Velhos demais para virar adultos

Uma reflexão sobre a Casa da Cultura Digital, os peixinhos de ouro e a Emília do Sítio do Picapau Amarelo por Fábio Maleronka Ferron Dia desses a Casa da Cultura Digital fez dois anos. Para quem não nos conhece, a Casa fica em São Paulo, quase no centro da cidade. Posso explicá-la de de várias formas. Tem gente que a chama de cluster criativo. Seja o que isso for, parece ser a definição mais apropriada. Basicamente, no entanto, o que importa é nossa experiência cotidiana. Hoje compõem o coletivo pequenas empresas, agências e produtoras que trabalham em economia de aglomeração cultural. Inauguração da Casa da Cultura Digital from Coletivo Garapa on Vimeo. Quem somos? Volto a dois anos atrás. Em uma manhã, rolou um encontro de um pessoal que estava querendo montar uma experiência. Tínhamos em comum essa coisa de não reproduzir o modelo das Ongs e também de não querer trabalhar na agressividade do mercadão. E precisávamos de um canto, para colocar o computador e a cerveja gelada. Durante uns três meses, a coisa ia e não ia. Estava para acontecer mas num acontecia. Pudera, né, afinal, a gente não tinha nenhum tostão furado – o que por si só é uma contingência importante. Tentamos alugar uma casa na Bela Cintra. Não rolou. Até que o Serjão Gomes, mestre de todos nós, passou pela Vitorino Carmilo e avistou uma placa de aluga-se defronte a um castelinho que serve de portal para uma vila de estilo italiano, um conjunto de sobradinhos, que inclusive serviu de locação do primeiro episódio do Castelo Rá-Tim-Bum. Quando chegamos para ver o espaço, a cara que fizemos foi muito parecida com a dos meninos personagens da série quando avistam o castelo. Naquela manhã, o raio chocou a cabeça do Frankestein. Em dois anos, fizemos muitas coisas: produzimos os fóruns de Cultural Digital; criamos e realizamos o Produção Cultural no Brasil; clonamos o Blog do Lula e organizamos uma comunidade de Transparência Hacker que tem 800 membros; organizamos também uma comunidade de recursos educacionais abertos, que está pautando a questão de forma pioneira; fizemos filmes, fotos, músicas, shows, bugigangas. A lista vai longe: tem comunidade também de vídeo livre, de fotografia digital, de compartilhamento de ciência. O que não falta são coisas sendo feitas. Mas esse texto comemorativo não se pretende a balanço do realizado. Quando chegamos, alugamos duas casas da vila. Agora já são quatro. Encontramos inúmeros parceiros e financiadores. Mas, como no início, continuamos duros. Não buscávamos isso, mas o fato de sermos pequenos, de trabalharmos de forma colaborativa e com inovação de formatos, nos coloca nesse lugar. Talvez seja o preço da autonomia. Sei lá. Peixinhos de Ouro Sempre que me perguntam sobre quem são os habitantes da Casa da Cultura Digital, respondo que vislumbro cinco tipos de perfis, os quais podem ser misturados ao sabor do freguês: jornalistas, artistas, hackers, cronópios e produtores. O espaço está sempre aberto a esse tipo de gente, e isso faz com que, bastante frequentemente, a gente receba um mundaréu de pessoas, movimentos, blogueiros e empreendedores, nacionais ou estrangeiros, que estejam pela cidade. A Casa, pode-se dizer, é um bacana ponto de encontro. De minha parte, nesse período, testei algumas brincadeiras inovadoras, como: recriar o velho Ônibus-biblioteca de Mario de Andrade – uma das mais felizes políticas públicas de cultura já inventadas no Brasil – com leitores digitais no lugar dos livros; produzir uma aranha sonora com a Geralda, do Tato Taborda, de corpo, e músicos fora do eixo conectados às patas; montar um “penetrável” de cinema, na Cinemateca, com o cineclube Mate com Angu dentro. Tem sido legal, porque minha preocupação central pode ser criar e trabalhar. Aliás, essa é um elemento importante. Há uma preocupação política espalhada pela Casa, como não poderia deixar de ser, elemento que fica ainda mais acentuado em momentos de enfrentamento como o que estamos vivendo, quando aparece uma meia dúzia querendo desestruturar importantes políticas culturais. Em geral, também, as pessoas que toleram estar no nosso cluster trafegam pela esquerda, mais para libertárias ou anarquistas. No entanto, essa preocupação política é apenas uma das preocupações, porque o lance, afinal, é criar e trabalhar. Há um ano, montou-se no porão do castelo o Garoa Hacker Clube. Outro dia passei por lá e os caras estavam mexendo no sistema que movimenta uma impressora que imprime objetos. A imagem me remeteu ao Coronel Aureliano Buendia – 32 guerras antes – na sua oficina, fazendo seus peixinhos de ouro, como descreve o clássico Cem Anos de Solidão. Velho demais para virar adulto Dois anos depois, penso no que virá. Sem dúvida, seguiremos com nossas pautas, a inventar uma produção cultural completamente diferente e a estimular as reviravoltas no nó borromeano da cultura digital. A cultura, livre dos anteparos, será ainda mais imaginativa. Por isso, viver uma nova produção é tão importante quanto os objetos, produtos, festivais, sites, shows, plataformas e peças que essa mesma produção produz. Nos resta, então, viver e fazer a “arte como modo de vida” – como diriam os neo-concretos. Esse é o salto mortal da cultura e sua cambalhota inventiva. Estamos na sociedade do remix. Pós-tropicalista. Outro dia, passei em outro canto da casa, e alguém estava manipulando um laptop, misturando trechos de músicas e imagens. A imagem me remeteu à Emília do Sitio do Picapau Amarelo, no episódio da Reforma da Natureza, quando ela pratica o remix nas suas alterações do mundo: o passarinho-ninho; o porco magro; o livro comestível; o pernilongo cantor e a reforma da personalidade das borboletas azuis. É essa a nossa proposta de mundo – o mundo do remix. O Aristóteles usa a ideia de Tiquê como uma causa oculta para a razão humana, para o “acaso”. Acho que foi o tiquê que nos fez estar dois anos juntos, brincando de meta-produção cultural, realizando workshows e vivenciando a internet de raiz. Se tem algo que posso conclamar, em homenagem a esses dois anos felizes, é que sejamos hidráulicos e objetivos. Podem até dizer que amadurecemos,