropriar da música que se fazia naquela época: o Rei da Voz, Orlando Silva… não dava. Não havia música para a juventude de classe média branca brasileira. Dolores Duran, assim como o Johnny Alf e outros, fizeram uma evolução para outra coisa. Partiram de um lugar próprio. Isso que foi interessante para a bossa nova, como foi interessante com a tropicália. Como é interessante Chico Science. Parte de onde? Partiu dele! Fica-se dizendo: “Partiu de onde? Partiu de onde?”. É uma coisa dele. É autêntico.

O que é música independente?
O conceito de música independente, no passado, sempre foi interpretado como sendo músicos com certo talento, mas que tinham medo ou fracassaram na indústria oficial. Então, se tornavam independentes. E se tornar inde  pendente é terrível, porque se tornavam independente, mas sem grana. E não houve nunca, nestes 50 anos, um homem de negócios que chegasse, colocasse um estúdio, uma fábrica, um depósito, chamasse todo aquele pessoal independente e dissesse: “Continuem independentes, mas eu me encarrego da distribuição”. Porque um independente chegava lá e não era distribuído. Então, o independente, por muitos anos, no Brasil, foi conotação de fracasso ou então de individualismo. Daquele que não queria se submeter às regras que imperavam naquela época. Hoje, o que é o independente? Vai continuar sendo o mesmo, mas ele vai ter a simpatia do meio e ele tem possibilidade de se virar  melhor que antes. Gravar já não custa quase nada e distribuir não custa nada. Há grandes vantagens. Qualquer pessoa tem acesso a colocar sua linguagem no ar. Mas também tem seus inconvenientes. Porque tem muita porcaria que roda aí. Todo mundo diz: “Eu sou artista”. Então, para tomar uma ideia aproximada do que é ser independente hoje, eu tive acesso a dados que mencionavam, há três anos, que existiam 18 milhões de sites musicais. Como é que você vai dizer: “Cheguei em casa e agora vou buscar músicas novas”? Você faz “toc”
no computador e aparecem 18 milhões de ofertas.

Então o empresário de música era um qualificador e um filtro?
Você está dizendo o empresário da indústria? A indústria não era o empresário, era o diretor artístico e seus produtores. Era um filtro, claro. O filtro pode ser bom e pode ser ruim, mas isso é humano, não é? Ou eu tenho talento ou não tenho. Se eu não tiver talento, o meu feeling vai ser péssimo.

Você acha necessário encontrar outro filtro para estes 18 milhões de sites de música? É possível encontrar outro filtro?
Um dia vai se encontrar alguma coisa. Tem muitos críticos que entraram para filtrar e “desfiltraram”, porque não é viável economicamente. Há muitas empresas que vão vindo, vindo, vindo e se qualificam para colocar o artista no seu site. Inclusive trabalham promocionalmente para ele. Só que todas elas – ou praticamente todas – nascem e morrem. Porque, em um mundo onde você estima que tudo vem de graça, é muito difícil comercializar e torna-se
inviável. Porque eu tenho uma empresa, eu tenho que dar qualquer coisa. É como eu disse no início: foi uma bolha.

E a gratuidade da música custa caro?
Talvez não custe caro em termos de dinheiro. Porque por ser gratuito não custa caro, mas em termos de carreiras, custa muito caro. Porque não vão construir carreiras. Eu estou falando isso pensando em Chico Buarque, Led Zeppelin, Michael Jackson. Grandes carreiras, tanto brasileiras quanto estrangeiras. Dessas, eu creio, formalmente, não vai haver mais. É só esperar eles morrerem.  Até Coldplay, essa turma toda mais recente. Até eles morrem, não fisicamente, mas morrem no seu ciclo. Evidentemente, que não é 100% ou 90% disso. Coloco o que me parece uma tendência.

Para encerrar, uma pergunta para um produtor que cruzou com grandes músicos: o que é o talento?
O que é talento? Vou te pedir para me fazer outra pergunta, porque eu acho que o talento é uma das coisas mais difíceis que você poderia me perguntar. Para mim, o talento é intangível. Reconhecer o talento é uma coisa, mas o talento como conceito abstrato… o que é? Eu não saberia te dizer, francamente.Não tem definição.

Entrevista realizada por Fabio Maleronka Ferron e Sergio Cohn
no dia 29 de abril de 2010, em São Paulo.
Para assistir esta entrevista em vídeo:
https://producaocultural.procomum.org/2010/08/03/andre-midani/

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