Financiamento cultural sem comprometer a autonomia

Plataformas de crowdfunding começaram a se espalhar pelo Brasil desde o início deste ano. A ideia nada mais é do que a reinvenção contemporânea da famosa vaquinha, só que desta vez baseada na internet e destinada a bancar projetos culturais independentes

por Lucas Pretti

(publicado originalmente no jornal “Le Monde Diplomatique Brasil”, junho 2011
http://diplomatique.uol.com.br/artigo.php?id=955)

ilustração de Allan Sieber

Dinheiro é sempre o problema dos produtores culturais, seres estranhos estes – afinal, quem mais sente prazer ao tentar o equilíbrio (talvez) impossível entre manifestação artística genuína e viabilidade comercial? Até pouco tempo, havia no Brasil três saídas para o problema “quem banca a minha arte?”, todas com algum nível de contradição: ficar atento aos editais públicos (migalhas do orçamento distribuídas a alguns poucos felizardos); convencer empresas a reverter parte de seus impostos via leis de incentivo fiscal (e submeter o projeto aos interesses da marca); ou “empreender” (o que, em muitos casos, significa “vender cerveja no bar do teatro para produzir a peça”). Tudo muito duro e absolutamente ligado à sorte de ser escolhido por comissões duvidosas, ter amigos ou parentes influentes nos departamentos de marketing ou atrair alguns bacanas para comprar a cerveja salvadora.

Mas eis que veio a internet, tempos estranhos estes – afinal, quando mais houve tanta semelhança entre questionar e pertencer ao sistema? Ter uma ideia relevante, conseguir espalhá-la pelos nichos de interessados no assunto e falar, falar, falar, foi a possibilidade que a sociedade em rede proporcionou aos produtores culturais. A febre recente no Brasil dos sites de crowdfunding mostra que o futuro e a garantia das produções brasileiras independentes (talvez) estejam exatamente na comunicação entre pessoas em rede.

A tradução literal de “crowdfunding” é “financiamento pela multidão”. Lógica simples, nada mais que a reinvenção contemporânea da vaquinha. Se cada um de nós tem R$ 50, juntos podemos ter milhares de reais. Desde o início do ano, mais de vinte sites brasileiros se propõem a intermediar o contato, a vaquinha, entre criadores de projetos e a multidão financiadora.

Com exemplos fica mais fácil entender. A jornalista paulistana Natália Garcia, de 27 anos, concebeu o projeto Cidades Para Pessoas, no início de 2011, depois de pesquisar e militar durante quatro anos pela causa da mobilidade urbana e o uso massivo de bicicletas como meio de transporte em metrópoles. Ela vislumbrou a apuração profunda e a produção de dossiês-reportagem com as experiências de doze cidades do mundo na busca por um convívio pacífico da população com os carros, sem privilegiar as máquinas – e quanto isso poderia servir de exemplo, inspiração e projeto para o “desplanejamento” de São Paulo. Contatou então o urbanista dinamarquês Jan Gehl, responsável pelo redesenho de Copenhague e diversas outras metrópoles pelo mundo, e fechou, a partir dos critérios do especialista, a lista dos destinos, da qual constam, por exemplo, Roterdã e Cidade do México. O projeto duraria doze meses, um mês de vida e pesquisa em cada cidade, e consumiria R$ 25 mil – gastos reduzidíssimos, prevendo hospedagem solidária e máxima economia com voos e trens locais.

Natália poderia seguir um dos três caminhos tradicionais da produção cultural. Detalharia nome, objetivo geral, objetivos específicos, metas, justificativa, cronograma, acessibilidade, democratização do acesso, contrapartidas, orçamento etc. etc. etc. e submeteria tudo a meses de espera e mínimas chances de aprovação em editais públicos; faria a peregrinação entre empresas para convencer gente não tão interessada em repensar o desenvolvimento das cidades brasileiras e em associar a marca a algo que não geraria lucro nem teria visibilidade; ou tentaria o tal “empreendimento individual”, quase inviável neste caso: teria de vender cerveja demais…

Ela preferiu apostar em dois estudantes de administração de empresas, Diego Borin Reeberg e Luís Otávio Ribeiro, que preparavam a estreia da plataforma Catarse (catarse.me), hoje a mais antiga (tem quatro meses) e mais bem-sucedida iniciativa brasileira de crowdfunding. A dupla reproduziu no país o modelo inaugurado pelo site Kickstarter (kickstarter.com), que em abril completou dois anos de atividades nos Estados Unidos, e a realização de mais de 2 mil projetos com US$ 40 milhões arrecadados. Natália, então, produziu um vídeo apresentando seu Cidades Para Pessoas, e espalhou pela rede a tal ideia de viajar doze cidades e trazer soluções para São Paulo. Para isso, precisaria da ajuda voluntária de internautas, que poderiam doar qualquer quantia. O projeto só daria certo caso conseguisse, em três meses de campanha, juntar os R$ 25 mil. Caso contrário, os financiadores teriam o dinheiro devolvido.

Se tentarmos adivinhar pelas postagens no Facebook, neste momento a jornalista Natália Garcia deve estar pedalando por alguma ciclovia de Copenhague, isso se já não partiu para Oslo, o segundo destino da empreitada. Em noventa dias, ela levantou os R$ 25 mil e realiza agora, com independência absoluta, um dos projetos de sua vida – e que se tornou o primeiro grande case brasileiro de crowdfunding. Um trabalho jornalístico de interesse público indiscutível, financiado pelas pessoas, que só puderam se conhecer e colaborar porque estavam conectadas em rede.

Não é só bom coração

Dizendo assim, parece que todos os problemas estão resolvidos. Basta algum trabalho de divulgação na internet e, pronto, há dinheiro para qualquer coisa. Pura ilusão, ainda bem. Há duas características comuns entre os projetos que conseguiram se viabilizar via crowdfunding no Brasil, um país de cultura colaborativa por natureza, sem dúvida, mas também bastante desconfiado quando o assunto é dar dinheiro para pessoas desconhecidas. A primeira é mesmo o interesse público, a quantidade de pessoas que se beneficiaria com a realização do projeto e a importância moral de financiá-lo. O Cidades Para Pessoas é um exemplo, assim como o projeto Morar, do Coletivo Garapa, que pretende realizar, com R$ 16 mil, uma publicação e um blog com registros fotográficos dos moradores e dos escombros dos edifícios São Vito e Mercúrio, no centro de São Paulo, desocupados e em processo de demolição, num projeto discutível da prefeitura paulistana.

A segunda característica é a dificuldade que o dono da ideia teria em tirá-la do papel pelas vias tradicionais. Quanto mais improvável, mais o senso de caridade entra em jogo. Costumam comover apoiadores, pequenos empreendimentos pessoais como editar um livro, reformar um teatro, gravar e prensar CDs de música, fazer um filme. Quanto mais independência, quanto menos possibilidades, mais chance. Quando, por exemplo, a artista plástica Maíra das Neves poderia planejar que muitas pessoas a ajudariam, com R$ 5 mil, a mobiliar seu ateliê, no Rio de Janeiro, com apenas 1 m2, mas um pé-direito muito alto?

Todas as plataformas de crowdfunding funcionam com a lógica da contrapartida. Cada quantia doada vale uma recompensa ao doador, que passa também a interagir e integrar, de certa forma, o projeto. O Coletivo Garapa promete imprimir fotos e dar várias cópias do jornal aos patrocinadores. Já Natália Garcia vai produzir boletins semanais sobre a aventura nas doze cidades, e dar o livro completo ao final de um ano. E o Movimento Elefantes, coletivo de big bands paulistas que pediu R$ 1.980 para prensar CDs, vai enviar para a casa dos mecenas um álbum autografado pelas dez bandas. Isso torna a relação limpa, transparente. Trata-se sempre de empreendimentos privados, com interesse específico. Se você resolver apoiar, recebe algo em troca, como numa transação comercial tradicional. Senso de justiça muito bem-vindo num tempo em que tanto dinheiro público é usado para produções privadas, a maior aberração da nossa Lei de Incentivo à Cultura (Lei Rouanet) que, em geral, acaba favorecendo o marketing individual em detrimento da necessidade coletiva.

Não é apenas assim em países como os Estados Unidos, em que a prática do crowdfunding não é mais novidade. Claro que o interesse público e a dificuldade de viabilizar entram na conta e na tomada de decisão sobre apoiar ou não um projeto. A diferença é que, por lá, já se desenvolveu um sentimento que no Brasil ainda começa a tomar forma, pelo menos enquanto a tela do computador é intermediária: ajudar por ajudar, de graça, sem nada em troca, apenas pelo prazer de ver alguém feliz realizando seu projeto. Ao escolher a quantia a ser doada, é possível optar por não respeitar a lógica da contrapartida e simplesmente destinar o dinheiro. Toda a lógica da cultura digital, da vida em rede, em comunidades, é baseada nesse tipo de confiança e ajuda mútua.

Foi com esse intuito que o Kickstarter nasceu, em abril de 2009, em Nova York, pela mão de três jovens americanos – esse tipo de “empreendedor hype” que nasce às pencas no mundo pós-Google, pregando a flexibilidade no trabalho, a criatividade, a alegria e muita grana no final do mês, sem atropelar ninguém (ou sem ninguém perceber o atropelamento). Eles inauguraram o modelo de negócio. Uma parceria com a Amazon Payments garante a segurança das transações, que rende 5% do total para os donos (e 95% para os autores de projetos).

As plataformas de crowdfunding brasileiras também não proliferam à toa. É um nicho de negócio muito lucrativo, sob a lógica de intermediação há muito estabelecida pela internet, em que o intermediário não precisa acumular tanto dinheiro nem explorar seus clientes (como fazem as gravadoras, editoras, agências e outros mal-intencionados no mercado tradicional). Ganham todos. O dono da ideia tem o projeto realizado. Os patrocinadores recebem algo útil em troca, e dormem tranquilos por terem ajudado alguém de boa-fé. E os donos do site recebem os 5% de taxa administrativa em agradecimento à hospitalidade – afinal, foi na “casa” deles que as duas pontas da produção (projeto e financiadores) se conheceram. A Estante Virtual (estantevirtual.com.br), site que possibilita aos sebos a venda de livros por preços baixíssimos, era até então o melhor exemplo brasileiro desse negócio típico da cultura digital. Para que enriquecer se eu posso apenas facilitar a vida de muita gente e viver bem? É, sim, um rompimento com a visão de mundo do capitalismo pré-internet.

Homo ludens

Em 2010, o escritor e publisher norte-americano Craig Mod já tinha escrito e diagramado o livro Art space Tokyo, um guia de arte na capital japonesa; faltava imprimir e distribuir. Menos por altruísmo que pelo interesse de ter seu projeto realizado, ele fez um estudo detalhado de como se dar bem em sites de crowdfunding, tendo como cobaia ele mesmo. Terminou por entender a lógica do comportamento de internautas quando diante de um projeto. E descobriu a palavra mágica: jogo.

Segundo a teoria de Mod, publicada em bit.ly/craigmod, a primeira regra é não deixar o orçamento do projeto alto demais. Isso traz a sensação de que o autor está buscando mais vantagens pessoais do que realmente a viabilização de sua ideia. Claro que o custo é relativo e depende muito das proporções do projeto. A recomendação é seguir o bom senso e a razoabilidade.

A segunda regra é respeitar o que a revista Wiredjá postulava em março de 2007, com a capa “Get Naked” (“Fique Nu”), cuja reportagem principal discutiu a necessidade de transparência total entre empresas, instituições e pessoas nas relações pela internet. Ou seja, não mentir. Se o orçamento é R$ 10 mil, é recomendável abrir os gastos, mostrar as planilhas, mesmo que nelas esteja o valor do lucro pessoal. Quem navega pela cultura digital não vê problema nenhum nisso. A doação é mais provável quando o doador sabe exatamente onde seu dinheiro vai parar. (E isso vale para todas as esferas da sociedade em rede, política, trabalho, relações pessoais etc., mas é outra discussão).

A terceira regra diz respeito à quantia doada por cada apoiador. Antes de formatar o seu, Craig Mod pesquisou detalhes dos últimos trinta projetos bem-sucedidos no Kickstarter e identificou um traço comum. A maioria das doações foi de US$ 50 (23% do total), seguidas por US$ 100 (16%), depois US$ 500 ou US$ 25 (9% cada). Metade dos orçamentos dos projetos veio de pessoas doando essas quantias, levando à conclusão que se pode esperar muitos doando quantias pequenas (US$ 25 ou US$ 50) e, alguns, quantias grandes (US$ 100 ou US$ 500). Pouquíssimos escolheram doar valores muito baixos ou muito altos. Adaptar o orçamento a esse comportamento foi um cuidado que o escritor teve.

A última percepção de Mod talvez seja o centro de toda a questão. Cada autor de um projeto de crowdfunding pode escolher o período durante o qual as doações podem ser feitas, ou seja, quanto tempo cada campanha vai durar. Ele optou por apenas quatro semanas – exatamente por intuir a lógica do jogo. Nas duas primeiras semanas, o gráfico do dinheiro que entrou foi muito ascendente, atingindo US$ 15 mil rapidamente. Na terceira semana o ritmo praticamente congelou, para, então, na última, voltar a crescer e atingir o total de US$ 25 mil que o escritor havia pedido no início. A conclusão de Mod é que a perspectiva do jogo, da gincana, do tempo que vai esgotar, estimula as pessoas a doar, como se fosse uma tarefa a cumprir, uma competição a vencer. Tanto que, no texto em que descreve a experiência, ele afirma que, se pudesse refazê-la, tentaria captar os US$ 25 mil em três semanas, uma a menos. É mais incendiário, mais urgente. “Em crowdfunding, campanhas curtas são mais eficientes”, diz.

Quando se fala em cultura contemporânea baseada em redes digitais é preciso ter em mente que se fala em revolução. A perspectiva do mundo conectado e da velocidade de comunicação, interação, troca, construção coletiva, fazem delirar qualquer futurólogo hippie dos anos 60, que lutava por liberdade e por uma cultura planetária interconectada. Qualquer aparelho celular, hoje, pode fazer ligações via Skype, utilizando redes Wi-Fi e ignorando as redes de telefonia celular. Na própria essência do aparelho, do produto, está sua destruição. Esse tipo de contradição é a materialização da contracultura sessentista.

O crowdfunding é mais uma cor desse delírio coletivo que a internet causa por definição, mesmo com tantas empresas e governos querendo controlar o incontrolável e lucrar como se fazia há vinte anos. O mundo em rede serve para questionar, expandir, testar os limites da ordem. Em entrevista ao projeto Produção Cultural no Brasil, o produtor Cláudio Prado, coordenador do Laboratório Brasileiro de Cultura Digital, resume o que chama de atitude cultural pós-rancor: “A internet abre horizontes, possibilidades. Você vê coisas acontecendo, se estimula e estimula outros. Este é o desbunde. Eu vejo todos os dias gente com sonhos. Não tinha gente com sonhos até há pouco tempo. O sonho era arrumar um bom emprego, um bom salário”.

Na produção cultural brasileira, o crowdfunding abriu um quarto caminho, quase absolutamente puro, para levantar dinheiro e materializar ideias improváveis. Abriu a possibilidade do sonho.

Lucas Pretti
Jornalista, ator e produtor cultural,
integrante da Casa da Cultura Digital em São Paulo/SP

Plataformas brasileiras de crowdfunding

Geral

www.catarse.me

www.benfeitoria.com

www.movere.me

Projetos culturais

www.multidao.art.br

www.incentivador.com.br

www.produrama.com.br

Outros

www.embolacha.com.br (música)

www.queremos.com.br (shows)

www.wacawaca.com.br (games)

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